De um lado indígenas, de outro ruralistas: STF recebe ações opostas para
deliberar sobre Lei do Marco Temporal
No apagar das luzes de 2023, o Supremo Tribunal
Federal (STF) recebe ações opostas que podem ser definidoras de como serão
tratadas as terras indígenas no Brasil. A disputa entre entidades indígenas,
REDE e PSOL de um lado e PL, Republicanos e PP de outro gira em torno da
validade ou não da Lei 14.701/23, promulgada pelo presidente do Senado, Rodrigo Pacheco, na última quinta (28).
Chamada de “Lei do Genocídio” pelo movimento indígena ou de “Lei do Marco
Temporal”, a normativa carrega muitos outros pontos além deste que lhe dá o apelido.
A tese de que só podem ser demarcadas as terras ocupadas por povos originários
até o marco de 1988, inclusive, já foi considerada inconstitucional pelo STF.
Além do marco temporal a lei prevê, entre outros artigos, a cooperação entre
indígenas e não indígenas para explorar economicamente os territórios; uma
maior burocratização do processo demarcatório (que hoje leva em torno de 30
anos); e a possibilidade de contestação de terras já regularizadas. O texto
determina, ainda, que o usufruto exclusivo dos povos às suas terras não pode se
sobrepor ao interesse “da política de defesa”.
“Esse julgamento, acima de tudo, diz respeito ao
processo civilizacional do nosso país”, define Maurício Terena, coordenador
jurídico da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib), em entrevista
ao Brasil de Fato.
“É muito simbólico porque o marco temporal acabou
tornando-se uma pauta no qual o debate público tem centralizado as suas
atenções. Por parte da sociedade civil, dos povos indígenas, dos movimentos
organizados, mas também por parte do agronegócio que tem tentado fazer um
processo de desconstitucionalização dos direitos dos povos indígenas”, expõe
Maurício Terena.
Ação de inconstitucionalidade do movimento
indígena
A Apib protocolou, junto com a REDE e o PSOL, uma
Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) ao STF pedindo que a maioria dos
dispositivos da lei sejam anulados e seus efeitos suspensos até que a Corte
finalize o julgamento.
No documento, as entidades consideram a lei “o
maior retrocesso aos direitos fundamentais dos povos indígenas desde a
redemocratização do país”.
Ao Brasil de Fato, Dinamam Tuxá,
coordenador executivo da Apib, aponta que a normativa deve “aumentar o
desmatamento e insuflar os conflitos socioambientais no Brasil”.
As entidades pedem que a relatoria fique a cargo do
ministro Edson Fachin, o mesmo que relatou a ação específica sobre a
inconstitucionalidade do marco temporal em setembro. A distribuição da ADI, no
entanto, ainda não foi feita.
Ação de constitucionalidade do agronegócio
Já o setor ruralista, por meio do PL, o PP e o
Republicanos – estes últimos dois partidos integrantes da base aliada do
governo federal – apresentou a Ação Declaratória de Constitucionalidade
(ADC) à Suprema Corte. Por sorteio, o relator será o ministro Gilmar
Mendes.
Argumentando que o tema vai à mesa em meio a
“grande disputa política”, a ação diz que a Câmara dos Deputados e o Senado
promoveram “longo e substancial processo legislativo” que culminou no texto da
Lei 14.701/2023.
“O momento político no qual se insere essa
discussão é ímpar e excepcional a exigir postura de self-restraint do
Supremo Tribunal Federal”, dizem os partidos. “Em cenário de discordância
republicana entre Poderes acerca de determinado conteúdo normativo, a última
palavra em um Regime Democrático, sempre deve ser do Poder Legislativo”,
defende a ação.
Entenda a história recente da disputa
No último 21 de setembro, o STF julgou inconstitucional a tese do marco temporal.
Enquanto isso acontecia, a Câmara dos Deputados colocou em votação em regime de
urgência a lei que trata deste, entre outros temas. Por ampla maioria, o
Legislativo aprovou a Lei 14.701/23 no mesmo mês.
A despeito de uma campanha de movimentos indígenas,
ambientalistas e populares pelo veto integral, em outubro o presidente Lula
(PT) cortou alguns dos trechos do texto. De volta ao Congresso
Nacional no último 14 de dezembro, todos os vetos – com exceção de três - foram
derrubados e a Lei do Marco Temporal aprovada. Na última quinta (28), foi promulgada.
A disputa, agora, se concentra no âmbito do
judiciário. A bancada do agronegócio, no entanto, já sinalizou que caso a lei
seja considerada inconstitucional, a pretensão é mudar a própria carta magna.
