Escravos vendidos por jesuítas: como a escravidão ajudou a construir a
Igreja Católica dos EUA
No início da primavera de 1860, E. M. Dudley,
do condado de Livingston, Kentucky, publicou um anúncio no jornal
local oferecendo uma “recompensa de duzentos dólares” pelo retorno são e salvo
de seu “menino Manuel”. O alerta não era um apelo pelo retorno do filho
de Dudley. Em vez disso, ele esperava que alguém devolvesse o homem de
trinta e cinco anos que Dudley escravizava.
Quando eu leciono aos estudantes sobre a
instituição da escravidão, muitas vezes me detenho em avisos que pedem ajuda
para o retorno da “nossa menina”, de um “tio” ou de uma “tia” de volta à casa
escravagista onde trabalharam até o fim de suas vidas, ou até que uma
oportunidade financeira os enviasse para outro sistema familiar construído
sobre essa instituição peculiar.
Aqui, a linguagem do parentesco é uma forma
insidiosa de suavizar as relações mais cruéis. Mas os escravizadores se
recusavam a usar termos familiares quando seriam os mais corretos: para
descrever seus filhos nascidos da violência sexual.
Em “The 272: The Families Who Were Enslaved
and Sold to Build the American Catholic Church” [Os 272: as famílias
que foram escravizadas e vendidas para construir a Igreja Católica
estadunidense], a jornalista Rachel L. Swarns apresenta aos leitores histórias de famílias
– como foram constituídas, destruídas e remontadas.
O título do livro se refere às 272 mulheres,
crianças e homens vendidos pela liderança da Universidade de
Georgetown em 1838. Swarns narrou a história dessa venda nas
páginas do New York Times, e os estudiosos escreveram extensivamente sobre
isso. A história chamou muita atenção devido à sua pungência, assim como à
presença dos descendentes dos 272 nos mais recentes debates públicos sobre
escravidão, reparações e a necessidade de um acerto de contas raciais
nos Estados Unidos.
Estudando a época desde os primeiros dias dos
jesuítas nos Estados Unidos até a Guerra Civil, Swarns deixa claro que a venda de 1838 foi apenas um dos
muitos momentos em que a exploração de pessoas escravizadas moldou e garantiu o
futuro da universidade e da ordem jesuítas.
No centro do livro estão duas
famílias. Swarns nos apresenta as pessoas escravizadas nas plantações
de propriedade dos jesuítas no sul de Maryland; elas deram origem às
linhagens Mahoney e Queen. Hoje, seus descendentes lutam em
defesa de seus ancestrais e de si mesmos.
A outra família que encontramos é formada pela fé:
os padres da ordem jesuíta. Essa fraternidade de fiéis foi incumbida de
estabelecer uma presença católica em uma nação recém-formada e de criar
instituições católicas de ensino, e encontramos brevemente alguns dos jesuítas
que procuram entender melhor o papel de sua ordem na propriedade e no comércio
de seres humanos.
O livro começa com a chegada dos jesuítas
a Maryland em 1634, quase um século após a fundação dos jesuítas em
1540. “Ninguém sabia se o catolicismo iria prosperar ou definhar na colônia
incipiente naqueles primeiros anos, mas os primeiros relatos não eram
promissores”, escreve Swarns. Alguns padres retornaram
à Inglaterra antes de decorrer um ano inteiro; a febre amarela e
outras doenças varreram a comunidade, e adversários protestantes expulsaram os
católicos de Maryland.
Em pouco tempo, os jesuítas proselitistas restantes
encontrariam Ann Joice, cujos descendentes os jesuítas
escravizaram. Joice chegou a Maryland como serva contratada
de Charles Calvert, o herdeiro católico da colônia de Maryland.
O cativeiro dela não foi tão estritamente definido quanto as condições legais e
sociais que moldariam as 272 pessoas escravizadas que vieram depois dela.
Swarns explica como a servidão contratada
permitia alguma maleabilidade nas relações entre as pessoas escravizadas e
aqueles que as mantinham no serviço: “Nas primeiras décadas após a chegada dos
jesuítas, Maryland se tornou um lugar onde eles poderiam arrancar
alguma autonomia dos empregadores e escravizadores, e saborear uma medida de
independência e liberdade”.
Mas essa realidade acabaria por mudar,
e Joice sentiria isso intimamente. Apesar de seu status como pessoa
contratada e da promessa de Calvert de que ela seria libertada após o
término de seu serviço, Joice encontraria uma sociedade que “restringiu
dramaticamente os direitos dos negros”. A aceitação de Cristo como
salvador já não fazia diferença nas perspectivas de liberdade. Com a chegada de
mais colonos e o cultivo de recursos agrícolas, as pessoas escravizadas eram
cada vez mais vitais para a região emergente, e os contratos flexíveis já não
eram honrados.
Os papéis do contrato de Joice foram
queimados, e as cinzas foram tudo o que restou da “única evidência tangível de
sua condição de livre”. No fim, o roubo da liberdade de Joice passou
de fato a assunto de litígio, passando a ser uma história familiar vagamente
lembrada.
Enquanto isso, os jesuítas conseguiram sobreviver
aos ataques às suas plantações no sul de Maryland. durante a Guerra
Revolucionária e a Guerra de 1812 devido aos escravos que os
serviam e protegiam. Nesses momentos de desordem e de agitação, as pessoas
escravizadas esperavam que sua lealdade garantisse proteção ou que sua fuga da
escravidão fosse bem sucedida. Eles não tiveram tanta sorte. Apesar da defesa
de padres e leigos que consideravam a escravatura abominável, houve pouca
reparação pelo seu cativeiro.
Embora os escravos que trabalhavam para os jesuítas
nas plantações de St. Inigoes e White Marsh, em Maryland,
se adaptassem às rotinas de vida definidas pelo seu valor de trabalho, eles
também estavam em sua própria jornada para se definirem. Swarns presta
atenção ao aprofundamento de seu compromisso com o catolicismo e à construção
de uma comunidade entre familiares e amigos.
Enquanto isso, os jesuítas
em Georgetown estavam se comprometendo com o que o fundador da
universidade, John Carroll, chamava de “o objeto mais próximo do meu coração (...) uma faculdade
neste continente para a educação da juventude, que poderia ao mesmo tempo ser
um seminário para futuros clérigos”.
À medida que seu relato se desloca das plantações
jesuítas do sul de Maryland para a capital do país, e à medida que os
jesuítas tentam fazer crescer Georgetown e cumprir a missão da
universidade, Swarns revela que a solidificação da escravidão
permitiu o fortalecimento do ensino superior jesuíta. Os jesuítas debateram
durante muito tempo sobre a moralidade da escravidão, envolveram-se na venda de
pessoas escravizadas e ignoraram a advertência do Vaticano em relação
à propriedade de escravos católicos norte-americanos na época da crise
financeira do fim da década de 1830.
A manutenção da faculdade, o desconto nas
mensalidades para atrair estudantes e o apoio a seu pessoal jesuíta
representavam uma série interminável de tensões para os superintendentes da
faculdade. Os líderes jesuítas e universitários Thomas F. Mulledy e William McSherry, respectivamente, argumentaram que, entre os bens
mais valiosos que poderiam enriquecer Georgetown, estavam as pessoas que
trabalhavam nas plantações de tabaco e cuidavam dos jesuítas nas áreas rurais.
Ao organizar a venda dos 272, eles traíram suas
promessas de não separar as famílias que serviram à ordem durante mais de um
século. Ao facilitar a venda de pessoas escravizadas para plantações
na Louisiana, eles não podiam garantir que as famílias seriam mantidas
intactas ou que teriam o que precisavam para praticar sua fé católica.
Swarns tenta ilustrar o medo absoluto e a
ansiedade inabalável sentidos pelos 272 quando foram encurralados em navios que
se dirigiam para o sul. Ficamos sabendo um pouco sobre como eles se
restabeleceram em novas plantações na Louisiana, maltratados e
fragmentados, mas firmes em sua lealdade às suas famílias – e, para muitos,
ainda fiéis à religião de seus escravizadores.
Swarns fala-nos de Louisa, que
conscientemente continuou escolhendo o catolicismo: “Louisa nunca se
esqueceu de que os padres jesuítas venderam a ela e a sua família. Mas sua fé
não pertencia àqueles homens duros. As orações, os hinos, as contas do rosário,
os rituais dos fiéis também pertenciam a ela e às multidões de católicos negros
que se estabeleceram em Nova Orleans”.
Do ponto de vista atual, um livro que aborda as
formas pelas quais a Igreja Católica capitalizou a escravidão pode
parecer um relato que simplesmente revela segredos de
família. Swarns nos ajuda a ver que, embora a escravidão fosse uma
questão de negócios, política e religião na nação antebellum, ela
nunca esteve fora ou sem relação com questões civis e espirituais.
O epílogo nos leva ao passado recente e a eventos
que eu testemunhei como membro do corpo docente em Georgetown, onde
lecionei história afro-americana por mais de uma década.
Durante esse período, fiz parte da primeira
formação do Grupo de Trabalho sobre Escravidão, Memória e
Reconciliação da universidade.
Swarns nos apresenta pessoas como Jeremy
Alexander, funcionário da Universidade de Georgetown e descendente de
um dos 272, à medida que adquire uma maior compreensão dos ramos e das raízes
de sua árvore genealógica. Ela também capta um momento que nunca esquecerei: o
dia em 2017 em que o Pe. Timothy Kesicki, presidente da Conferência Jesuíta do Canadá
e dos Estados Unidos, viajou para Georgetown para apresentar um
pedido formal de desculpas pelo envolvimento dos jesuítas no sistema de
escravatura. Depois que ele apresentou seu pedido de desculpas no Gaston
Hall da Georgetown, olhei para a sala em busca de reações. Suas
palavras foram recebidas com uma série de emoções: ceticismo, perplexidade,
lágrimas e exaustão.
As respostas ao pedido de desculpas
de Kesicki, assim como as diversas iniciativas que abordam a injustiça
racial e atendem às necessidades das comunidades habitadas por descendentes
na Louisiana, são tão diversas e amplas como qualquer família.
Assim como qualquer família, os indivíduos que se
encontraram por meio do envolvimento público da Georgetown com sua
história de escravidão têm de lidar com a tradição e as descobertas familiares
sobre aqueles que já morreram há muito tempo, e muitos deles optaram por passar
mais tempo com os vivos.
Cada um tem sua própria visão de justiça para seus
ancestrais, e, embora não possa haver nenhuma história representativa das
complexidades da escravidão, ainda pode haver o desejo interminável e
generalizado de se mover e agir, de procurar a reconciliação e, talvez,
finalmente, de curar.
Fonte: Por Marcia Chatelain, em Commonweal,
tradução de Moisés Sbardelotto, para IHU
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