A complicada relação do Brics com o Ocidente
É um revés que o Brics vai conseguir superar: a
Argentina não entrará para a aliança em janeiro. Mesmo assim, o grupo terá
cinco novos países a partir de 2024: as três potências do setor petrolífero
Arábia Saudita, Emirados Árabes Unidos e Irã e também o Egito e a Etiópia.
A ampliação consolida o Brics no papel de voz do
chamado Sul Global e dá mais peso ao grupo na política internacional. A
ampliação se dará durante a presidência russa do bloco e, na cúpula de outubro,
quando o presidente Vladimir Putin receber os demais líderes na cidade de
Kazan, a foto oficial terá o dobro de participantes.
É impressionante a evolução pela qual o grupo dos
países do Brics passou desde que o economista Jim O’Neill, do banco de
investimentos Goldman Sachs, criou a sigla, em 2001, para se referir a um grupo
de países emergentes de crescimento acelerado que teria um peso cada vez maior
na economia mundial.
Em 2009, os quatro países da sigla original Bric –
Brasil, Rússia, Índia e China – reuniram-se pela primeira vez. Em 2011, a
África do Sul tornou-se o primeiro país africano a entrar para o grupo, que
passou a se chamar Brics.
A evolução é ainda mais impressionante se for
considerado que, no âmbito do Brics, democracias, como a Índia, o Brasil e a
África do Sul, cooperam pragmaticamente com regimes autoritários, como a China
e a Rússia, diferenças ideológicas à parte.
Mesmo os combates mortais entre militares indianos
e chineses na fronteira disputada entre os dois países, em 2020, não implodiram
o Brics.
·
Nem ocidental nem antiocidental
Os novos membros também trazem consigo enorme
potencial de conflitos: Egito e Etiópia se desentendem por causa da água do
Nilo; a sunita Arábia Saudita e o xiita Irã são arqui-inimigos e lutam há
décadas pela hegemonia no Golfo Pérsico.
O que une todos esses países, na síntese feita pelo
cientista político Johannes Plagemann, do centro de estudos alemão Giga, é o
desejo de uma ordem mundial menos dominada pelo Ocidente.
Isso não implica rejeição ao Ocidente. Como os
membros do Brics só podem tomar decisões por unanimidade, nem China nem Rússia
e futuramente nem o Irã podem impor suas posições. E, para a maioria dos países
do bloco, deve valer o que o ministro do Exterior da Índia, Subrahmanyam
Jaishankar, falou: “A Índia não é ocidental nem antiocidental”.
·
Sinal de independência
A adesão ao Brics, como explica o cientista
político alemão Günther Maihold, não apenas oferece um novo status na política
internacional como também a oportunidade de escapar à visão esquematizada de
uma crescente competição geoestratégica que coloca a China e a Rússia de um
lado e o Ocidente do outro.
“Com a adesão ao Brics fica claro que não se quer
aderir a esse esquema e, em vez disso, quer-se adotar uma posição
independente”, diz Maihold, que leciona na Universidade Livre de Berlim.
É como um sinal dessa independência que deve ser
entendida a recepção cheia de pompa dada a Putin, no início de dezembro, pelos
futuros membros do Brics Arábia Saudita e Emirados Árabes Unidos – apesar da
invasão russa da Ucrânia e de um mandado internacional de prisão do Tribunal
Penal Internacional (TPI).
Em Abu Dhabi, os anfitriões não apenas deixaram a
comitiva do líder do Kremlin percorrer avenidas decoradas com bandeiras russas
como aviões de combate pintaram as cores da bandeira russa no céu. Tanta
hospitalidade quase fez esquecer que os Emirados Árabes Unidos são aliados dos
EUA, que mantêm três bases militares no país.
·
Vantagens para a Rússia
A presidência do Brics e a possibilidade de
orientar tematicamente a cúpula de 2024 oferecem vantagens à Rússia, analisa
Plagemann. A primeira é poder demonstrar, dentro da Rússia, que o país não está
tão isolado quanto o Ocidente gostaria. Outra é poder contornar o Ocidente e
suas sanções econômicas e vender matérias-primas a bons preços.
Já hoje os aliados de países ocidentais que fazem
parte do Brics praticamente ignoram as sanções à Rússia. Em parte elas são até
mesmo entendidas como sinal de alerta: as penas impostas à Rússia e ao Irã, o
congelamento de reservas em dinheiro e a exclusão do sistema internacional de
pagamentos Swift deram força à busca por alternativas ao sistema financeiro
dominado pelos EUA.
