sexta-feira, 29 de dezembro de 2023

Relembre as derrotas e vitórias dos povos indígenas em 2023

O ano de 2023 foi de intensa mobilização dos povos originários. A frase "Nunca mais um Brasil sem nós" ecoou constantemente e a luta contra o marco temporal fez com que milhares de indígenas marchassem em Brasília e em diversas outras cidades brasileiras. A tese é considerada prejudicial por entidades e movimentos sociais, pois restringe as demarcações das terras àquelas ocupadas em 5 de outubro de 1988, dia da promulgação da Constituição Federal. Apesar da vitória no Supremo Tribunal Federal (STF) em setembro, quando a Corte declarou o marco como inconstitucional por nove votos a dois, o Congresso foi na contramão aprovando um projeto de lei que versa sobre o tema e, depois, derrubou os vetos do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT).

Em sessão conjunta, 321 deputados contra 137 e 53 senadores contra 19 votaram pela derrubada dos vetos de Lula ao marco temporal. Com a decisão, a ausência de comprovação da presença indígena na data da promulgação da Constituição invalida o direito à demarcação do território. O Congresso também permitiu um dispositivo que abre brechas para atividades econômicas em terras indígenas sem consulta prévia, como garimpo e expansão de malha viária.

Ao todo, os parlamentares rejeitaram 41 dos 47 dos itens analisados. Apenas os vetos sobre a retomada de áreas indígenas reservadas por perda de traços culturais, flexibilização da política de contato com povos originários isolados e o plantio transgênicos nos territórios foram mantidos. Com isso, o Projeto de Lei 2903/2023 passará a vigorar como lei. Entretanto, a tendência é a de que os indígenas recorram e que a questão sobre o marco temporal volte a ser judicializada, tendo em vista que a tese foi declarada inconstitucional por ampla maioria no STF. O Ministério dos Povos Indígenas vai acionar a Advocacia Geral da União (AGU) para ingressar com uma Ação Direta de Inconstitucionalidade.

"É absurdo que, enquanto o mundo já reconhece os povos indígenas e seus territórios como uma das últimas alternativas para conter a crise climática, o Congresso Nacional aqui age totalmente na contramão daquilo que precisa ser feito para frear essa crise global. O Ministério dos Povos Indígenas segue comprometido com os direitos constitucionais, os direitos territoriais de nossos povos", afirmou a ministra Sônia Guajajara.

A Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib) destacou que seguirá mobilizada contra o marco temporal. "Derrotados são os que não lutam. Precisamos seguir mobilizados nas aldeias, territórios, cidades e nas redes. Lutamos por um futuro que é indígena. Por nós, por todas e todos que vieram antes de nós e por todas e todos que ainda estão por vir", frisou a entidade.

Este ano o Ministério dos Povos Indígenas também perdeu a atribuição de reconhecimento e demarcação de terras. Essas duas funções voltaram a ficar sob a responsabilidade do Ministério da Justiça e Segurança Pública. Embora a pasta tenha sido esvaziada, a ministra Sonia Guajajara garantiu que estará em constante diálogo para que os processos demarcatórios não sejam interrompidos. Pela Constituição Federal, é dever da União demarcar territórios indígenas. Esse processo tem as seguintes fases: estudos de identificação, aprovação da Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai), contestações, declaração de limites, demarcação dos limites, demarcação física, homologação e registro.

·        Vitórias

Em 11 de janeiro, Sonia Guajajara tomou posse como ministra dos Povos Indígenas. A criação de uma pasta específica para os povos originários foi vista como algo histórico. "Vocês todos estão presenciando um momento de transição histórica, tal qual foi a singular colaboração indígena, na Assembleia Nacional Constituinte. Naquela ocasião, um passo muito importante foi dado com o fim do paradigma integracionista e da tutela. Hoje, vocês presenciam um passo ainda maior com este Ministério dos Povos Indígenas e esperamos, com isso, fazer respeitar a nossa existência e o nosso protagonismo. O Brasil do futuro precisa dos povos indígenas", discursou Sonia ao ser empossada.

