BAHIA: SE O ESTADO CONTINUAR OMISSO, OS EMPRESÁRIOS VÃO ANIQUILAR OS QUILOMBOLAS
AS PALAVRAS QUE MARCAM o ano de 2023 para os
quilombolas não fogem à regra de outros termos que invariavelmente os
acompanha: assassinato, violência, invasão de terra, cobiça empresarial,
disputa contra uma elite econômica e uso da máquina pública para suprimir seus
direitos constituídos.
A morte de Mãe Bernadete é o símbolo desse processo
de destruição e silenciamento conectado à própria história do Brasil. Em 17 de
agosto, ela foi assassinada
com 12 tiros dentro do quilombo Pitanga dos Palmares, que liderava em Simões
Filho, na Bahia.
Seis anos antes, seu filho, Flávio Gabriel
Pacífico, o Binho do
Quilombo, também teve a vida ceifada de forma violenta. Como mostramos
no Intercept Brasil, os dois lutavam contra a
implantação de um aterro vizinho a eles, dentro de uma área de
proteção ambiental no Vale do Itamboatá. A empresa é a Naturalle, de
propriedade de Vitor Loureiro Souto, filho de Paulo Souto, ex-governador da
Bahia por dois mandatos.
Revelamos também que o inquérito da Polícia Federal
que investiga a morte de Binho do Quilombo, ainda em curso, cita nominalmente a
Naturalle, de Vitor Souto. O empresário trocou o CNPJ entre suas
próprias empresas para continuar operando o aterro, depois que a Naturalle esteve na
mira das investigações da PF.
Três meses após o assassinato da líder quilombola,
a Polícia Civil da Bahia deu por concluída a investigação sobre a morte de Mãe
Bernadete e relacionou o fato ao tráfico de
drogas na região – sem qualquer relação com a questão do aterro ou qualquer outra
causa que era importante para Mãe Bernadete.
O assassinato de Mãe Bernadete pode ser lido por
muitos vieses. Um dos principais é a inoperância do estado em proteger uma
liderança abertamente ameaçada de morte. Vinte e dois dias antes de morrer de
forma brutal, Mãe Bernadete esteve com a então ministra Rosa Weber, à época
presidente do STF, e a alertou do
risco que corria. Fazia dois anos que ela estava inscrita no
programa de proteção aos defensores de Direitos Humanos, do governo
federal. A execução do programa cabe ao governo do estado e garantia à líder
quilombola escolta policial e monitoramento por câmeras de vigilância.
A viatura policial, no entanto, só ia no quilombo
uma vez no dia, alternando entre o turno da manhã e da tarde. Das sete câmeras
que deveriam gravar a rotina de Mãe Bernadete, apenas três funcionavam no
momento do crime. O sucateamento do estado na proteção de uma vida quilombola
não é apenas omissão: é também projeto.
O estado brasileiro deu mostras, como sugerem
nossas reportagens publicadas no ano de 2023, o quanto pode agir falhando na
proteção destes cidadãos, mas também os atacando diretamente, sobretudo quando
ocupam terras cobiçadas pelo predatório turismo da
destruição.
Também na Bahia, em área próxima à famosa e
badalada Praia do Forte, mostramos a ação da Polícia Civil atacando quilombolas e
confessando defender os direitos de um empresário local na disputa por
terra.
Ainda por lá, revelamos como o então
prefeito de Mata de São João, o milionário João Gualberto, do PSDB, teria
usado a estrutura municipal para expulsar
moradores em área próxima à reserva Sapiranga. Gualberto é sócio de
condomínios de luxo e empreendimentos pomposos em Praia do Forte. Em sua declaração
de candidato, constam aeronave, rede de supermercado e mansão.
A luta no Brasil, desde sempre, é uma luta por
terras. E justamente nesse ponto os quilombolas, mesmo sendo donos de lotes por
direito ancestral, são vistos como empecilhos e custos pelo grande
“empresariado investidor” – as aspas aqui, claro, são irônicas.
No discurso, pode até haver uma preocupação em
incluí-los, criar projetos de preservação, falar em justiça social e equidade
racial, sacando outras tantas palavras prontas do vocabulário da agenda
sustentável. Mas, em muitos casos, a ação é inevitavelmente aniquiladora.
No sul da Bahia, José Roberto Marinho, dono da Rede
Globo, é sócio de um projeto que quer ocupar quase 20% da ilha de
Boipeba, suprimindo vegetação nativa e impactando no modo de vida de
comunidades tradicionais e quilombolas.
A Fundação Roberto Marinho, que ele preside,
participou da COP 28, em Dubai, e assinou um acordo de
compromisso brasileiro da filantropia sobre mudanças climáticas. Entre alguns termos,
está “conservar nossas florestas e biomas”, além reconhecer e valorizar “as
comunidades indígenas e tradicionais”, com seus “saberes para a conservação dos
biomas, do patrimônio ecológico para o desenvolvimento de soluções”.
Na prática, o resort de Marinho – com suas duas
pousadas, outras 25 casas, pista de pouso e uma marina de médio porte para
desembarque de lanchas – vai gerar
impactos que vão desde escassez de água na ilha, aumento do fluxo de
pessoas no espaço, barulhos constantes e fechamento de rotas seculares de
acesso, conforme apontam biólogos e pesquisadores ouvidos por mim.
A saída para interromper esse aniquilamento
empresarial contra os quilombolas é a atuação rigorosa do estado, que até aqui
tem sido, ora omisso, ora colaborador deste projeto.
O Instituto Nacional de Colonização e Reforma
Agrária, o Incra, não pode demorar anos para regularizar titulação de terra,
deixando os quilombolas sem segurança fundiária e à mercê da cobiça e da
grilagem. Da mesma forma que crimes envolvendo lideranças quilombolas precisam
ser esclarecidos no tempo necessário e devidamente punidos no rigor da lei.
A filantropia e a consciência empresarial podem,
sim, contribuir para uma melhor relação com o meio ambiente e com populações
tradicionais. Mas quem deve, por obrigação, disciplinar e zelar por eles é o
estado brasileiro – e precisa fazer isso de forma urgente.
Fonte: The Intercept
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