Por que o futuro da Amazônia depende de seus igarapés
O passo é rápido para acompanhar os cientistas e
seus guias ribeirinhos dentro da mata. Estamos na estação seca, e o calor
sufocante da Floresta Amazônica se impõe. Uma hora e meia depois, entre
descidas e subidas – algumas tão íngremes que pedem a mão amiga do colega
à frente –, chegamos ao igarapé. Alívio. A água pura e cristalina do pequeno
braço de rio é providencial não só para matar a sede depois da caminhada: é o
próprio objeto da pesquisa em curso. Na Floresta Nacional do Tapajós, oeste do
Pará, alunos e professores de diferentes universidades avaliam o estado de
conservação de igarapés como parte de um projeto de pesquisa que inclui 100
pequenos riachos entre as cidades de Santarém e Paragominas, que foram
analisados pela primeira vez em 2010.
O termo para nomear esses riachos vem do
tupi-guarani e significa “caminho de canoa”. Os igarapés correm das nascentes
em direção a lagos e rios e, como o nome diz, são navegáveis, embora bem mais
estreitos e rasos. “Os grandes rios da Amazônia não existiriam sem os igarapés,
que são suas cabeceiras”, explica Cecília Gontijo Leal, pesquisadora vinculada
à Universidade de Lancaster, na Inglaterra, e à Rede Amazônia Sustentável
(RAS). A ecóloga coordena o projeto Understanding and conserving tropical freshwater
ecosystems (Entendendo e conservando sistemas aquáticos tropicais). Agora, ao
voltar aos mesmos pontos do estudo anterior, o grupo com 19 professores e
alunos busca analisar a série temporal para compreender a evolução dos impactos
humanos sobre esses ecossistemas aquáticos e suas comunidades de peixes. O
objetivo é encontrar soluções para proteger a biodiversidade amazônica e
influenciar políticas de preservação e melhores práticas de uso da terra. “Não
existem muitos estudos temporais na Amazônia, essa é uma lacuna de informação
científica. Por isso, decidimos voltar para ver as trajetórias de mudança na
paisagem e seus efeitos nos mesmos igarapés ”, diz Leal. A pesquisa é uma
avaliação pioneira da mudança na condição dos igarapés ao longo da última década,
com uso de métodos modernos que ajudarão a elucidar recentes fatores de
estresse no ambiente. O projeto se estende até 2029 e cobre áreas de Santarém,
Paragominas, Belterra e Mojuí dos Campos.
É uma região que mudou bastante nesses 13 anos,
observa Leal, destacando o desmatamento e a intensificação de atividades, como
a conversão de pastos para a agricultura mecanizada. “Os igarapés são
impactados por essas mudanças, que pioram a qualidade da água e alteram a fauna
e a flora”, diz. As consequências ecoam nos rios maiores, já afetados por
grandes obras, refletindo como um todo na bacia hidrográfica, que pode ter até
90% de seus corpos d’água compostos por igarapés. “Temos muito mais extensão de
riachos de cabeceira do que rios maiores”, avalia a pesquisadora. A saúde desse
ecossistema está intimamente ligada à biodiversidade aquática, a tal ponto que
algumas espécies refletem o seu nível de conservação. São os chamados
bioindicadores. As plantas aquáticas macrófitas e as libélulas se destacam.
Quanto mais macrófitas, maior é a alteração no ambiente – o igarapé mais
exposto pelo desmatamento recebe mais luz, e os vegetais se desenvolvem. Já uma
presença menor dessas plantas ou ainda a existência de algumas espécies
específicas delas é indício de um ambiente saudável. As libélulas, por sua vez,
conhecidas na floresta como jacinas ou jacintas, são insetos sensíveis às
mudanças no meio aquático. A subordem Zygoptera geralmente
indica ambientes preservados, enquanto que a Anisoptera costuma
refletir perturbações, como perda de vegetação.
A alta diversidade de peixes chamou a atenção dos
pesquisadores já em 2010, conta Paulo Pompeu, professor de Ecologia e
Conservação na Universidade Federal de Lavras (UFLA). Se no Sudeste predomina
um padrão de 5 a 15 espécies num riacho, os igarapés na região de Santarém
abrigam de 30 a 40. Em um ponto em Paragominas, município com mais de 100 mil
habitantes a poucas horas da capital Belém, eles identificaram 48 – uma
biodiversidade aquática maior do que a de países inteiros, como a Inglaterra.
Segundo os pesquisadores, a variedade de espécies de peixes em igarapés de uma
pequena área muitas vezes não se repete em outro ponto da Amazônia. “Como um
ambiente tão pequeno consegue sustentar tantas espécies ao mesmo tempo?
Queremos compreender como se dá a diversificação local”, diz Pompeu.
Entre as abordagens inéditas do estudo de 2023 está
a coleta de água para identificação de DNA ambiental (vestígios deixados por
espécies na água). Outra novidade é a coleta de alimentos dos peixes, como
algas, insetos terrestres e aquáticos, folhas e frutos de árvores, para
descobrir quais são os recursos que sustentam a comunidade de peixes e quais as
diferenças das fontes de nutrientes de uma área conservada para uma degradada. Os
cientistas ficarão até quatro anos em laboratório analisando as amostras coletadas.
Os resultados irão promover um diagnóstico do estado de saúde dos igarapés no
planalto santareno, representando uma amostra do que acontece aos pequenos rios
em todo o arco do desmatamento na Amazônia. Ao mesmo tempo, servirão de base
para o planejamento de novas ações que minimizem ou até revertam os impactos
negativos causados pelas mudanças de uso do solo no bioma.
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Tesouro biológico em risco
A bacia do rio Tapajós cobre uma área de 489 mil
km², representando 7% de toda a Bacia Hidrográfica Amazônica. Com suas
cabeceiras próximas a Cuiabá, no Mato Grosso, o gigante de águas claras avança
quase 2 mil km até romper no Amazonas, na altura de Santarém – é o seu quinto
maior tributário. Arqueólogos estimam que a ocupação humana na região da foz
remonta a cerca de 7 mil anos. A Santarém atual se formou sobre sítios de povos
pré-colombianos, e relatos de pioneiros europeus a explorar a Amazônia – como a
expedição de Francisco de Orellana, em junho de 1542 – já mencionavam a
existência de uma povoação com milhares de habitantes na confluência dos dois
grandes rios. Os efeitos das ações humanas acumulados nas águas da bacia,
principalmente nas últimas décadas, ficam evidentes ao se analisar o Índice de
Impacto nas Águas da Amazônia (IIAA), desenvolvido pela Ambiental Media no
projeto Aquazônia.
Enquanto 20% das microbacias da área brasileira da Bacia Amazônica estão altamente
impactadas, na Bacia do Tapajós o percentual é de 40% (veja no mapa acima).
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Estradas que fecham caminhos
O impacto das estradas de terra e sua rede de
cruzamentos com rios foi um dos fatores que chamou a atenção dos
pesquisadores no estudo temporal. As vias que cortam os canais aumentam a carga
de sedimentos, causando assoreamento, erosão e mudança na qualidade da água. “A
travessia de uma estrada em um igarapé pode parecer um impacto pontual, mas os
efeitos negativos acumulados são relevantes”, avalia Leal. A equipe
de cientistas ainda está trabalhando no mapeamento para a região de Santarém,
mas os dados existentes para todo o bioma, compilados no Aquazônia, indicam a
presença de 9.778 cruzamentos sobre rios (de todos os tamanhos, não só
igarapés). É importante considerar, porém, que os números são subestimados
devido à dificuldade de mapeamento.
Na entrada norte da Floresta Nacional do Tapajós
(Flona do Tapajós), dois igarapés, chamados Jamaraquá e Jaguarari, estão hoje
interditados por causa de uma mesma estrada. Entre dezembro de 2004 e março de
2005, de acordo com o Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade
(Nota Técnica no 6/2020/FLONA Tapajós/ICMBio), órgão federal responsável pela
gestão das unidades de conservação, a prefeitura de Belterra abriu a chamada
Transtapajós sem autorização, licença ambiental ou estudo prévio. A construção
da rota de 12 km para interligar as comunidades ribeirinhas da Flona estava
prevista no plano de manejo, mas a prefeitura não atendeu às recomendações do
Batalhão de Engenharia de Construção – braço do Exército Brasileiro responsável
pelas obras e pela manutenção de rodovias, ferrovias, barragens e aeroportos –
que indicavam outro percurso para a via. A estrada acabou danificando os
igarapés. O Ibama emitiu um auto de infração e embargou o trecho. A Justiça
Federal condenou o município a apresentar um Plano de Recuperação de Áreas
Degradadas para prevenção de erosão, estabilização do solo e desassoreamento
dos igarapés. O embargo foi retirado em 2022 para que a prefeitura pudesse
realizar as obras de reparação, mas pouco foi feito até agora, afirma Bruno
Delano, analista ambiental do ICMBio. Os montes de erosão foram retirados,
assim como uma parte do assoreamento nas águas. Os taludes, porém, ainda não
foram revegetados, as margens não foram reflorestadas e a ponte sobre o igarapé
Jamaraquá não foi consertada – as madeiras para isso estão lá, aguardando uso
enquanto não apodrecem.
A obra, feita à revelia da legislação ambiental,
não impactou apenas o ecossistema, mas também a visitação: Jamaraquá é a
comunidade mais procurada da Floresta Nacional. “É um prejuízo para a geração
de renda local e também para a Flona, que tem dados de visitação para serem
monitorados”, avalia Delano. “Enquanto o igarapé estiver degradado, não podemos
permitir o acesso a esse trecho.”
Apesar dos impactos sobre esses dois cursos d’água,
a Flona cumpre o seu papel de proteger os corpos hídricos. O motivo é simples:
as nascentes estão dentro da floresta, e parte das águas segue para o Rio
Tapajós, a oeste, e para a bacia do Rio Moju, afluente do Amazonas, a leste. E
é nesta última área, onde passa a BR-163 e crescem os campos de monocultura de
soja e milho, que os igarapés começam a ser severamente prejudicados. O trecho
Cuiabá-Santarém da rodovia, inaugurado na década de 1970, é uma das principais
rotas para escoamento de grãos no país, cujo cultivo avança sem parar em
direção ao norte do Pará, na confluência dos rios Amazonas e Tapajós.
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Mudanças no uso do solo
Na região amazônica, o ciclo do desmatamento ilegal
que leva à abertura de uma área destinada a servir como pastagem ou plantio,
segue uma ordem já amplamente conhecida: há extração seletiva de madeira,
desmatamento e, depois, o uso do fogo – uma sequência que traz impactos
drásticos para os igarapés. “A vegetação é fonte de sombreamento e de matéria
orgânica, influenciando toda a dinâmica das águas e das espécies. Se você tira
a vegetação ripária [próxima aos corpos d’água], não há entrada desse material”,
diz Cecília Leal. Os peixes são os primeiros a sentir os impactos. Segundo
Gabriel Brejão, doutor em Biologia Animal pela Universidade Estadual Paulista
(Unesp) e pesquisador do projeto, enquanto vertebrados terrestres suportam
cerca de 60% de desmatamento em determinada área para começar a entrar em
processo de declínio, algumas espécies de peixe já sofrem quando esse mesmo
índice chega a 10%. Por outro lado, quando mais da metade da floresta é
derrubada, começa a aumentar a presença de espécies de peixes que prosperam em
ambientes alterados. Nesse cenário, “há uma mudança de um estado de alta
diversidade para o de uma fauna muito homogênea, com poucas espécies dominando
o local”, explica Brejão. Com a homogeneização, além da redução no número,
ocorre a extinção de várias espécies únicas do bioma .
A pesca na aldeia Takuara, às margens do Tapajós,
ilustra bem este fenômeno. No final de tarde, navegamos durante meia hora de
canoa pela mata de igapó até a beira do rio. A atmosfera é mágica, com a luz se
infiltrando pelo dossel e refletindo no espelho d’água as formas retorcidas das
árvores. Os pescadores lançam as malhadeiras enquanto aguardamos no barco. A
lua crescente já está visível quando voltamos para conferir o saldo da pescaria
indígena. Apenas 15 peixes: aracus, pintados, piaus e um único tucunaré. “Há 30
anos tinha muito tambaqui, pirarucu, tucunaré. A gente nem saía longe para
pescar. Colocava espinhel e pegava três ou quatro tambaquis para comer na
semana”, conta Leonardo Pereira dos Santos, cacique da aldeia do povo
Munduruku, que fica dentro da Flona. “Hoje o pirarucu quase não existe mais.” A
baixa quantidade e variedade de peixes reflete as mudanças de uso do solo rio
acima, sobretudo por desmatamento e mineração ilegal, e também a pesca
realizada por barcos grandes, as chamadas geleiras. Nas margens do rio,
moradores da Reserva Extrativista (Resex) Tapajós-Arapiuns e da Floresta
Nacional do Tapajós tiveram seu modo de vida e sua segurança alimentar afetados
por empresas que vêm de outras cidades e estados arrematar toneladas de peixes
valiosos no mercado, descartando no caminho aqueles sem valor comercial, que
fazem falta na dieta local. “A pesca predatória acaba com o que a gente tem.
Daqui a pouco a gente tá comendo frango todo dia, comendo coisas enlatadas que
não são legais pra saúde da gente”, lamenta Santos.
Os ribeirinhos, porém, conseguiram meios oficiais
de combater a atividade predatória, com um Acordo de Pesca homologado pelo
governo do Pará. Coordenado pelo ICMBio desde 2016, em parceria com a sociedade
civil, o processo resultou, no fim de 2022, em regras que impõem limites aos
grandes barcos. Para avaliar os reflexos do acordo e adotar medidas futuras, o
órgão ambiental capacitou monitores na Resex e na Flona. A cada ciclo
hidrológico – vazante, seca, enchente e cheia – os pescadores devem anotar uma
série de características do pescado, como espécie e tamanho, que vão indicar
como as espécies estão reagindo. “Se a gente não preservar, no futuro nossas
crianças não vão conhecer os peixes daqui. Teremos que ir no mercado em
Santarém para comprar um peixe para comer. Então a gente precisa se organizar
enquanto é tempo ainda”, conta o cacique.
Com receio da contaminação pelo mercúrio utilizado
por garimpeiros ilegais, Santos recomenda que as pessoas evitem beber água e se
banhar no Tapajós. A cor mais barrenta do rio, naturalmente claro, indica
também a alta presença de sedimentos, que são levados pela chuva para dentro
dos corpos hídricos a partir de solos expostos após a supressão da vegetação
nativa. “O que se vê no Tapajós é um aumento do material particulado em
suspensão por causa de inúmeras atividades de uso da terra”, explica a bióloga
Daniele Kasper, da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), que se dedica a
pesquisar o impacto do mercúrio nas águas e solos da Amazônia há 20 anos. As
partículas suspensas aglutinam diversos componentes químicos, entre eles o
mercúrio. O metal, que polui e pode alterar a coloração natural dos rios, afeta
também os peixes, cujo consumo é a principal via de exposição humana. Um estudo de
2022 – da Universidade Federal do Oeste do Pará (Ufopa) e da Fundação Oswaldo
Cruz – avaliou 462 moradores de oito áreas ribeirinhas e uma zona urbana do
município de Santarém: mais de 75% dos participantes apresentaram concentrações
de mercúrio acima do limite seguro de 10 µg/L (micrograma por litro) em seu
sangue, recomendado pela Organização Mundial da Saúde (OMS). A exposição foi
maior na população ribeirinha (90%) do que na urbana (57%). A mesma lógica vale
para os peixes, que têm mais ou menos mercúrio dependendo do que comem, “pois o
elemento vai se acumulando ao longo da cadeia alimentar”, explica a
pesquisadora.
A fonte do mercúrio que chega ao rio não se limita
ao garimpo. O elemento é facilmente absorvido pelos organismos quando se
encontra na forma química orgânica conhecida como metilmercúrio, que se
desenvolve sob condições de pouco oxigênio — em reservatórios de hidrelétricas
e áreas alagadas de igapós e várzeas, por exemplo, como revelam as pesquisas de
Kasper e de outros cientistas. Assim, qualquer atividade que provoque erosão
vai abastecer o sistema aquático com o mercúrio armazenado em determinados solos.
Muitas dessas ações danosas – desmatamento, queimada, abertura de estradas –
estão associadas ao agronegócio. Não à toa, de todos os fatores de impacto
analisados pelo Índice de
Impacto nas Águas da Amazônia, nenhum supera agricultura e pecuária
em termos de distribuição espacial: essas atividades impactam 88% do total das
11 mil microbacias que compõem a Amazônia brasileira. “É bem visível ali na
região que o grande estrago está sendo o avanço e a intensificação do
agronegócio em larga escala, em grandes propriedades”, avalia Cecília Gontijo
Leal, coordenadora da pesquisa temporal.
Tais mudanças no uso do solo alteram principalmente
o modo de vida das populações ribeirinhas e indígenas. Sufocada pela expansão
desenfreada do agro, a realidade idílica do passado virou apenas memória para
as pessoas que nasceram e cresceram à beira dessas fontes de água límpida e
fresca típicas da Amazônia, usadas tanto para o lazer quanto para as
necessidades do dia a dia.
·
Lucro primeiro, estudos de impacto depois
A arqueóloga Anne Rapp Py-Daniel, professora da
Universidade Federal do Oeste do Pará (Ufopa), trabalha com a identificação da
formação das comunidades quilombolas e indígenas na região de Santarém. A
pesquisadora parte de relatos, memórias e vestígios de ocupação para
reconstruir esse passado e para entender a identidade e a realidade atual. “Ao
longo das últimas três décadas, Santarém e outros municípios do Pará têm
facilitado a vinda de empreendimentos relacionados ao plantio da soja. Esse
incentivo tem se manifestado de várias maneiras: através de propostas de
criação de portos (para soja e combustível) no lago do Maicá; pela alteração do
plano diretor da cidade, que aumentou o tamanho das áreas propensas à
agricultura; pela liberação de áreas para desmatamento no Planalto Santareno.
Essas ações, focadas principalmente no setor econômico, têm sido realizadas sem
avaliações prévias do impacto que é e será causado ao ambiente e às comunidades
tradicionais”, conta Py-Daniel.
O igarapé Açaizal, que corta a aldeia indígena
homônima, é uma amostra desse impacto a partir da virada do século. Desde
então, a vazão dos igarapés diminuiu, a cor das águas mudou, lagoas secaram.
“Tinha uma riqueza de peixes e muito jacaré”, conta o cacique Josenildo dos
Santos Cruz. “O igarapé não presta mais. Os espaços de lazer sumiram;
castanheiras, pequizeiros e outras árvores foram derrubadas.” O impacto
ambiental se reflete na própria cultura indígena. “A mata nos fortalece. Quando
uma árvore cai, nosso povo adoece espiritualmente.”
Em luta pela natureza, os moradores passaram, a
partir de 2009, a fazer denúncias ao Ministério Público Federal, que entrou com
uma ação civil pública contra o governo do estado do Pará e o município de
Santarém por omissão em fiscalizar, solicitando a recuperação do igarapé
assoreado. Ajuizada em 2019, a ação teve, em setembro do ano passado, um
parecer favorável da Procuradoria Regional da República. Trata-se de um passo
importante para contextos semelhantes em outros pontos da bacia. As quatro
aldeias Munduruku localizadas no Planalto Santareno – Açaizal, Amparador,
Ipaupixuna e São Francisco da Cavada – estão cercadas por grandes lavouras.
“Entre 2021 e 2022, só na região entre Açaizal e Ipaupixuna, foram 800 hectares
desmatados”, diz Daniel. “A soja já está no quintal das pessoas”,
continua.
Os campos de soja não afetam somente os povos
indígenas, mas também as comunidades de agricultores familiares do
planalto. Maria Emília dos Reis Pinto, agricultora e artesã, nos guia por uma
estrada de terra que passa sobre alguns trechos de igarapés; em nenhum deles a
água é transparente. Na primeira parada, a água está coberta de macrófitas e
tem um cheiro estranho. Um pouco adiante, o córrego está verde opaco e tomado
por plantas aquáticas bioindicadoras de poluição. O cenário é ainda pior em outro
trecho do igarapé, onde a água está marrom. Emília deixou de recorrer ao riacho
que cruza seu terreno há seis anos. “As pessoas aqui estão com medo de usar
seus poços por causa do agrotóxico.”
O temor tem fundamento. Para avaliar o impacto do
agronegócio na zona rural de Santarém, a geóloga Moema Morgado, pesquisadora
associada na Universidade Federal do Mato Grosso, analisou amostras de água
subterrânea de poços, água superficial de rios, igarapés e de sedimentos de
fundo dos córregos. Os resultados indicam a presença de herbicidas, como a
atrazina, o glifosato e o metolacloro, além de metais diversos, tanto na água
quanto nos sedimentos – onde também foram detectados inseticidas proibidos no
Brasil, como DDT e endossulfam. Assim como o mercúrio, alguns pesticidas têm a
característica de se acumular ao longo da cadeia alimentar. Isso acontece
porque eles são capazes de formar complexos insolúveis: em vez de volatilizar,
eles se fixam nos sedimentos. O glifosato, um dos agrotóxicos mais utilizados
no Brasil, se encaixa nessas duas situações. A legislação brasileira permite
uma concentração de resíduos de glifosato na água potável 5 mil vezes maior do
que na Europa e a substância forma complexos insolúveis em águas ricas em
óxidos de alumínio e ferro. “A composição dos sedimentos e do solo da Amazônia
é um prato cheio para isso”, ressalta Morgado, que encontrou glifosato em todas
as amostras de sedimento analisadas, em comparação com 40% das amostras de
água, onde o pesticida se dilui por ser hidrossolúvel.
Um caso chamou a atenção no município de Belterra,
vizinho a Santarém. No dia 6 de fevereiro deste ano, 30 pessoas, entre alunos e
funcionários da escola Vitalina Motta, foram ao posto de saúde com sintomas
como coceira, irritação nos olhos, dor de garganta, náusea, vômito e desmaio. A
médica que fez os atendimentos afirmou à equipe de fiscalização do Ibama, dias
depois, que os sinais eram de intoxicação por agrotóxico, visto que todos
tinham sintomas parecidos e coletivos, com descrição de cheiro forte e sensação
de sufocamento. A professora Heloise
Rocha conta que, ao chegar à escola naquela manhã, percebeu um cheiro estranho
e, por volta das 9 horas, as crianças começaram a reclamar de ardência nos
olhos e dificuldade de respirar. “Os sojeiros sempre fizeram isso, mas nunca
foi tão agressivo. Não sabemos dizer se trocaram o veneno ou aumentaram a
quantidade”, relata a professora, que está na região há oito anos. O campo de
soja, cultivado com milho na entressafra, fica atrás da escola. Antes de
subirem um muro, a plantação de grãos quase se misturava à horta escolar.
Quando as safras do campo em frente à escola, na
margem oposta da rodovia, são colhidas, a fuligem suja as paredes e causa
alergias e inflamações. “Quem mora aqui tem contato com o veneno de domingo a
domingo. A gente não tem certeza se a água está ou não contaminada, mas o
agrotóxico é jogado diretamente no solo, e a maioria aqui tem poço, inclusive a
escola”, teme. Os professores fizeram uma denúncia ao Ministério Público
Federal, e o Ibama multou o produtor Renato Zambra, proprietário do terreno, em
mais de 1 milhão de reais. Cem metros da plantação também precisaram ser
retirados a partir do limite da escola, e ali deveria ter sido plantada
vegetação nativa. Em agosto, contudo, havia somente uma única fileira de capim
crescendo rente ao muro.
·
Pelo direito de ser igarapé
Desde que as comunidades começaram a relatar
problemas de saúde devido ao consumo de água dos igarapés e rios, o projeto
Saúde e Alegria vem trabalhando na instalação de microssistemas de
abastecimento, movidos a energia solar, e na distribuição de filtros de
nanotecnologia. Mais de 6 mil pessoas já foram beneficiadas em cinco
municípios do oeste paraense. “Se não há coleta de lixo, nem rede de esgoto,
nem estações de tratamento, é evidente que os lençóis freáticos podem estar
contaminados nas cidades”, diz Eugênio Scannavino, fundador da ONG.
Na zona urbana de Santarém, a degradação dos
igarapés ganha uma nova tonalidade – a cinza. Na ocupação Bela Vista do Juá, à
direita de uma avenida que leva ao aeroporto, o cheiro forte de esgoto
evidencia os problemas da ineficácia dos sistemas de tratamento de esgoto que
vem da margem esquerda, onde foi instalado o Residencial Salvação, projeto do
programa federal Minha Casa Minha Vida finalizado em 2016 para abrigar 3.081
famílias. Do alto de uma voçoroca, um buraco de erosão de 2 metros de altura
entulhado de lixo, escorre um fio de água em direção a um riachinho que
desemboca no lago do Juá, em frente ao Rio Tapajós, onde uma praia de areia
branca se destaca nessa época do ano. O pequeno curso d’água é um igarapé. Seu
nome ainda não é oficial porque, para grande parte dos moradores da ocupação,
ele nem existia, apesar de estar mapeado pelo IBGE desde 1983 como uma drenagem
intermitente (um fluxo de água que surge na estação chuvosa e some na estação
seca). Foi a construção do residencial, no outro lado da avenida, que escavou
um canal, explica João Paulo de Cortes, geógrafo e professor da Ufopa, que
desenvolve um trabalho de reconhecimento do igarapé desde 2018.
Cerca de 100 famílias moram na ocupação, a maior e
mais recente da cidade. A discussão acerca do impacto ambiental da moradia
irregular é grande, pois as pessoas foram chegando e retirando a vegetação para
se estabelecer no local, mais ou menos na mesma época de construção do
residencial. Sem infraestrutura adequada, algumas casas estão sob risco de
desabamento, o que motivou um relatório para o Ministério Público Federal por
parte da universidade. A instituição faz monitoramento de riscos e desenvolve
atividades de educação ambiental com a comunidade. “O que a gente deseja é o
reconhecimento formal do igarapé nos instrumentos de planejamento do município.
Do igarapé e da bacia”, afirma Cortes. Segundo o professor, a identificação
oficial do igarapé é a primeira etapa no processo de tentativa de recuperação
do canal a partir do tratamento do esgoto despejado ali.
O poder público segue o que o professor chama de
“contraplanejamento urbano”, um gerenciamento a partir de lógicas de uso do
espaço público que termina por exaurir os bens hídricos. “Na Amazônia, os
igarapés urbanos são muito sensíveis, devido à combinação de chuvas intensas
com terrenos pouco consolidados do ponto de vista geológico. As águas drenam
para lagos e rios, que têm importante uso social e função ecológica. É preciso
não impactar essas drenagens de um jeito que seja irreversível”, avalia Cortes.
·
Paisagens pré-coloniais: uma chance para o futuro
Séculos depois da chegada dos primeiros europeus, a
lógica colonial de exploração de recursos do território segue ameaçando povos
originários e degradando a floresta tropical mais biodiversa do planeta – que é
sustentada e moldada pela água. O ciclo da chuva enche e esvazia lagos e rios,
estabelecendo períodos de seca e cheia que regulam o modo de vida das
populações. Nas várzeas e igapós, áreas alagáveis com espécies adaptadas à
inundação sazonal, o plantio, a colheita e os meios de locomoção são ditados pelo
subir e descer das águas. Essa dinâmica natural regular e poderosa determina
que, no plano ideal, os modelos de desenvolvimento local deveriam partir da
água para a terra, e não o contrário.
Para ajudar na restauração ambiental, o biólogo
Gabriel Brejão defende a adição de estruturas ao ecossistema aquático. “Se os
peixes gostam de se esconder atrás de galhos, troncos e folhas, pode-se
introduzir esses elementos para melhorar a diversidade estrutural que permite a
circulação de espécies variadas”. Outros arranjos poderiam possibilitar a
migração de peixes de um ambiente para outro, em casos nos quais o local foi
alterado por uma barragem ou estrada. A revitalização de ecossistemas, assim
como sua destruição, provoca efeitos em cascata no bioma como um todo, pois
existem inúmeras conexões dentro de uma bacia hidrográfica. “Cada espécie tem
sua função específica no ambiente e está fazendo um serviço”, diz Brejão.
O pesquisador explica que, ao longo do percurso do
rio, as cabeceiras fornecem nutrientes para rios maiores. Os igarapés de
cabeceira íntegros sustentam, por exemplo, a cadeia de pesca no Rio Tapajós:
por meio da produção de frutos e do consumo de alimentos em cadeia, a energia
terrestre é transferida para o ambiente aquático – nutrientes que, por sua vez,
sustentam grandes peixes consumidos pelas populações humanas. A homogeneização
da fauna aquática causada pela degradação em terra gera um desequilíbrio no
transporte de nutrientes, o que pode chegar a provocar o colapso de
ecossistemas, afetando cadeias produtivas locais. “As cabeceiras preservadas e
a diversidade da fauna garantem a atividade econômica e a saúde para as
comunidades humanas”, conclui. Somados, os efeitos da degradação em igarapés e
riachos vão refletir, em algum momento, nos grandes rios que cruzam a Amazônia,
afetando invariavelmente as pessoas. “Tudo que passa pelos igarapés – fauna e
flora, sedimentos, matéria orgânica – vai se acumulando rio abaixo”, analisa
Cecília Gontijo Leal.
O caminho de minimização desses impactos passa por
melhorar as leis de proteção das águas, considerar aspectos específicos de cada
ambiente, investir em divulgação científica e inserir as comunidades
tradicionais em tomadas de decisão. “São várias Amazônias dentro de uma grande
Amazônia. É preciso trabalhar um pouquinho em cada região para chegar ao todo”,
avalia Luciano Montag, professor da Universidade Federal do Pará (UFPA) e
pesquisador do projeto de estudo temporal dos igarapés.
Depois de finalizadas todas as análises, que vão
gerar dezenas de artigos científicos, as conclusões poderão ajudar órgãos
ambientais na gestão dos ecossistemas. “O Pará tem várias metas de restauração,
que podem ser feitas de um modo que contemple melhor os ambientes aquáticos”,
diz Leal. Para a cientista, é preciso repensar o paradigma que rege nossa
relação com o elemento água: ao invés de um recurso exclusivo de uso humano, é
preciso enxergar rios, lagos e igarapés como a fonte da biodiversidade. “Nossa
visão habitual é utilitária: as pessoas pensam na quantidade e na qualidade da
água. Mas a função das espécies é fundamental. Não existe um rio saudável sem
as suas espécies.” A vida não perdura sem água – é o seu ciclo infinito e
poderoso que sustenta e regula a existência não só da Amazônia, mas de todo o
planeta.
Fonte: Mongabay
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