Lula foi vitorioso em 2023 mas será mais difícil tourear o Congresso em
2024
Para um presidente de esquerda, eleito por escassa
margem de votos e minoritário num Congresso amplamente conservador, Lula foi
inegavelmente vitorioso em seu primeiro ano de mandato. Mesmo negociando
pauta a pauta, cedendo espaços no governo, pagando pedágio com a liberação de
emendas e engolindo algumas derrotas, ele conseguiu aprovar o essencial de sua
agenda política. Os bons resultados econômicos coroam uma travessia que parecia
mais difícil. Mas, em 2024, a relação com o Congresso promete ser mais
desafiante.
Um sinal disso está sendo dado nestas últimas horas
do ano, com as primeiras reações políticas (e empresariais) às medidas
fiscais compensatórias anunciadas nesta quinta-feira, 28, pelo ministro da
Fazenda, Fernando Haddad. Especificamente, pelo anúncio de uma medida
provisória que busca contornar a perda de R$ 20 bilhões imposta pelo Congresso
ao aprovar a prorrogação da desoneração da folha de pagamento. Lula vetou a lei
integralmente e o Congresso derrubou o veto. A proposta de Haddad revogará a
lei, substituindo a desoneração plena, para 17 setores econômicos, por uma
reoneração gradual.
A gritaria está aí. Parlamentares já falam em
“afronta ao Congresso” e entidades dos setores empresariais beneficiados
divulgaram uma nota dura, mencionando falta de diálogo e sensibilidade,
lembrando os efeitos positivos da desoneração para a geração de empregos.
Antes de assinar a MP, que parece fadada à
rejeição, pode ser que Lula e Haddad reavaliem o custo político. Pode ser que
paguem para ver. Essa é o primeiro conflito contratado para 2024. E na esteira
dele, pode ser que o Congresso derrube também os vetos a este escandaloso PL do
veneno, que mesmo com os 14 vetos, é um atentado à saúde e ao meio ambiente. E
ao próprio agronegócio, que o patrocinou, pois em breve o mundo estará
falando na toxidade dos grãos brasileiros.
Todos já sabem o que é a desoneração. Desde Dilma,
estes setores pagam não 20% de contribuição previdenciária sobre a folha de
salários, mas de 3% a 5% sobre o faturamento bruto. São calçadistas, construção
civil, vestuário e confecções e...comu nicações, entre outros. Não por acaso a
primeira entidade que assina a nota é a Abert (Associação Brasileira de
Emissoras de Rádio e Televisão). Ou seja, a decisão de Haddad enfrentará a ira
do Congresso, dos empresários e da mídia.
As outras duas medidas compensatórias não
despertaram a mesma reação. Haddad quer limitar as compensações tributárias
(adiar a devolução de impostos já cobrados mas derrubados na Justiça) e cortar
ao meio as vantagens concedidas a empresas aéreas e de eventos, o tal Perse.
Mas isso renderá apenas a metade da perda de receita, fundamental para o
cumprimento da meta de déficit fiscal zero. Ou próxima disso.
Estes são prenúncios para 2024. O que se avista é
um ano político mais difícil, que exigirá cada vez mais a atuação direta de
Lula na articulação política.
Costuma-se dizer que, se o governo vai bem na
economia, o Congresso fica mais dócil. Já foi assim, mas os tempos mudaram.
Estamos assistindo a um empoderamento crescente do Congresso, que lhe confere
autonomia em relação ao desempenho do Executivo.
Não é favor algum reconhecer que o governo termina
o ano colhendo excelentes resultados econômicos, desmentindo todas as previsões
pessimistas. A inflação fechará dentro da meta, o PIB crescerá 3%, a bolsa está
bombando, o dólar e os juros caindo, os empregos aparecendo. A percepção
internacional da economia brasileira, que voltou a ser a nona do mundo, também
está em alta, como demonstram as reclassificações positivas feitas pelas
agências de risco.
