O Brasil, que começou o ano cercado de incertezas, vai bem rumo a 2024;
e o Bolsonaro, heim?
E la nave Brasil, que começou o ano cercado de
incertezas, pela base política não majoritária no Congresso alcançada pelo
presidente eleito, Luís Inácio Lula da Silva, e que se agravaram com a
tentativa de golpe em 8 de janeiro, com a invasão e depredação das sedes dos
três Poderes em Brasília pelas hostes bolsonaristas, quem diria, va benne rumo
a 2024, e conseguiu aprovar, por boa margem de votos na Câmara e Senado, as
propostas de governo. A última delas foi a aprovação da Reforma Tributária por
53 a 24 votos entre os 81 senadores. A ser aplicada gradualmente nos próximos
sete anos, a reforma ainda vai passar por nova votação na Câmara dos Deputados.
Mas é notável que o país tenha aguardado por ela uns 40 anos. Na Constituinte,
o capítulo da Reforma Tributária, que teve como relator o deputado José Serra,
não ousou corrigir na promulgação da Constituição, em 5 de outubro de 1988, (há
35 anos) a grande distorção que concentra a renda no país: a pirâmide invertida
da carga tributária assentada sobre 70% de impostos sobre o consumo e apenas
30% em tributos sobre a renda e o patrimônio. Na Europa e nos países
democráticos filiados à OCDE – o clube dos ricos do qual queremos ser sócios –
é exatamente o oposto. O grosso dos tributos incide sobre a renda. Ou seja, no
Brasil, os empresários se queixam da carga, mas transferem os impostos nos
preços dos produtos aos consumidores. A reforma vai melhorar isso, um pouco.
Nenhuma reforma há de ser perfeita. Mas, caminhamos
rumo à maior justiça tributária. O arcabouço, que simplifica o emaranhado de
impostos de consumo por dois impostos binários, já é um grande avanço. Mas,
como diz o velho ditado, “o diabo mora nos detalhes”. Nossos deputados e
senadores estão sempre sensíveis aos “lobbies” que se multiplicam quando se
trata de pagar impostos. As exceções que os senadores plantaram vai pesar no
bolso de quem não foi aquinhoado. Quando jabutis que apareceram numa forquilha
de uma árvore, sábio e matreiro político nordestino deduziu: “jabuti não sobe
em árvore; se está aí, foi enchente ou mão de gente”. Como enchente nunca viu
em sua existência, o coronel do sertão insinuava que era mão de gente. Pois
agora foram tantas as exceções setoriais ou regionais, que a famosa e deletéria
guerra fiscal entre os 27 estados da Federação pode perder força, mas está com
o ovo da serpente preservado quando reservou privilégios externos para a Zona
Franca de Manaus e manteve incentivos fiscais para a instalação de fábricas de
automóveis no interior do Brasil.
Vale recordar que a indústria automobilística foi
instalada pelo presidente mineiro JK em São Paulo, porque o estado paulista já
era o motor da economia brasileira na segunda metade dos anos 50, graças aos
capitais acumulados com a riqueza do café, que propiciaram recursos para
investimentos em fábricas no entorno da capital paulista. O ABC, que ganhou um
D (de Diadema) cresceu tanto e concentrou a renda e as migrações para São Paulo
- a família do presidente Lula é um bom exemplo, porque ele veio de Garanhuns
(PE) para procurar o pai, primeiro em Santos, e depois se formou torneiro
mecânico em São Bernardo do Campo, o B do ABCD -, que o general Geisel, um
estudioso das distorções da má distribuição de oportunidades de emprego e renda
no imenso território brasileiro, percebeu, em 1975, ser necessário evitar a
concentração industrial em São Paulo. Assim, forçou a instalação da fábrica da
Fiat em Betim, próximo a Belo Horizonte (MG), e a fábrica da Volvo Caminhões no
Paraná, próximo a Curitiba. Paralelamente, estimulou a implantação de pólos
petroquímicos em Aratu (BA) e Triunfo (RS).
