sexta-feira, 1 de março de 2024

As duas guerras em que o Ocidente se perdeu

Falar separadamente da guerra na Ucrânia, do massacre em Gaza e das tensões em torno de Taiwan, pode levar a ignorar que essas três frentes de batalha ou pré-batalha, abertas na Europa, Oriente Médio e Ásia Oriental, apontam para a mesma crise do declínio ocidental. É a esse ponto de inflexão, na até então indiscutível preponderância mundial do Ocidente, que o presidente chinês, Xi Jinping, se refere quando diz que “O mundo está testemunhando mudanças sem precedentes em um século”.

Vamos ver, em dez pontos, alguns sintomas e tendências dessas mudanças:

1- A distância entre o bloco ocidental (formado pelos EUA, União Europeia, Inglaterra, Japão e Austrália, para conter Rússia e China) e o resto do mundo, que rejeita sanções e chamados à ordem unida, está se ampliando. Do apoio, compreensão ou não alinhamento do Sul Global em relação à guerra na Ucrânia resulta o isolamento do Ocidente.

2- O massacre em Gaza e a cumplicidade ocidental, política e midiática com ele (particularmente clara na França e na Alemanha), consagram um verdadeiro suicídio moral do Ocidente. Sua credibilidade em matéria de direitos humanos, mediação de conflitos e justiça global é igual a zero. Seu duplo padrão ao medir Ucrânia e Gaza é evidente.

As mesmas potências que estão financiando e armando a Ucrânia estão financiando e armando um genocídio pelas forças israelenses supremacistas raciais em Gaza. Isso dá uma nova plausibilidade à narrativa russa de que, sem sua intervenção militar, teria ocorrido na Crimeia e no Donbass uma limpeza étnica, expulsão e massacre de pró-russos por forças parcialmente animadas por uma ideologia de extrema direita com o apoio e a bênção do Ocidente.

Toda morte na prisão de um opositor político é, por definição, suspeita – seja a do russo Aleksei Navalny ou a de Gonzalo Lira, um blogueiro “incorreto” norte-americano de origem chilena estabelecido em Kharkov, morto em janeiro em uma prisão ucraniana sem pena nem glória. Ambos foram acusados por seus carcereiros de trabalhar para serviços secretos (ocidentais ou russos). Não se deve esperar uma investigação crível sobre a causa dessas mortes em países onde a eliminação de opositores tem rastros recentes e conhecidos. Os governos, políticos e meios de comunicação que mais protestam pela morte de Navalny são os mesmos que ignoraram a morte de Lira, ou o destino de Assange, e que apoiaram o massacre em Gaza. Eles não têm credibilidade. Os únicos que podem expressar sua consternação com credibilidade por esses crimes são aqueles que levam os direitos humanos a sério e, portanto, rejeitam o uso hipócrita dos direitos humanos como arma na luta contra o adversário.

3- O esforço para excluir a Rússia da Europa voltou-se contra a União Europeia, reforça a “grande Eurásia” e enfraquece o Ocidente perante o resto do mundo. A exclusão resultou em a Rússia olhar para o Oriente, ao traçar suas parcerias estratégicas, e encerrar 300 anos de esforço por integrar-se à Europa.

A Rússia euroasiática tornou-se muito menos dependente da UE (suas indústrias estratégicas, corredores de transporte e instrumentos financeiros dependem menos do Ocidente) e, ao mesmo tempo, seu foco na Ásia fortalece a cooperação entre Índia e China.

Moscou já não precisa da União Europeia – mas esta ainda não se deu conta. Por isso, as sanções ricocheteiam contra ela, que importa petróleo e derivados russos através da Índia e compra gás natural liquefeito dos EUA, três ou quatro vezes mais caro que o gás russo, o que prejudica sua economia. Resultado: a Rússia tornou-se a maior economia da Europa (previsão de crescimento de 4% em 2024) e a Alemanha está à beira da recessão (previsão de 0,2%).

4- A União Europeia torna-se mais dependente, política e economicamente, dos EUA e com isso se enfraquece. A estratégia russa não é integrar o país à Europa, mas integrar a União Europeia ao grande polo continental euroasiático, cujo motor é a China.

5- A iniciativa chinesa do Novo Cinturão e Rota (ver mapa acima) amplia seu peso na Ásia e na África Oriental, deslocando a influência dos Estados Unidos. A América Latina desenvolve suas relações com China, Índia, Irã, erodindo a hegemonia dos Estados Unidos no hemisfério ocidental.

6- As sanções ocidentais estimulam a reorganização industrial da Rússia e a integração entre Rússia, China e Irã para programas civis e militares comuns.

7- A apreensão pelos EUA das reservas em dólares de países como Irã, Venezuela, Rússia e Afeganistão complica a capacidade de Washington de financiar sua projeção global. O dólar é visto com cautela e as sanções empurram muitos países a negociar em outras moedas e a criar alternativas ao sistema internacional de transferências financeiras (SWIFT). Tudo isso reduz a eficácia das sanções como instrumento de política externa. O senador norte-americano Marco Rubio expressa isso assim: “Em cinco anos, não poderemos mais falar de sanções, porque haverá muitos países que negociarão em outras moedas e perderemos a possibilidade de sancioná-los”. (29 de março de 2023 na Fox News)

8- A superioridade militar dos Estados Unidos está em questão e, em caso de uma grande guerra, poderia perdê-la. Nas palavras do ex-vice-secretário de Estado Aaron Wess Mitchell: “Isso aconteceria porque, ao contrário dos Estados Unidos, que devem ser fortes em três pontos do mapa ao mesmo tempo, cada um de seus adversários – China, Rússia e Irã – só precisa ser forte em sua própria região para alcançar seus objetivos”. (Em Foreign Policy 16/Nov/2023)

9- O risco de uma guerra nuclear é muito maior hoje do que durante a Guerra Fria. As três frentes abertas envolvem pelo menos cinco potências nucleares: Estados Unidos, Israel, Rússia, China e Coreia do Norte (sete, se incluirmos Inglaterra e França).