Some-se a isso a recriação dos programas
sociais que haviam sido descontinuados ou esvaziados na era Bolsonaro,
iniciativas bem recebidas, como o Desenrola, e a promessa de grandes
investimentos, com os projetos do PAC.
Some-se ainda a exitosa reinserção internacional do
país, para a qual contribuíram tanto a diplomacia profissional como a
diplomacia presidencial de Lula. O Brasil voltou a ser levado a sério nos
fóruns internacionais, está fazendo bonito na questão ambiental e climática,
reconstruiu as relações bilaterais e multinacionais relevantes e até pagou
nossa vexaminosa dívida para com as organizações multilaterais.
Apesar de tudo isso, a popularidade de Lula não
cresce de forma condizente com os resultados do governo. Isso acontece, a meu
ver, porque a polarização calcificou-se. Os bons resultados do governo não
conseguem dissolver a resistência dos que foram capturados pela
extrema-direita, que continua ativa e viva. Quando se pergunta a um
bolsonarista o que está achando da queda dos preços dos alimentos, ele é capaz
de dizer que isso ainda é consequência do desgoverno de Bolsonaro, ou que
tinha que acontecer mesmo, sem explicar por que.
Apesar de todos os bons resultados, o Congresso
continuará sendo uma pedreira para Lula. Não se trata de mera hostilidade da
maioria conservadora ao atual governo que, mesmo sendo amplo, tem DNA de
esquerda. Trata-se do empoderamento estratégico iniciado há alguns anos,
através do controle do Orçamento. Sob Dilma, o Legislativo tornou impositivas
(de liberação obrigatória) as emendas individuais. Com Temer, tornaram
impositivas as de bancada. Com Bolsonaro, criaram o orçamento secreto. Lula o
desmanchou com a ajuda do STF mas agora turbinaram os valores (que chegaram a
R$ 53 bilhões para 2024) e fixaram o calendário para empenho e liberação.
As emendas impositivas (soma das individuais
com as de bancada), passaram de R$ 9,7 bilhões em 2015 para R$ 28,9 bilhões em
2023. Um crescimento de 197%. O nome disso é poder. Poder sobre os recursos
públicos. Apropriação de prerrogativas executivas do presidente pelo
Congresso, a parlamentarização do sistema presidencialista. Como sabido,
só se pode mudar o sistema de governo através de novo plebiscito, mas o
Congresso vem passando o trator sobre seguidos governos.
Em 2024, ano eleitoral, a fome do Congresso
não vai diminuir, pelo contrário. Lula conta com a banda direita, o
Centrão, em algumas matérias. Em outras, essa banda impõe sua pauta,
expressando seus outros alinhamentos. Principalmente, o compromisso com o
agronegócio, que converte seu poder econômico em força política, através da
poderosa Frente Parlamentar da Agricultura, a FPA, que conta com mais de 300
deputados.
Por que o agro tem tanto apoio no Congresso?
Essa é uma pergunta que precisamos nos fazer. O que ganham todos os que
se batem tão fortemente em defesa do agro? Mas isso é outro assunto.
A conclusão aqui é que, na política, 2024 deve ser
mais difícil para Lula. Ele terá que continuar negociando caso a caso, terá que
colocar a mão na massa, atuando pessoalmente, engolirá alguns sapos e precisará
reforçar a articulação política. Mas de olho na rua. Sua popularidade
(derivada da eficiência do governo) é que poderá mitigar um pouco a fúria do
touro. E um bom desempenho da frente de esquerda nas eleições também ajudará.
Lula é criticado à esquerda, dentro e fora do PT,
pelas concessões que faz, pela condescendência e paciência com este Congresso
voraz. Mas, no lugar dele, o que fariam os críticos? Governo minoritário não
cutuca a onça com vara curta.
Fonte: Por Tereza Cruvinel, em Brasil 247
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