Uma Proposta de Emenda à Constituição (PEC) que trata do tema já foi
protocolada no Senado Federal em setembro.
Na leitura de Dinamam Tuxá, a ofensiva contra os
direitos indígenas “se dá porque o movimento fez um enfrentamento muito forte
contra Bolsonaro. Eles estão revidando, essa conta está chegando”.
“Temos confiança na Suprema Corte, até porque
entendemos que ela é guardiã da Constituição Federal e os direitos
fundamentais, incluindo os direitos dos povos indígenas, são cláusulas
pétreas”, avalia o coordenador da Apib. “Mas sabemos que há um jogo político de
poder. O Congresso quer tensionar. E o Supremo vai ter que analisar de forma
muito minuciosa este tema, com muito pé no chão”, complementa.
Da parte do movimento indígena, diz Dinamam Tuxá,
“a prioridade é lutar, sempre. Nós não vamos permitir retrocessos, não
vamos permitir que negociem nossas bandeiras e não vamos baixar a cabeça”.
Ø Governo
demarca 8 de 14 terras indígenas reivindicadas em 2023 e recebe cobrança:
'Somos parceiros, não submissos', diz Apib
O ano de 2023 termina com um saldo de oito Terras
Indígenas (TIs) demarcadas – pouco mais da metade das 14 que o movimento
indígena havia pleiteado para os 100 primeiros dias de governo. Além disso,
neste mês de dezembro o Congresso Nacional derrubou vetos do presidente Lula
(PT) e aprovou a Lei 14.701/23, apelidada de Lei do Marco Temporal ou, como dizem entidades dos povos originários, Lei do Genocídio Indígena. O texto foi promulgado nesta quinta-feira (28) pelo
presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (PSD-MG).
É por isso que, segundo Dinamam Tuxá, da
coordenação executiva da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib), a
entrada de uma Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) no Supremo Tribunal
Federal (STF) no intuito de anular a lei será “prioridade número um” do
movimento no início de 2024.
Apesar de batizado como Lei do Marco Temporal, a
nova legislação carrega outros ataques aos direitos indígenas que
vão além da tese de que só podem ser demarcados os territórios ocupados
por estes povos até 1988 – entendimento este que já é considerado inconstitucional pelo STF.
Entre os outros artigos, estão a regulamentação da
cooperação entre indígenas e não indígenas para exploração de atividades
econômicas dentro dos territórios; maior burocratização do processo
demarcatório; e a definição que o direito de usufruto exclusivo dos povos
originários às suas terras não pode se sobrepor ao interesse “da política de
defesa”.
·
Promessa não cumprida
Apesar de defender demarcações de forma ampla, na
lista das 14 TIs que o movimento entregou ao presidente Lula, ainda na
transição de governo, tinha aquelas cujo processo demarcatório estava
tecnicamente encaminhado. Faltava só a canetada da homologação.
“Houve um comprometimento do presidente Lula e toda
sua equipe em demarcá-las. Um comprometimento público, inclusive, [ocorrido]
durante nosso Acampamento Terra Livre”, recorda Tuxá, que é também assessor
jurídico da Articulação dos Povos e Organizações Indígenas do Nordeste, Minas
Gerais e Espírito Santo (Apoinme).
A falta de demarcação das outras seis TIs em 2023,
ressalta Dinamam, “não se dá por caráter técnico, mas por questões
políticas”.
“Houve uma coalizão de forças para que o presidente
Lula fosse eleito. Da mesma forma que houve o apoio dos povos indígenas, tem
outros agentes, de grande força econômica", pontua.
Dinamam diz compreender que "o presidente
necessita de governabilidade no parlamento. Só que esse preço está saindo muito
caro para os povos indígenas”. De acordo com o dossiê “Os invasores” do De olho nos ruralistas,
integrantes do Congresso e do Executivo são donos de cerca de 96 mil hectares
sobrepostos a terras indígenas.
“Não vamos aceitar negociações. Nós somos
parceiros, não somos submissos. E somos um dos primeiros movimentos a declarar
isso abertamente para o presidente”, afirma o coordenador da Apib.
“O avanço que tivemos foi de ocupar cargos
estratégicos e a criação do Ministério dos Povos Indígenas. Mas em termos de
demarcação, fiscalização e proteção territorial ainda falta muito a ser feito”,
cobra Dinamam Tuxá.
Ao Brasil de Fato, o Ministério da Justiça
informou que recebeu 30 processos de demarcação de TIs em 2023 e que destas,
duas foram foram homologadas por decreto presidencial. “As demais encontram-se
nas etapas de análise técnica e jurídica”, sem previsão de finalização, disse a
pasta. De acordo com a Funai, hoje há 761 territórios indígenas em diferentes
etapas de regularização.
·
As terras demarcadas e os conflitos em curso
Entre as TIs demarcadas, seis foram homologadas em
abril, durante a participação de Lula no Acampamento Terra Livre, a maior
mobilização indígena do Brasil. Outras duas em setembro, no dia da Amazônia.
Foram elas: Arara do Rio Amônia (AC), Kariri-Xocó (AL), Rio dos Índios (RS),
Tremembé da Barra do Mundaú (CE), Uneiuxi (AM), Avá Canoeiro (GO), Acapuri de
Cima (AM) e Rio Gregório (AC).
Cacique desta última no Acre, Tashka Yawanawá conta
que Rio Gregório está efetivamente ocupada por seu povo desde 2003. O que mudou
desde a homologação neste ano “é a segurança”, diz. “Não sentimos mais ameaça
daqueles que diziam ser os donos da terra. Essa é a grande mudança, de a gente
dormir tranquilo, sem ameaça de perder esse pedaço de terra que é tão
importante para o nosso povo”, resume.
Essa tranquilidade, no entanto, ainda é exceção no
Brasil. No último 22 de dezembro, o cacique Lucas Kariri-Sapuyá, de 31 anos e
do povo Pataxó Hã-hã-hãe, foi assassinado no sul da Bahia. Em Roraima, um ofício da Funai demonstra
preocupação com a “desmobilização gradual” de militares na terra Yanomami,
enquanto garimpeiros voltam ao local.
No Mato Grosso do Sul, um grupo Guarani
Kaiowá, bem como uma antropóloga, um engenheiro florestal e um jornalista
canadense foram espancados por homens encapuzados depois que indígenas retomaram o território
tradicional Pyelito Kue, sobreposto pela Fazenda Maringá.
Lembrando que as oito TIs homologadas em 2023
quebram um jejum de demarcações no país instaurado desde 2018, Dinamam Tuxá
salienta que o acirramento dos conflitos socioambientais ainda não foi contido.
“O discurso do governo federal para combater a
crise climática está se esvaziando. Ao mesmo tempo que o faz, o Brasil ingressa na Opep+ [Organização dos Países
Exportadores de Petróleo], faz leilões para a exploração de petróleo em bacias
importantes”, critica o representante da Apib. “Uma das maiores ações para
combater a emergência climática é, justamente, a demarcação de terras indígenas”.
·
“Genocídio legislado”
Nos cálculos da Apib, a partir do momento em que
uma terra indígena começa seu processo demarcatório com os estudos de
identificação, ela leva em média 30 anos para ser regularizada. Com a Lei
14.701/23 aprovada no último 14 de dezembro, a entidade indígena prevê que
o tempo vai triplicar.
“Além disso, querem beneficiar invasores de terras
indígenas que só serão removidas mediante indenização prévia. Ou seja, vão ser
premiados aqueles que invadirem terras indígenas”, complementa Dinamam Tuxá.
Para ele, a aprovação da lei – cuja votação começou
na Câmara dos Deputados ao mesmo tempo em que o STF julgava improcedente o
marco temporal – foi um revide da bancada ruralista. “O movimento fez um
enfrentamento muito forte contra o Bolsonaro e a conta está chegando”,
avalia.
“Para esta luta, contávamos com um apoio sem
precedentes do Executivo, mas muitas vezes nossas pautas não têm apoio político
até da base governista”, alerta Dinamam. “O discurso não está batendo com a
prática”.
O ministro da Agricultura, Carlos Fávaro, se
exonerou temporariamente do cargo no último 12 de dezembro para, enquanto
senador, apoiar a indicação de Flávio Dino como ministro do STF. Aproveitou
para esticar sua atuação como parlamentar e votar a favor do então PL do
Marco Temporal.
Questionado, o ativista indígena diz que as
prioridades do movimento em 2024 são derrubar a “Lei do Genocídio Indígena” por
meio do STF; fazer articulações internacionais para, entre outras ações,
colocar o ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) para ser julgado no Tribunal Penal
Internacional; denunciar empresas e pessoas que financiam “a destruição e os
conflitos socioambientais no Brasil” e, como ponto central, conquistar novas
demarcações de terras.
Fonte: Brasil de Fato
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