Por que desenhar é o melhor detox digital
Seja no corpo ou na pedra, desenhar, sem dúvida, é
a forma mais
antiga de arte visual.
O desenho mais antigo conhecido, feito por seres
humanos, foi descoberto em 2021 na caverna
Blombos, na África do
Sul. Cerca de 73 mil anos atrás, uma mão humana pegou um lápis de cor ocre
e fez um desenho hachurado sobre uma lasca de pedra silcrete — um mineral
parecido com concreto composto por areia fina e cascalho.
O desenho está entranhado em todos nós. É o nosso
primeiro meio de expressão e criatividade, segundo Julia Balchin, diretora da
Escola Real de Desenho, em Londres.
"Durante a infância, antes mesmo de aprender a
falar, andar ou ler, você pode desenhar", explica ela. "Por isso, é
muitas vezes nossa primeira forma de expressão."
Desenhar sempre foi fundamental para a prática de
todos os artistas, desde o Renascimento. Foi ali que o desenho
floresceu, com Leonardo da Vinci (1452-1519) criando estudos anatômicos
detalhados do corpo humano.
Atualmente, os poderosos filmes do artista
sul-africano William Kentridge são criados com desenhos, enquanto a britânica
Tracey Emin expressa em seus desenhos o seu luto e
solidão pessoal.
Na época, o mundo acadêmico das artes considerava
que o desenho era algo "muito antiquado", especialmente o desenho de
modelos vivos. Instituições como a Escola de Belas Artes de Slade e a Real
Academia de Artes, ambas em Londres, pararam de ensinar a desenhar.
A Escola Real de Desenho (RDS,
na sigla em inglês) foi criada no ano 2000 para preencher essa lacuna e se
transformar em "um local para onde os artistas e as pessoas que queriam
desenhar pudessem vir para desenhar".
Atualmente, o desenho voltou a ser popular. As
pessoas apreciam essa atividade pelas suas qualidades terapêuticas e pelo senso
de "fluxo" que ela gera, especialmente desde os lockdowns
da pandemia de covid-19.
As matrículas de alunos (online) da RDS dobraram em
2020 — e continuam apresentando crescimento estável, passando de 1 mil para os
atuais 3 mil alunos por semana. E o desenho de modelos vivos representa mais da
metade dos seus quatro módulos.
"Acho que o que se demonstrou aqui foi um
desejo real de toque e contato humano", afirma Balchin. "Se as
pessoas não podiam ficar perto de outros seres humanos, elas os
desenhavam."
Os alunos confirmaram que o desenho ajudou a
melhorar sua saúde mental. "Muitos vieram exclusivamente para isso... para
reduzir a velocidade da vida."
Pegar um lápis ou carvão e fazer traços de forma
consciente nos conecta às nossas habilidades tácteis, ao sentido do tato, e
oferece um descanso do interminável esgotamento digital. E isso é importante
para a saúde
mental.
No Reino Unido, o próprio NHS (o sistema público de
saúde) oferece arteterapia para alguns pacientes.
Quando a artista britânica Emily Haworth-Booth
começou a sofrer de encefalomielite miálgica (síndrome da fadiga crônica), ela
não conseguia trabalhar. Tentar ler ou escrever a "fazia girar",
conta ela no livro Ways of Drawing ("Formas de
desenhar", em tradução livre).
Ela percebeu que o desenho consciente "se
tornou uma espécie de âncora que eu podia lançar para ficar firme, para me
tranquilizar... eu estava 'aqui', a realidade era sólida".
Desenhar "claramente diminuiu minha ansiedade
e me fez respirar mais lentamente", permitindo que "ocorresse a
cura", relembra ela.
Após uma sessão de desenho, ela sentia "o
alívio e a dose de endorfina que eu experimentava depois, digamos, de uma aula
de ioga ou de uma sessão de psicoterapia muito proveitosa".
Claire Gilman é curadora-chefe do Centro de Desenho de Nova York, nos
Estados Unidos. Ela também observou um aumento da paixão pelo desenho durante o
lockdown — e esse crescimento continua até hoje.
"Naquele momento, os artistas voltaram a
desenhar por muitas razões, até porque seus estúdios ficaram
inacessíveis", ela conta.
Mas Gilman reconhece que "o desejo de pegar um
lápis ou caneta e imediatamente traduzir seus sentimentos para o papel",
especialmente em "momentos desafiadores", tem apelo universal.
Gilman e Roger Malbert, curador e escritor sobre
arte contemporânea, produziram em conjunto o livro Drawing in the
Present Tense ("Desenhar no tempo presente", em tradução
livre), que é uma visão geral de "diversas abordagens de desenho",
ricamente ilustrada.