Sem a descentralização, o vendaval que atingiu a
capital paulista e municípios vizinhos, com queda de árvores que destruiu
linhas aéreas de distribuição de energia, deixando a região vários dias sem
energia, teria causado não só um blecaute, mas o colapso econômico-social na
economia brasileira. Já naquela época as questões logísticas de chegada de
insumos às fábricas e despacho dos produtos acabados eram largamente afetadas
por engarrafamentos de trânsito. Felizmente, as fábricas de automóveis se espalharam
pelo interior de São Paulo, por cidades do Paraná, Rio Grande do Sul, Santa
Catarina, Minas Gerais, Rio de Janeiro, Bahia, Pernambuco, Ceará, Goiás,
Amazonas (Manaus) e Tocantins, levando emprego e renda a outras regiões e
evitando a migração concentradora em São Paulo. A conquista do Centro Oeste
pela agricultura abriu novas oportunidades de emprego e renda na agroindústria.
Mas os deputados e senadores têm a responsabilidade
de evitar a criação de novos octógonos para a reedição de guerras fiscais entre
os estados. A sofisticação da concorrência pode levar ao emprego de técnicas
destrutivas tipo MMA. Decididamente, não é isso que o Brasil precisa. O país
precisa passar por uma verdadeira reestruturação nas fontes energéticas de seu
parque industrial e de sua estrutura de comercialização. Ou seja, precisa haver
diálogo com o novo desenho da estrutura tributária. O que não ficou claro até
aqui.
·
O jogo de cintura de Lula
O presidente Lula está contrariando as análises
mais pessimistas sobre a capacidade de articulação política de seu governo e
tem conseguido aprovar coisas que até o PT duvidava. O poder de sedução da
caneta presidencial (mesmo uma BIC furreca, como se vangloriava Bolsonaro) é
irresistível. Assim como os empresários brasileiros (salvo as exceções de
praxe) gravitam em torno do Estado (dos guichês dos bancos estatais e das
encomendas do setor público), os políticos, que pegam carona nas verbas do
Orçamento Geral da União para depois tentar colher dividendos na inauguração de
obras federais em seus redutos eleitorais, sabem como é importante estar junto
a uma placa do governo federal. Ou no comando de uma rica repartição. Por isso,
foi possível Lula fazer o velho “toma lá, dá cá”. Ministras foram sacrificadas
em nome da governabilidade. Ou seja, de votos esparsos dos Republicanos (da
Igreja Universal do Reino de Deus, de Edir Macedo), do PP (que tem o presidente
da Câmara, o alagoano Arthur Lira, como um dos chefões, ao lado do presidente
Ciro Nogueira (PP-PI), que há um ano era o ministro chefe da Casa Civil de
Bolsonaro. Mas a vitória na votação da Reforma Tributária custou a entrega da
Caixa Econômica Federal, de “porteira fechada” a um apadrinhado do PP. Os fins
justificam os meios?
Todas as nomeações para o STF e a PGR têm de passar
pela aprovação do Senado. Bem como de dois novos diretores do Banco Central. Os
mandatos dos atuais ocupantes vencem em 31 de dezembro. Mas, como o Congresso
entra em recesso em 22 de dezembro e só retoma as atividades em 1º de
fevereiro, o ministro da Fazenda, Fernando Haddad, quer aprovação prévia para
que a dupla indicada já participe da primeira reunião do Comitê de Política
Monetária (Copom) do Banco Central em 2024, dias 30 e 31 de janeiro. Como se vê,
o calendário de votações na Câmara e no Senado estará carregado até o recesso.
O governo precisa estabelecer as prioridades: votação da reforma tributária,
aprovação do Orçamento Geral da União para 2024, leis e projetos ordinários e a
aprovação de novas indicações para cargos públicos. São costuras nas quais é
preciso paciência para não errar.