Uma alternativa real é difícil de ser construída e
demanda tempo, mas os Emirados Árabes Unidos, por exemplo, permitem que Índia e
China deixem o dólar de lado e paguem com moeda própria suas aquisições de gás
e petróleo.
E há ainda o Novo Banco de Desenvolvimento, também
conhecido como o banco de desenvolvimento do Brics, com sede em Xangai, na
China, e presidido pela ex-presidente Dilma Rousseff.
A adesão de Arábia Saudita e Emirados Árabes Unidos
pode significar um aumento de capital para o banco. A instituição permite, aos
países-membros, obter empréstimos para projetos nacionais de desenvolvimento ou
também em caso de endividamento público “sem estar atrelado às típicas
condições impostas pelo Banco Mundial e pelo Fundo Monetário Internacional
(FMI)”, explica Maihold.
·
Interesses em vez de valores
Plagemann prevê uma ascensão internacional do Sul
Global e a consequente perda de influência do Ocidente. “Isso significa que vai
se dar menos valor a concordâncias de caráter ideológico, à promoção da
democracia, aos direitos humanos e assim por diante e, em vez disso, todos os
envolvidos vão se concentrar mais em querer implementar os próprios
interesses.”
Maihold concorda. “O que a ministra alemã do
Exterior diz em todo o mundo, que a comunhão de valores é a base para a
cooperação, não é visto como base”, afirma. “O que o Ocidente tenta apresentar
como uma ordem regrada é uma sobre a qual os membros do Brics dizem: ‘Nós não
criamos essas regras. E não há razão para aderirmos ou estarmos sujeitos a esse
conjunto de regras’.”
Plagemann diz que é preciso encarar o Brics como um
parceiro em áreas em que a cooperação é possível. “Se as grandes instituições
internacionais, como as Nações Unidas, estão se tornando cada vez menos capazes
de agir, então os grupos e instituições devem ao menos serem capazes de ter um
potencial de cooperação. Não faz sentido construir uma oposição”, argumenta.
Maihold recentemente apresentou uma sugestão de que
como o Ocidente e o Brics podem dialogar: por meio de fóruns de negociadores do
G7 e do Brics. Esses nem mesmo teriam de ser públicos e poderiam se ocupar de
setores menos afetados pela concorrência geopolítica, como meio ambiente e
política global de saúde.
Ø Geopolítica
do Acordo UE-Mercosul: posicionamento regional no concerto internacional. Por
Nilo Meza
Há cerca de 10 anos, o MERCOSUL tem sido uma
vitrine de cenários de tensão e oposição entre seus membros, provocando uma
perda de dinamismo no comércio intrazona e impedindo o consenso
integracionista. A “alta tensão” ficou a cargo de A. Fernández e J. Bolsonaro.
Com a chegada de Lula uma nova página parecia se abrir, mas 'ah, Milei chegou!'
prometendo uma “motosserra” para tudo que se oponha à sua pregação “liberal”.
Emmanuel Macron foi particularmente pouco
transparente na negociação do Acordo de Associação discutido na nossa nota
anterior. Alberto Fernández, da Argentina, também contribuiu com sua parte
nesse sentido. Portanto, se devemos procurar os responsáveis pelo fato do
Acordo não ter sido assinado na última cúpula de presidentes, basta observar
atentamente as formas refinadas de hipocrisia que levaram o “sim mas não” a
níveis “diplomáticos”. em que uma afirmação é, ao mesmo tempo, uma negação.
A “preocupação” francesa e argentina com “a defesa
da biodiversidade na bacia amazônica” foi apenas um pretexto para deixar
intacto o protecionismo que sequestrou a França e, de alguma forma, a
Argentina. Os fatos mostram que, por trás destas “defesas”, especialmente as
francesas, não havia nada além de sólidos muros não tarifários bloqueando o
comércio da UE com países terceiros. Assim como estão fazendo com o MERCOSUL,
estão fazendo com a Austrália.
Nessa lógica, Macron pôde contar com Javier Milei,
atual presidente da Argentina que durante a campanha eleitoral não escondeu sua
admiração por Bolsonaro, assim como não poupou palavras e frases insultuosas
contra o MERCOSUL e seus líderes. Mas, como vemos, ele mudará as suas promessas
de campanha quantas vezes demande o “sucesso” do seu governo e das suas
relações internacionais. Desta vez, sem pestanejar, jogou no lixo suas críticas
ao MERCOSUL e disse que apoiaria a assinatura do Acordo.