E o protagonismo indígena não parou por aí. As escolhas dos nomes da ex-deputada federal Joenia Wapichana para presidir a Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai) e do advogado Weibe Tapeba para comandar a Secretaria Especial da Saúde Indígena (Sesai) foram outros passos importantes neste ano. Joenia e Weibe são os primeiros indígenas a liderarem os dois órgãos indigenistas. Quando Joenia foi empossada em fevereiro, a indígena prometeu reconstruir a Funai. Segundo ela, o órgão herdou diversos processos por omissão e negligência durante o mandato do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL).

“Todo esse caminho que percorremos para chegar aqui até hoje foi longo e muito sofrido. Muitas vidas se perderam no caminho e ainda estão se perdendo. Passamos anos de desmonte, de sucateamento, de desvalorização dos servidores públicos”, afirmou Joenia. Nesse sentido, outro avanço conquistado pelos indígenas foi a autorização de concurso público que ofertará 502 vagas para a Funai, além do acordo referente ao Plano de Carreira dos servidores do órgão.

No âmbito cultural, os indígenas também ganharam mais visibilidade neste ano. O escritor e filósofo Ailton Krenak tornou-se o primeiro indígena imortal na Academia Brasileira de Letras (ABL). Ao assumir a cadeira do historiador Jose Murilo de Carvalho, Ailton Krenak destacou a necessidade da ABL abrir espaço para a diversidade linguística dos povos originários.  “Uma das minhas intenções é convidar a ABL para criar uma plataforma, com a experiência que temos, por exemplo, com uma plataforma que já existe, chamada Biblioteca Ailton Krenak, disponível para quem quiser acessar na web centenas de imagens, textos, filmes e documentos", explicou o escritor.

No Brasil, são faladas mais de 250 línguas indígenas e 190 delas correm risco de extinção. "Poderíamos fazer isso com todas as línguas nativas. Teria tudo a ver com a Academia Brasileira de Letras incluir mais umas 170 línguas além do português. Se olhamos os acervos que já existem, o Museu do Índio tem um acervo muito antigo de registros de narrativas, algumas delas só na língua materna. Vamos traduzi-las com uma tradução simultânea e as pessoas vão poder ouvir. Podemos fazer isso junto com todas as etnias que estão envolvidas no resgaste linguístico", acrescentou Krenak.

A Academia Brasileira de Cultura também empossou as duas primeiras mulheres indígenas da história: a ministra dos Povos Indígenas, Sonia Guajajara, e a secretária de Articulação e Promoção de Direitos Indígenas (Seart), Juma Xipaia. O curador da posse, acadêmico Leandro Bellini, frisou que Sonia e Juma foram escolhidas pelo ativismo em prol dos direitos dos povos tradicionais.  “Se a Academia quer representar o Brasil, precisa ter no escopo dela todo tipo de pessoa que traduz a nação. Decidimos convidar duas pessoas representantes dos povos originários que se destacaram lá fora e aqui dentro ao darem voz às questões indígenas atuais”, argumentou Bellini. No Museu do Índio, localizado no Rio de Janeiro, Fernanda Kaingang também assumiu uma posição de pioneirismo ao tornar-se a primeira indígena a assumir a gestão do órgão.

Outro marco cultural para os povos originários neste ano foi a realização da primeira edição do Festival Brasil é Terra Indígena, no Museu da República, em Brasília. O evento contou com a participação de artistas e artesãos de mais de 40 etnias e teve o intuito de jogar luz na diversidade e potência artística dos povos tradicionais. "Buscamos resgatar a dignidade e os valores da cultura indígena em um país marcado por desigualdades e racismo estrutural. Nossa missão é colocar a arte e os territórios indígenas no centro das atenções, promovendo uma revolução cultural que reconheça que todo o Brasil é terra indígena", destacou a organização do evento.

·        Retorno das demarcações e outros avanços

Após cinco anos sem novos processos, o governo anunciou a demarcação de oito terras indígenas neste ano: Arara do Rio Amônia (AC), TI Kariri-Xocó (AL), TI Rio dos Índios (RS), TI Tremembé da Barra do Mundaú (CE), TI Avá-Canoeiro (GO) e TI Uneiuxi (AM), Acapuri de Cima (AM) e Rio Gregório (AC). Demarcar territórios é uma medida bastante reivindicada pelos povos originários porque traz segurança jurídica e possibilita que as etnias vivam tranquilas nas terras historicamente ocupadas, preservando suas culturas e crenças.

Maurício Terena, coordenador jurídico da Apib, ressalta que o reconhecimento dos territórios tradicionais também é uma medida fundamental para a preservação da natureza em meio ao agravamento da crise climática. Os povos tradicionais, como indígenas e quilombolas, mantêm uma relação bem próxima com o meio ambiente e usam os recursos naturais de maneira que não causa degradação ambiental — por isso eles são comumente chamados de guardiões da floresta. "As terras indígenas são essenciais para garantir um maior proteção da biodiversidade. Terras originárias são bem mais preservadas que outros territórios", diz Maurício.

Outra conquista simbólica para os indígenas foi a tradução da Constituição Federal para o nheengatu. O trabalho contou com a atuação de 15 especialistas indígenas bilíngues. A Lei Maria da Penha também foi traduzida para as línguas kaingang e guarani. Ainda nesse sentido, a deputada federal Célia Xakriabá (Psol-MG) protocolou o primeiro projeto de lei traduzido para línguas indígenas da história. A proposta estabelece procedimentos a serem adotados pelas delegacias de polícia e demais órgãos responsáveis para o atendimento de mulheres indígenas vítimas de violências e foi traduzida para guarani-kaiowá e akwen.

As medidas já eram reivindicadas há algum tempo. As mulheres originárias afirmavam que, embora a Lei Maria da Penha seja uma ferramenta de proteção importante, ela não alcança as comunidades, seja pela barreira da falta de tradução para línguas indígenas ou pelo despreparo de órgãos públicos. "Violência não é cultura. O projeto de lei aqui pensado visa a cobrir todas as mulheres indígenas que colocam seus corpos, mentes e corações na proteção da própria vida e no cuidado com o meio ambiente", enfatiza Célia.

Outro momento histórico para os povos originários ocorreu em 5 de dezembro, quando a ministra Sonia Guajajara liderou a delegação brasileira na 28ª Conferência das Nações Unidas para Mudanças Climáticas (COP28), em Dubai. Na ocasião, os indígenas tiveram uma agenda inteiramente dedicada a eles. "Estar aqui com o dia inteiro do pavilhão aberto para a discussão dos povos indígenas é significativo. Podemos já dizer que é uma COP histórica nessa participação dessa diversidade de povos do Brasil e do mundo. Estamos crescendo nesse espaço, aumentando a nossa voz”, pontuou Sonia.

·        O que ainda precisa avançar

Segundo o Conselho Indigenista Missionário (Cimi), apesar da esperança na maior representatividade indígena nos espaços de poder, o governo federal ainda não implementou um plano de ação amplo e efetivo para assegurar os direitos dos povos originários. Ao longo de 2023, as invasões de terras e violências continuaram. Após a crise humanitária vivenciada pelo povo Yanomami, garimpeiros ilegais voltaram a entrar nos territórios por causa da ausência de uma fiscalização constante por parte das autoridades de segurança.

O cenário de violações dos direitos indígenas também ocorre em outros lugares do país, como em Mato Grosso do Sul. "Sem uma intervenção eficaz e contundente do governo federal, ampliam-se dramaticamente as violências contra as comunidades Guarani e Kaiowá. Há narrativas de torturas, ataques a tiros, cárcere privado, sequestro e desaparecimento de pessoas", alerta o Cimi.

Além disso, a entidade indígena destaca a falta de avanços importantes na saúde e educação indígenas. "Os povos indígenas, suas organizações e apoiadores perceberam, ao final do ano, que os direitos não serão assegurados sem luta articulada com as comunidades quilombolas e outros segmentos da sociedade, para juntos imporem suas pautas e demandas perante o Legislativo, o Executivo e o Judiciário. Não há porque ter paciência, não há porque esperar pelos de cima da pirâmide, já que eles se alimentam de acordos, negociatas e não se nutrem com as causas de vida e da justiça", frisa o Cimi.

 

Fonte: Correio Braziliense

 

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