·
Números da economia ajudam
Um fato ajuda: os números da economia têm sido bem
favoráveis ao governo. Na sexta-feira, o IBGE divulgou o IPCA de outubro. A
inflação oficial, que mede as despesas das famílias que ganham até 40 salários
mínimos (R$ 52.800), foi de 0,24%, abaixo dos 0,26% de setembro e bem inferior
às previsões do mercado e do Banco Central. No acumulado do ano, a inflação foi
de 3,75% e em 12 meses a taxa caiu dos 5,19% de setembro para 4,82%. Embora com
alta superior ao IPCA no mês passado (0,31%), graças ao impacto baixista da
supersafra de grãos, que influiu na cadeia alimentar humana e das rações
animais, os preços dos alimentos e bebidas acumulam baixa de 0,70% de janeiro a
outubro, quando a inflação foi de 3,75%, e subiram apenas 0,48% em 12 meses,
contra uma variação de 4,82% no IPCA. Tudo indica que o IPCA pode fechar o ano
abaixo do teto da meta de inflação, de 4,75%. Mas o mérito não será do Banco
Central. O BC errou feio em não prever a intensidade da baixa dos alimentos nem
seus impactos no PIB e nas exportações (os saldos da balança comercial
acumulados até outubro estão US$ 20 bilhões acima das previsões do BC). Maior
erro ainda foi estimar um impacto inflacionário muito maior com a volta da
cobrança de impostos federais e estaduais sobre combustíveis, energia elétrica
e comunicações, que haviam sido cortados, temporária e eleitoralmente, pelo
governo Bolsonaro, de 1º de julho a 31 de dezembro de 2022. Por isso, a
inflação de 2022 despencou de dois dígitos para 5,79%. Sem trocar ideias com a
nova equipe econômica, o Banco Central se preparou para um forte repique da
inflação em 1º de janeiro e manteve os juros em 13,75% ao ano. Mas o governo
Lula, temendo desgaste, adiou a reoneração dos impostos de março em diante, de
forma gradual e sem o retorno às alíquotas anteriores. Como se viu no 8 de
janeiro, uma alta dos preços dos combustíveis seria um rastilho de pólvora para
os golpistas no país.
Quando os impostos começaram a voltar e Lula já
cobrava a baixa dos juros ao Banco Central, vozes mais bolsonaristas que
conservadoras saíram em defesa da autonomia do Banco Central. Como se a
independência fosse sinônimo de infalibilidade. Em meus mais de 50 anos de
acompanhamento da economia já vi muitos erros somados do Banco Central e das
equipes econômicas, quando jogavam juntas. Quando cada um rema numa direção, o
barco da economia vai pior. Em vez de manter o sistema de Paridade de Preços
Internacionais (PPI) criado em 2016, no governo Temer, quando os preços
domésticos dos combustíveis acompanharam as cotações internacionais atualizadas
pelo câmbio, a Petrobras cumpriu a promessa de campanha de Lula, de
“abrasileirar” os preços dos combustíveis. Fez valer para a sociedade e a
economia brasileira a vantagem comparativa de ter uma das 10 maiores produções
de petróleo do mundo (óleo mais leve do pré-sal já garante 78% da produção) e
de ter um parque de refino integrado, capaz de suprir quase todas as necessidades
do país. Pelo PPI, criado para fatiar a Petrobras, reduzir seu tamanho no
refino e atividades de “upstream”, tornando-a maior na E&P de petróleo
(“downstream”), estaríamos hoje ouvindo planos de privatização da maior
companhia brasileira, caso Bolsonaro tivesse sido reeleito. Só que não.
Mesmo sem a refinaria da Bahia, que podia refinar
até 330 mil barris diários, vendida ao fundo Mubadala, dos Emirados Árabes
Unidos, a Petrobras reforçou o refino petróleo mais leve do pré-sal em suas
refinarias (ocupadas com 96% da capacidade), oferecendo produtos a preços
acessíveis no país. As vozes bolsonaristas aproveitaram a baixa do lucro da
Petrobras no 3º trimestre (que foi geral em toda a indústria do petróleo, pois
os preços caíram bastante desde o 2º semestre do ano passado, após as tensões iniciais
da invasão da Ucrânia pela Rússia) para criticar a gestão da Petrobras. Mesmo
com a queda de 7% no dólar no período e de mais de 14% nas cotações do petróleo
do tipo Brent, as receitas da Petrobras só encolheram 23% no período, contra
média de mais de 40% das gigantes como ExxonMobil, Chevron, BP e Aramco. Um dos
segredos da Petrobras é justamente, frisou seu presidente, Jean Paul Prates, a
integração das atividades de exploração e produção com as fases industriais do
refino (seria maior se ainda estivesse com parcerias maiores na petroquímica e
nos projetos de fertilizantes - essenciais ao país de maior produção agrícola
do mundo). Pois tudo isso seria desativado, num crime de lesa-pátria, com a
privatização da Petrobras. E a inflação seria bem maior e prolongaria a agonia
dos juros altos. Os balanços dos quatro maiores bancos (Santander, Itaú, Banco
do Brasil e Bradesco), à parte os dados causados pela Americanas, já
devidamente provisionados, mostraram a deterioração dos empréstimos às famílias
e às pequenas, médias e microempresas, com a explosão da inadimplência. Se os
juros não baixarem rápido, não haverá Programa Desenrola que dê jeito. Daí a
pressa de Haddad em mudar a composição do Copom, com pessoas mais afinadas ao
governo.