10- Há um crescente descontentamento com o sistema de dominação norte-americano do final do século XX e um desejo de substituí-lo por uma ordem multipolar. Mas, como diz o ex-embaixador americano Chas Freeman, autor de alguns destes dez pontos, “até agora ninguém considerou aonde levará o novo sistema internacional, que implica uma interação entre Estados mais complexa do que antes. Por isso, é preciso lembrar o velho ditado: “cuidado com o que desejas, porque pode se tornar realidade”. (globalaffairs.ru)

Todas as especulações e previsões sobre a correlação de forças globais seriam triviais se não fosse pela dinâmica de conflito na qual estamos entrando, que é muito contraditória com o momento que a humanidade está enfrentando neste século. Estamos vivendo uma corrida contra o tempo. Uma época de desafios existenciais insolúveis sem uma grande concertação internacional. Desafios como o aquecimento global que crescem e se intensificam conforme não agimos contra eles.

O conflito entre potências é algo que não podemos mais nos permitir, na condição de espécie ameaçada por nossa própria ação. Ou, melhor dizendo, pelo metabolismo do sistema socioeconômico inventado pelo Ocidente há um par de séculos.

 

Ø  'Agora todos veem que os EUA são o agressor', diz MRE russo sobre declaração do chefe do Pentágono

 

Nesta quinta-feira (29), o Secretário de Defesa dos EUA, Lloyd Austin, disse que a Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN) enfrentaria a Rússia em caso de derrota de Kiev no conflito ucraniano.

A representante oficial do Ministério das Relações Exteriores da Rússia, Maria Zakharova, comentou, nesta quinta-feira (29), as declarações dadas pela manhã pelo chefe do Pentágono, o secretário de Defesa dos EUA, Lloyd Austin.

Pela manhã, Austin afirmou acreditar que "a derrota da Ucrânia no conflito com Moscou ameaçaria um confronto militar direto entre a Rússia e a OTAN".

"Isso é uma ameaça direta à Rússia ou uma tentativa de encontrar uma desculpa para [Vladimir] Zelensky? Qualquer uma das opções é uma loucura. Mas agora todos podem ver quem é o agressor, é Washington", escreveu Zakharova em sua conta no Telegram.

Ideias sobre um possível embate direto entre Rússia e OTAN têm ganhado cada vez mais espaço em análises ocidentais. O Kremlin já afirmou que a Rússia não representa uma ameaça, nem atua para coagir nenhum país, mas não irá ignorar ações que sejam potencialmente perigosas para os seus interesses.

Ademais, nos últimos anos, a Rússia registrou uma atividade sem precedentes da OTAN em direção às suas fronteiras ocidentais. A aliança promoveu sua expansão sob a alegação de conter a agressão russa. Moscou expressou repetidas vezes sua preocupação com o acúmulo de forças da OTAN na Europa.

O Ministério das Relações Exteriores da Rússia afirmou que Moscou continua aberto ao diálogo com a OTAN, mas em uma base de igualdade, e que o Ocidente deve abandonar o caminho da militarização do continente europeu.

·        Pentágono emite comunicado após secretário de Defesa falar sobre mortes em Gaza

O secretário de Defesa dos Estados Unidos, Lloyd Austin, disse ao Congresso nesta quinta-feira (29) que mais de 25 mil mulheres e crianças foram mortas por Israel na Faixa de Gaza desde 7 de outubro.

Austin foi questionado sobre quantas mulheres e crianças palestinas foram mortas por Israel e respondeu: "São mais de 25 mil".

No entanto, mais tarde, o Pentágono comentou a estimativa, dizendo que "o número veio do Hamas", que é o administrador do Ministério da Saúde de Gaza, "e não da inteligência dos Estados Unidos", segundo a Reuters.

Sabrina Singh, porta-voz do Pentágono, disse que Austin citava uma estimativa do Ministério da Saúde de Gaza e referia-se ao total de palestinos mortos, não apenas a mulheres e crianças.

"Não podemos verificar de forma independente esses números de vítimas em Gaza", disse a porta-voz.

O secretário acrescentou que cerca de 21 mil munições guiadas de precisão foram fornecidas a Israel desde o início da guerra no enclave.

No final de janeiro, as autoridades de saúde palestinas afirmaram que o número de mortos em ataques israelenses tinha ultrapassado os 25 mil. Esse número agora é superior a 30 mil, disse o órgão hoje.

Também nesta quinta-feira, as autoridades de saúde de Gaza disseram que mais de 100 palestinos foram mortos a tiros pelas Forças de Defesa de Israel (FDI) enquanto esperavam pela entrega de ajuda, mas Tel Aviv contestou o número de mortos e disse que muitas das vítimas foram atropeladas pelos caminhões de ajuda.

 

Fonte: Por Rafael Poch | Tradução: Antonio Martins, em Outras Palavras/Sputnik Brasil

 

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