O trabalho dos 74 artistas contemporâneos
selecionados reflete "o papel do desenho como forma de abordar a
instabilidade e os traumas sociais pessoais", entre outras coisas.
Malbert descreve o propósito do desenho como
"ensinar você a olhar e observar o mundo de forma diferente".
"Se você registrar o que está vendo... você
coloca o mundo na sua consciência de forma muito direta", explica ele.
"Isso está disponível para as pessoas que desenham em todo o mundo."
Gilman acredita que desenhar oferece
particularmente "um descanso para as telas de que somos tão dependentes.
Uma aula de desenho de modelos vivos, especialmente, força você a olhar para o
mundo, sem que ele seja mediado por uma tela, e traduzi-lo."
·
Propriedades curadoras
A artista chinesa Zhang Yanzi é apresentada no
livro.
Seu amor pelo "medicina e bem-estar
espiritual" inspira seus delicados desenhos de máscaras chinesas e partes
de flores. Eles retratam "a misteriosa interação entre fenômenos mentais e
físicos e as aflições da mente e do corpo".
Zhang acredita que a arte tem "o poder de
aplacar o sofrimento psicológico".
Malbert faz referência à noção das propriedades
curativas do desenho.
"Sempre desenhei de forma suavemente
terapêutica", ele conta. "Quando desenho a natureza, passo o tempo
concentrado, sentado em um ambiente natural, desenhando... definitivamente,
melhora o estado de espírito."
Ele compara sua atividade com ioga, "quando
você não pensa em mais nada". Como Balchin, ele acha que o desenho pode
ser uma forma de "meditação".
O artista britânico John Hewitt afirma que sua
eventual ansiedade por fazer um desenho "ruim" é compensada pelo
prazer causado por "uma linha que flui com perfeição... padrões e ritmos
inesperados, além de outros pequenos sucessos".
Ele fez capas de CD para a banda irlandesa The
Pogues; desenhou pessoas dormindo na rua em Manchester, no Reino Unido,
"para promover a consciência do problema dos sem-teto"; e foi a única
pessoa, exceto pela equipe da BBC, convidada a registrar o funeral do ator
Laurence Olivier (1907-1989) na Abadia de Westminster, em Londres.
Seu sucesso mais abrangente se estabeleceu a partir
de 2013, quando ele começou a postar um desenho (quase) todos os dias no
Instagram. Suas vivas imagens de animais e da vida diária na região dos Peninos
do Sul, no norte da Inglaterra, muitas vezes são desenhadas às pressas, sempre
em cadernos de bolso da marca Moleskine — "a base da minha prática" —
com uma caneta gel Pilot 0,5.
A postagem de Hewitt que recebeu mais curtidas até
agora foi o retrato de um gato. Ele conta que os gatos pretos sempre são mais
curtidos. "O peso da tinta observado nos celulares causa mais impacto, eu
acho."
Mas nem todos os desenhos são de gatos simpáticos.
Hewitt presenciou os atentados
terroristas a bomba de 2005 em Londres, mas não estava com seu caderno de
desenho. Por isso, ele fez 59 desenhos de memória, que foram expostos no Museu
de Londres.
Hewitt também desenhou os últimos dias de sua mãe
no hospital. "Percebi que não havia nada mais que eu pudesse fazer de
forma positiva, então desenhei seu braço, seus travesseiros, a cama",
relembra ele.
E sobre a arte como terapia de saúde mental? O
ponto mais próximo a que Hewitt chegou são seus desenhos feitos em noites de
lua cheia.
"Eles me dão prazer enorme e imediato, pois
não há padrões de 'bons' desenhos. Não tenho ideia de como eles irão sair até
que entro em casa: a surpresa é a recompensa."
O artista britânico Charlie Mackesy começou a
desenhar avidamente com 19 anos de idade, depois que seu melhor amigo morreu em
um acidente de carro.
"Comecei a desenhar como uma espécie de
Forrest Gump reagindo ao trauma", contou ele à revista GQ. "Comecei a
desenhar... e, simplesmente não conseguia [parar]. Foi uma forma de processar
tudo."
Seu livro de ilustrações de 2019, The Boy,
the Mole, the Fox and the Horse ("O menino, a toupeira, a raposa
e o cavalo", em tradução livre), atraiu um exército de admiradores dos
seus comoventes desenhos e suas lições sobre a vida e a amizade.
Malbert afirma que o desenho pode "colocar
você em contato com o mundo e consigo próprio — e pode mudar como você vê as
coisas, ser aquele... conflito social, humanidade, emoções. Pode expandir seu
alcance emocional — e isso é muito profundo."
O livro "Drawing in the Present
Tense", de Clair Gilman e Roger Malbert, foi publicado pela editora
britânica Thames & Hudson.
Fonte: BBC Culture
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