·
E o Bolsonaro, hein?
Quando já se esperava que o fantasma da passagem de
Jair Bolsonaro pela vida brasileira fosse página virada, após a condenação do
Tribunal Superior Eleitoral, que o tornou inelegível por oito anos, reforçada
por nova condenação, em dupla com o vice de sua chapa em 2022, o general Braga
Neto, eis que o indigitado cidadão tenta surfar na onda do drama do resgate dos
brasileiros e seus parentes em Israel e na faixa de Gaza. A pronta ação da FAB,
mobilizada pelo presidente Lula, já repatriou, desde 7 de outubro, em oito voos
de aviões fretados e da FAB, um total de 1.400 cidadãos brasileiros, e ainda 53
animais de estimação. A operação mais delicada, para a qual foi posto à
disposição avião da Presidência da República, é a evacuação, via Egito, de
pouco mais de três dezenas de cidadãos brasileiros e seus parentes que estão na
problemática faixa de Gaza, varrida por Israel na caça aos líderes do Hamas.
Pois os bolsonaristas, além de insuflarem o governo
de Benjamin Netanyahu a fazer corpo mole para liberar os brasileiros, em
retaliação à posição do governo Lula, que defendeu, quando presidiu o Conselho
de Segurança da ONU, propostas de cessar fogo para evacuação humanitária
organizada das áreas, trataram de pôr Bolsonaro como papagaio de pirata (num
convite até aqui mal explicado) na exposição, pelo embaixador de Israel em
Brasília, de vídeo sobre as atrocidades dos terroristas do Hamas, que invadiram
o território israelense mataram famílias e fizeram duas centenas de reféns. E o
ex tentou fazer crer, nas redes sociais, que atua na liberação dos brasileiros
em Gaza.
A situação é muito grave para explorações políticas
baratas. Poucas horas depois de sua bravata, a passagem de Rafah, pela qual
sairia o ônibus rumo ao Egito e ao avião distante cerca de 10 quilômetros, foi
novamente fechada, sem previsão de reabertura. O revide pesado de Israel já
contabiliza mais de 10 mil mortos nos territórios palestinos, e os brasileiros
correm o risco de engrossar a lista. Só os diplomatas acreditados de cada país
e as respectivas chancelarias estão tratando das pausas humanitárias para
evacuação dos cidadãos e tratamento dos feridos. Os Estados Unidos queriam
trégua de quatro dias para evacuação de civis. Israel só aquiesceu em quatro
horas diárias. Tempo que mal dá para contar os cadáveres e remover os feridos
para hospitais, que também se tornaram alvos das forças de Israel, quando
franco atiradores do Hamas lá se refugiam para fazer ataques surpresas.
Aos que esqueceram, é bom lembrar que, quando era
presidente e tinha todo o poder nas mãos, Jair Bolsonaro relutou em trazer de
volta ao Brasil brasileiros que estavam em Wuhan, onde eclodiu o primeiro surto
da Covid-19 na China, em novembro-dezembro de 2019, pois considerava cara a
operação. Mas, ao enviar avião da FAB para o resgate, o número de militares a
bordo superava em três vezes o grupo a ser repatriado. A turma ia fazer
gravações de imagens para badalar a imagem presidencial nas redes sociais. Como
se sabe, ao longo da pandemia, que matou (oficialmente) 771 mil brasileiros,
Bolsonaro atuou sempre no modo negacionista. Não enviou oxigênio a Manaus
quando a população do Amazonas e estados vizinhos estava se sufocando. Numa
visita a Moscou, na primeira quinzena de fevereiro de 2022, se jactou de ter
convencido Vladimir Putin a não invadir a Ucrânia. