Da irrelevância ao poder: como ocorreu a longa marcha da extrema direita
na Argentina em 2023
A posse presidencial do ultradireitista Javier Milei em 10 de dezembro pôs fim às coordenadas políticas
argentinas dos últimos 20 anos. A data não poderia ter sido mais carregada de
simbolismo: foi exatamente no 40º aniversário da transição democrática após a
última ditadura militar,
2023 foi o corolário de longo processo que
enterrou todo um cenário político. Este ano, a Argentina escolheu olhar diretamente para os olhos do abismo. Um
abismo que já estava aí há muito tempo e que o conjunto do sistema político -
com seus analistas, jornalistas e intelectuais - tinha decidido ignorar.
Durante a última década, o país vem atravessando
uma profunda crise econômica que parece não ter fim à vista.
Ano após ano, as condições de vida da sociedade têm piorado, enquanto a
polarização política -que dominou o debate público e governou o país durante
todo este tempo- parecia cada vez mais estar falando numa linguagem diferente
que a de sua exausta sociedade.
De acordo com um informe do Mirador de la
Actualidad del Trabajo y la Economía (MATE), para meados de 2023, os
salários reais se mantiveram abaixo do nível do último ano do governo Macrista.
Além disso, o estudo revela que, no período entre 2015 e 2022, os salários
reais caíram 24%.
Em boa parte, a diminuição da renda se explica pelo
crescimento da inflação nos últimos anos. Este ano registrou a mais alta dos
últimos 30 anos na Argentina.
A este difícil cenário econômico, estima-se que
este ano a Argentina perdeu US$ 20 bilhões (cerca de R$ 100 bi) como resultado
da pior seca da história do país.
Nesse contexto específico, todo o ano de 2023 foi
marcado por um intenso e desgastante calendário eleitoral. Em diferentes partes
do país, a sociedade foi convocada a votar até quatro vezes durante o ano. Como
nunca, combinou-se uma enorme intensidade política com uma crescente
insatisfação social com esse sistema de representação política.
·
Eleições provinciais
No início do ano, a maioria dos governadores
decidiu antecipar as eleições em suas províncias para não coincidir com o
pleito nacional. O cálculo se baseava num raciocínio conservador: eles não
queriam vincular seu destino com o das eleições nacionais. Motivos não
faltavam.
Já em janeiro, o índice de confiança no governo,
elaborado pela Universidade Di Tella, registrava uma baixa histórica.
Enquanto a consultora Zuban Córdoba publicava uma pesquisa de opinião onde
mostrava que a imagem negativa dos principais políticos nacionais ultrapassava
os 50%.
O número é ainda mais importante se levarmos em
consideração que a cifra ultrapassava os 60% de imagem negativa nas duas
principais figuras do sistema político. Mauricio Macri tinha uma imagem
negativa de mais de 67%, enquanto Cristina Fernandez de Kirchner tinha uma de
64%.
Toda a clivagem política dos últimos 10 anos girou
em torno dessas duas figuras cujos nomes tinham ordenado as principais
coalizões eleitorais. Kirchnerismo vs. Anti-Kirchnerismo. Macrismo vs.
Anti-macrismo. As eleições tinham de ser confrontadas com o grau de rejeição
que ambas figuras geraram.
As diversas eleições provinciais montaram um
complexo quebra-cabeça que foi moldando gradualmente o novo mapa do poder no
país.
E isso apesar do fato de que vários
oficialismos provinciais, principalmente em distritos liderados pelo peronismo,
foram derrotados. A extrema direita da coalização La Libertad Avanza não
obteve nenhuma vitória em províncias.
O carisma com o qual Milei conseguiu capitalizar o
mal-estar social não conseguiu sustentar nenhum de seus candidatos regionais. É
a primeira vez na história do país que um presidente assume um governo sem
nenhum poder territorial próprio.
A irrupção de Milei
Até as eleições de agosto, quando foram realizadas
as Eleições Primárias Abertas Simultâneas e Obrigatórias (PASO), todos
acreditavam - mesmo sem admitir publicamente - que seriam beneficiados pelo
surgimento de uma terceira força de fora da polarização clássica.
Com Juntos por el Cambio (JxC) imerso em um feroz
conflito interno, o partido governista Unión por la Patria (UxP) acreditava que
se beneficiaria do fato de que a figura de Milei dividiria a oposição. Enquanto
isso, o JxC via em Milei uma força que ampliava o espaço da oposição, lutando
por ideias "liberais" na esfera cultural.
Até agosto, haviam ocorrido 14 das 22 eleições
provinciais realizadas este ano. Em nenhuma dessas eleições a força política de
Javier Milei conseguiu obter um resultado relevante. Ninguém acreditava que ela
pudesse ser um adversário sério.
Nesse contexto, o surgimento de Milei, que se
posicionou como a principal força nas eleições de agosto, foi um verdadeiro
terremoto político. O que até então parecia impossível estava começando a
parecer inevitável.
O cenário havia sido dividido praticamente em
terços: Javier Milei ganhou o primeiro lugar com quase 30% dos votos, o JxC com
28%, enquanto o partido governista UxP ficou em terceiro lugar com 27,5%.
A grande questão era qual das duas forças
principais nas eleições gerais iria disputar o segundo turno.
·
A correlação de fraquezas
As eleições gerais de outubro registraram um
aumento notável no comparecimento dos eleitores. Quase 7% dos eleitores que não
haviam comparecido às urnas em agosto o fizeram em outubro. A maior parte dessa
porcentagem - depois do resultado das primárias - votou em Massa.
Esse contingente extra de eleitores permitiu
que o candidato da UxP obtivesse um aumento extraordinário de mais de 3
milhões de votos. Isso lhe deu um surpreendente primeiro lugar. Em segundo
lugar ficou Javier Milei, que aumentou seu resultado em apenas um ponto
percentual (30%). Enquanto o JxC perdeu quase 500 mil votos em comparação com o
PASO, ficando de fora do segundo turno.
Como se tratava de eleições gerais, o resultado
acabou moldando a composição do parlamento - onde apenas metade dos assentos
foi renovada. O resultado deu origem a um congresso mais fragmentado, em que
nenhuma força alcançou maioria própria. E onde o atual partido governista de
extrema direita é uma minoria que terá de formar alianças para governar.
Dos 257 membros do parlamento que compõem a câmara
baixa, a extrema direita passou de dois deputados para 38. Enquanto a primeira
minoria é mantida pela União pela Pátria (UxP), com 106 deputados, seguida pelo
Juntos pela Mudança (JxC), que agora tem 94, a esquerda tem 5, e 14 deputados
distribuídos entre vários partidos provinciais.
·
A mais ampla unidade
A derrota do Juntos por el Cambio (JxC) abriu
rapidamente um cenário de crise dentro da coalizão. Embora Patricia Bullrich
tenha criticado Milei durante toda a campanha, nem mesmo uma semana após o
resultado da eleição, junto com Mauricio Macri, não hesitou para apoiar o
candidato de extrema direita.
A decisão, não consultada em seu próprio espaço
político, foi justificada com o argumento de que era uma questão de apoiar as
"forças da mudança". As fraturas no Juntos por el Cambio (JxC) se
aprofundaram. Vários líderes do espaço declararam publicamente que não votariam
em Milei.
Com a aproximação do dia da eleição, cada vez mais
instituições começaram a se manifestar contra a candidatura de Milei.
Inclusive, alguns dias antes das eleições, até mesmo as grandes associações de
empresários do setor agronegocio, reunidas na Sociedade Rural Argentina,
emitiram um comunicado expressando sua preocupação com uma possível vitória de
Milei.
Nunca na história da Argentina tantas instituições
tinham se manifestado numa eleição: desde partidos políticos até a igreja,
clubes de futebol, sindicatos e até fã clubes musicais. E, ainda assim, a crise
de representação foi mais forte. Nunca na história argentina houve uma
distância tão abismal entre as diferentes expressões institucionais e o
comportamento social.
A votação destacou as fraturas sociais da
Argentina. Uma sociedade implodida, depois que as mediações sociais contiveram
sua raiva para que ela não explodisse. E, na noite de 22 de outubro, Javier
Milei venceu com 55,6% dos votos contra Sergio Massa.
