Sífilis: as possíveis razões para 'explosão' de casos no Brasil e no
mundo
A sífilis
ganhou vários nomes desde o primeiro registro dela, na década
de 1490 — a maioria deles pejorativos.
Um nome, porém, permaneceu: "a grande
imitadora". A sífilis é mestre em imitar outras
infecções, e os primeiros sintomas são fáceis de ignorar.
Mas, se a doença não for tratada, as consequências
podem ser graves.
Tushar, um gestor de projetos de 33 anos que vive
em Amsterdã, nos Países Baixos, teve sífilis duas vezes.
Ele se lembra de ter recebido a notícia pela
primeira vez via WhatsApp de uma pessoa com quem tinha relações sexuais na
época.
"A pessoa ficou muito chateada e me culpou, o
que não fazia sentido por conta das datas [em que houve relações sexuais e que
a infecção foi detectada]. Foi estranho ser acusado e demorou algum tempo para
as coisas acalmarem."
Tushar foi testado e tratado naquela semana.
"As pessoas pensam erroneamente que a sífilis
não pode ser curada. As pessoas não entendem o que significa ainda ter
anticorpos contra a sífilis e não ter a infecção".
Em abril, os
Estados Unidos divulgaram os seus dados mais recentes sobre infecções
sexualmente transmissíveis (IST).
Os casos de sífilis subiram 32% entre 2020 e 2021
no país. Foi o maior número de notificações em 70 anos. Também foi a IST de
maior prevalência no período.
A epidemia não mostra sinais de desaceleração,
alertaram os Centros de Controle e Prevenção de Doenças (CDC).
A sífilis congênita — quando uma mãe transmite a
infecção ao filho durante a gravidez, muitas vezes após a contrair do parceiro
— avançou de forma particularmente acentuada, com os casos aumentando também
32% (assim como as infecções em geral) entre 2020 e 2021.
A doença pode causar mortes de
bebês e problemas de saúde para o resto da vida.
No Brasil, dados
divulgados pelo Ministério da Saúde em outubro de 2023 mostraram
que, de 2021 para 2022, a taxa de detecção de casos de sífilis adquirida por
100 mil habitantes cresceu 23% (de 80,7 casos por 100 mil habitantes em 2021
para 99,2 casos por 100 mil habitantes em 2022).
A sífilis adquirida é aquela contraída durante a
vida, após o nascimento, distinguindo-se da sífilis congênita.
De 2012 a 2022, houve aumento na taxa de detecção
de sífilis adquirida no Brasil ano após ano, com exceção de 2020, provavelmente
por conta da diminuição de diagnósticos durante a pandemia de covid-19.
A detecção de sífilis em gestantes também aumentou
no país no ano passado, saindo de uma taxa de 28,1 casos a cada mil nascidos
vivos em 2021 para 32,4 casos a cada mil nascidos vivos em 2022, um aumento de
15% em relação ao ano anterior.
Já a incidência de sífilis congênita ficou estável.
O ministério anunciou a
compra de um novo teste rápido para detectar ao mesmo tempo infecções por
sífilis e HIV que será distribuído pelo Sistema Único de Saúde (SUS),
inicialmente para grupos de maior risco.
Além disso, para conter a doença, o órgão afirmou
que vai intensificar o preparo de profissionais de saúde para a prevenção.
O governo federal definiu como meta controlar ou
eliminar, até 2030, 14 doenças com elevada incidência em regiões de maior
vulnerabilidade social, entre elas a sífilis. Outro objetivo é eliminar
particularmente a sífilis congênita.
O quadro mundial está deixando muitos profissionais
e pesquisadores de saúde alarmados.
"Há quinze ou 20 anos, pensávamos estarmos
prestes a eliminar a sífilis", diz Leandro Mena, diretor de prevenção de
ISTs no CDC.
"Não há dúvida de que estamos vendo taxas
crescentes de sífilis, taxas que não víamos nos últimos 20 anos ou mais."
E não é algo que assusta apenas no Brasil e nos
EUA.
Houve 7,1 milhões de novos casos de sífilis em todo
o mundo em 2020, segundo dados recentes da Organização Mundial da Saúde (OMS).
Em 2022, o Reino Unido viu os casos de sífilis
atingirem o nível mais elevado desde 1948.
O aumento de casos é algo que os profissionais de
saúde percebem no dia a dia.
"Quando comecei a atuar como enfermeira na
área de saúde sexual, em 2005, era muito raro ver sífilis primária, mesmo numa
clínica de uma grande cidade", diz Jodie Crossman, codiretora da STI
Foundation, fundação especializada em ISTs no Reino Unido.
"Agora, a maioria das clínicas atende pelo
menos dois ou três pacientes por dia para tratamento."
A infecção é causada por uma bactéria chamada Treponema
pallidum e os sintomas são divididos em quatro estágios.
A primeira é caracterizada por uma ferida indolor
no local do contato ou uma erupção cutânea.
Uma dose intramuscular de penicilina é considerada
a forma mais eficaz de tratar a infecção.
Se não houver tratamento, no entanto, a sífilis
pode levar a doenças neurológicas e cardiovasculares a longo prazo.
Isaac Bogoch, médico infectologista e pesquisador
da Universidade de Toronto, no Canadá, afirma que a situação que tem observado
em seu país — onde entre 2011 e 2019 a ocorrência de infecções por sífilis
aumentou 389%, uma curva significativamente superior à de outras ISTs — se
repete em várias partes do mundo.
"Essa tendência que está sendo observada em
vários países ao redor do mundo", diz ele.
"É muito preocupante porque, geralmente, a
sífilis é muito fácil de tratar e o tratamento está amplamente disponível.
Portanto, muito disso reflete uma falha nos cuidados de saúde pública."
Nas últimas décadas, a tendência tem sido a maior
ocorrência de casos de sífilis entre homens que fazem sexo com homens.
No Brasil, em 2022, 61,3% dos casos de sífilis
adquirida foram notificados em pessoas do sexo masculino, com destaque para as
grandes incidências nas faixas etárias de 20 a 29 anos e 30 a 39 anos.
A chamada razão de sexos — homens com sífilis para
cada dez mulheres com sífilis — passou de 0,6 (seis homens com sífilis para
cada dez mulheres) em 2012 para 0,8 (oito homens para cada dez mulheres com
sífilis) em 2022.
Nesse caso, são contabilizados também os casos de
sífilis em gestantes, o que aumenta a participação das mulheres no total de
casos de sífilis.
Algumas partes do mundo, no entanto, estão
registrando diminuição nos casos de sífilis entre os homens, como no Canadá.
Ao mesmo tempo, tem havido um aumento nas taxas
entre as mulheres não apenas no Canadá, mas em outros países, o que levou a
taxas mais elevadas de sífilis congênita em vários lugares.
Em todas as Américas, foram registrados 30 mil
casos de transmissão de sífilis de mãe para filho em 2021, um número que as
autoridades de saúde descrevem como "inaceitavelmente elevado".
A transmissão da sífilis a um feto durante a
gravidez pode ter consequências devastadoras, incluindo aborto espontâneo,
partos prematuros, mortes de bebês ao nascer e baixo peso no nascimento.
Nos EUA, as maiores taxas de sífilis congênita são
observados entre mulheres negras e hispânicas.
"Isso reflete a desigualdade e o racismo
subjacentes que ainda temos na nossa saúde pública e na infraestrutura
médica", diz Maria Sundaram, pesquisadora associada do Marshfield Clinic
Research Institute, no Estado de Wisconsin.
Grupos de mulheres vulneráveis, como as que estão
desalojadas ou que lutam contra o abuso de substâncias, são também fortemente
atingidos pela doença. E muitas destas desigualdades foram exacerbadas pela
pandemia de covid-19.
"O consenso na comunidade de saúde pública é
que o aumento das IST, incluindo a sífilis, está provavelmente relacionado à
interrupção dos recursos de prevenção durante a pandemia", aponta
Sundaram.
As desigualdades afetam o acesso a locais que fazem
testes de ISTs, o domínio da língua para se comunicar, entre outros fatores.
Um estudo no
Brasil mostrou uma conexão entre mulheres negras que tinham baixos níveis
de escolaridade e maiores taxas de sífilis congênita.
Em muitos casos, as mulheres têm dificuldade no
acesso a cuidados pré-natais adequados que proporcionem a detecção da sífilis.
Outro estudo
realizado no condado de Kern, Califórnia — que em 2018 representou 17% dos
casos de sífilis congênita do Estado americano, apesar de representar apenas
2,3% da população dele — identificou o papel da situação migratória, de seguro
médico e de violência sexual ou doméstica em mulheres grávidas que procuram
cuidados pré-natais.
Metade das mulheres grávidas ou puérperas
entrevistadas foi identificada como sendo de origem hispânica, latina ou
espanhola.
Um estudo de
2020 sobre a sífilis na Austrália registrou aumento de quase 90% em
relação às taxas registradas em 2015.
Cerca de 4 mil casos de sífilis foram identificados
entre as comunidades aborígines e das ilhas do Estreito de Torres, que
representam apenas 3,8% da população australiana.
Foram relatos problemas no acesso das grávidas ao
rastreamento pré-natal da sífilis em algumas partes do país.
Embora questões econômicas e a pandemia impactem o
acesso à saúde, também ocorreram mudanças no comportamento das pessoas em
relação às ISTs.
"Em meados da década de 1990, com o advento da
terapia antirretroviral para o HIV, houve uma grande mudança", diz Mena.
"Agora, graças aos avanços na prevenção e
tratamento da infecção pelo HIV, a AIDS é vista como uma doença crônica. O
risco de infecção pelo HIV já não é um incentivo para as pessoas usarem
preservativos ou adotarem outras estratégias de prevenção contra as ISTs".
Mudanças nas práticas sexuais têm sido estudadas
por pesquisadores no Japão, que observam a ligação entre aplicativos de namoro e
casos de sífilis.
Eles concluíram que o uso de aplicativos de namoro
estava "significativamente associado à incidência de sífilis",
ligando então o uso de aplicativos a uma maior incidência de sexo casual
desprotegido.
Isso é algo que Sasaki Chiwawa, que escreve sobre a
cultura jovem japonesa e o trabalho sexual, também encontrou nas suas conversas
com profissionais do sexo.
Chiwawa diz que cada vez mais profissionais do sexo
não usam preservativos e que não há obrigação por parte dos clientes de serem
testados para ISTs. Quando as trabalhadoras do sexo contraem uma infecção,
tendem a atribuir isso ao "azar", diz Chiwawa.
"A maioria deles prioriza ganhar dinheiro em
vez do risco."
Para a maioria das autoridades de saúde, o caminho
para combater a sífilis é claro: já temos os medicamentos para combatê-la, uma
vez que a penicilina continua a ser o melhor tratamento, apesar da crescente
incidência de resistência aos antibióticos.
Mais testes, melhor divulgação para combater o
estigma associado à doença, juntamente com uma maior sensibilização do público
para encorajar práticas sexuais mais seguras também têm um grande papel.
"Somos criaturas sociais, por isso não
deveríamos ficar mais constrangidos por um diagnóstico de IST do que um de
gripe", diz Crossman.
"Estamos tentando mudar o foco dos testes de
ISTs como algo assustador para algo que faz parte do bem-estar sexual, uma
parte importante de ter uma vida sexual segura e agradável".
Mas os cientistas até agora não conseguiram chegar
a uma única explicação para o fato de a incidência de sífilis estar aumentando
mais rapidamente do que de outras ISTs.
Não há evidências fortes que sugiram que as cepas
em circulação tenham se tornado mais virulentas, diz Mena.
A resistência aos antibióticos também não é
suficientemente grande para explicar os picos da doença, afirma Bogoch.
Por sua vez, Tushar, que abre esta reportagem,
continua a fazer testes a cada três meses.
"Devíamos nos sentir confortáveis em falar
sobre a sífilis", diz ele.
"As ditas pessoas bem informadas recorrem a
acusações em vez de pensarem nisso cientificamente. Estamos fazendo sexo:
coisas acontecem."
Fonte: BBC News Brasil
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