Mas teremos que ver em que critérios ele o apoia.
Por enquanto, é claro que o adiamento da assinatura do Acordo prejudica ambos
os blocos em termos comerciais e, sobretudo, geopolíticos, especialmente no que
se refere à UE e às suas intenções de ter maior impacto na América Latina.
Enquanto a assinatura não chega, os EUA e a China continuarão tendo um campo
aberto para os seus objetivos comerciais e geopolíticos.
Não seria surpreendente que a probabilidade de uma
negociação comercial com a China, proposta pelo Uruguai, em paralelo, pudesse
receber maior atenção dos governantes do MERCOSUL enquanto a UE continue
colhendo margaridas.
Tudo isso enquanto na “grande pátria” se instala,
abertamente, uma das maiores disputas geopolíticas, buscando o domínio sobre o
lítio, o petróleo, os portos e os mares. Mais uma vez, em pleno século XX, a
América Latina recupera o seu estatuto de território sem fronteiras para
incursões imperiais cobertas por acordos comerciais, tecnológicos e logísticos
ao mais alto nível.
Se o Acordo for firmado:
- Seria
configurado um cenário que facilitaria a construção de uma estratégia
birregional com poder de limitar os impactos inconvenientes do sistema
bipolar que a China e os Estados Unidos vêm protagonizando. O MERCOSUL
poderia se beneficiar de uma aliança estratégica com uma das regiões mais
estáveis do mundo num contexto internacional cada vez mais complexo e
instável.
- 94% do
PIB da América Latina seria comprometido, enquanto diminuiria os
compromissos atuais com os EUA (44%) e a China (14%). O acordo UE-MERCOSUL
interfere em quase 25% do PIB mundial, fato que confere maior presença e
profundidade às relações da região com a UE e à associação com o mundo. Em
questões geopolíticas, o acordo transforma a região num jogador global.
- Seria
criado um mercado entre a UE e a América Latina com mais de 770 milhões de
pessoas, excedendo, por exemplo, os 630 milhões alcançados pelo acordo
UE-Japão em 2018. Um cenário deste tipo poderia ser uma plataforma para
relançar o processo de integração intrarregional usurpadora por razões
políticas e ideológicas.
- Melhoraria
a produção de exportação de alimentos com valor agregado, especialmente
derivados da produção pecuária: carne, laticínios, etc. Em 2022, 54,7% das
exportações brasileiras de carne bovina (em volume) foram para a China e
apenas 3,8% para a UE. E no período entre janeiro e setembro de 2023,
apenas 13,2% de todas as exportações agrícolas brasileiras (valor) foram
para a UE, em comparação com 53,5% para a Ásia.
- Favoreceria
a reedição da onda integracionista dos anos 80 e 90 do século passado,
embora sob condições de reformas e processos típicos destes tempos. Tanto
a inteligência artificial como as guerras em curso, o crescimento
explosivo da China, a insultuosa concentração de riqueza e os maiores
abismos de desigualdade, são factores de elevada incidência no desenho de
estratégias integracionistas.
- Seria
um fator muito importante na reformulação da arquitetura do comércio
global que, até agora, a OMC tem liderado. A onda de acordos comerciais e
de investimento bilaterais ou interblocos dá sinais claros de uma nova
forma de fazer comércio e finanças onde o multilateralismo cede espaço.
- Afetaria
estruturalmente a oferta dos EUA feita na Cúpula das Américas de 2022 (Los
Angeles). O próprio Biden ofereceu o “touro e o moro” embalado na Aliança
para a Prosperidade das Américas com a intenção de frear a presença
crescente da UE e da China na região, verdadeiros concorrentes na disputa
pela hegemonia mundial e, agora, sobre seu “quintal”.
- Ambos
os blocos melhorariam os seus níveis comerciais e as suas posições
negociadoras com os EUA e a China, ou qualquer outro país com pretensões
hegemônicas. Por exemplo, as exportações brasileiras de carne bovina, que
hoje vão principalmente para a China (55%) poderiam ser redirecionadas
para melhorar os escassos 3,8% que vão para a UE.
- O
MERCOSUL retomaria o caminho de integração quase imobilizado nos últimos
10 anos. A sua importância geopolítica em tempos em que o multilateralismo
está enfraquecendo frente ao crescente protecionismo é inegável. Seria uma
clara expressão de vontades destinadas a encarar, de forma conjunta, os
desafios da geopolítica internacional com regulamentações previsíveis e
relativamente estáveis.
Fonte: Deutsche Welle/Opera Mundi
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