·
Ordem reacionária
A chegada de Milei à presidência transforma a
Argentina em um novo bastião da extrema direita global, que mais uma vez tem
presença em um dos três maiores países da América Latina. Javier Milei, em
conjunto com os autodenominados libertários na Argentina, faz parte de uma
corrente global "antiprogressista" que, com todas as suas diferenças,
tem conseguido construir um terreno comum e trocar conhecimentos. Tanto é assim
que vários dos técnicos que trabalharam na campanha de Milei, como o consultor
político Fernando Cerimedo, foram assessores das campanhas do clã Bolsonaro ou
Kast no Chile.
A vitória de Milei na Argentina coincide com a
vitória de Geert Wilders, líder da extrema direita holandesa. Dois países onde
a cultura progressista e igualitária está profundamente enraizada e onde a
irrupção da extrema direita se mostrava improvável.
A posse presidencial no dia 10 de dezembro foi
carregada de um profundo simbolismo. De costas para o Congresso, Milei
pronunciou um discurso diante de uma multidão que tinha se juntado para
acompanhá-lo. Seu discurso evitou eufemismos, afirmou de forma clara que seu
governo pretende fazer mudanças "revolucionárias", terminando com a
"casta política".
Com um discurso maximalista, a "casta"
que ele afirma enfrentar é basicamente qualquer um que se oponha às suas
reformas.
Ao contrário da direita clássica, Mieli não se
apresenta como o líder de uma equipe de tecnocratas que pretende solucionar uma
crise econômica. Mas sim como o líder de uma força social que luta por um
horizonte utópico que ele chama de "ideias de liberdade". Um
horizonte de revolução reacionária.
Quanto Milei conseguirá mudar a Argentina ou quanto
a Argentina mudará Milei? Com apenas uma minoria parlamentar, Javier Milei tem
consciência de sua fraqueza institucional. Portanto, sabe que terá de escolher
entre depender de sua base social mobilizada ou do poder institucional
emprestado pela "casta politica".
O cuidado com que montou seu gabinete é um
testemunho disso. Com integrantes vindos de todos os espaços políticos, desde
representantes do macrismo aos antigos líderes peronistas, Milei formou um
gabinete com o cuidado de "não depender de ninguém".
Consciente de sua fraqueza, as primeiras medidas de
Milei são uma aposta para "ir com tudo". 48 horas após assumir o
cargo, o governo apresentou um pacote ambicioso de medidas econômicas. O pacote
de austeridade inclue uma mega desvalorização do peso argentino
da ordem de 54% e a intenção de cortar os gastos públicos em cerca de 5% do
PIB, o equivalente a US$ 20 bilhões (cerca de R$ 100 bi).
Além disso, o governo publicou um severo
protocolo que busca limitar e reprimir os protestos sociais na Argentina.
"Se tomarem as ruas, haverá consequências", advertiu Patricia
Bullrich, ministra da Segurança. Tornando o confronto com os setores que
protestam uma parte central de seu discurso.
Ao mesmo tempo, Milei apresentou um ambicioso
Decreto de Necessidade e Urgência (DNU) que visa modificar 366 leis sem passar
pelo Congresso. Ao arrogar para si a soma dos poderes da república, o DNU é
apresentado como "a reforma mais ambiciosa" dos últimos 40 anos. Em
outras palavras, a reforma econômica e social mais ambiciosa desde aquela
imposta pela última ditadura militar.
Elas são um conjunto de medidas para
viabilizar um gigantesco corte nos direitos trabalhistas, flexibilização
econômica, redução do patrimônio público (privatizando as empresas do país).
A partir desse momento, os protestos
auto-organizados começaram a ser realizados durante a noite, conhecidos
como cacerolazos, principalmente na cidade de Buenos Aires, em
repúdio à DNU. A vitória eleitoral de Milei não é uma vitória hegemônica. Ele
ainda terá que enfrentar as lutas de rua de uma sociedade com grande capacidade
de mobilização e bloqueio das políticas governamentais.
Diante dessa situação, as centrais sindicais e os
movimentos sociais têm manifestado publicamente seu repúdio e mobilização. Na
luta entre o movimento popular e o governo de Milei, está em jogo a
possibilidade de a ultradireita conseguir levar adiante suas reformas
históricas, desmantelando anos de conquistas de direitos.
Com esse cenário, o país dá boas vindas a 2024.
Fonte: Brasil de Fato
Nenhum comentário:
Postar um comentário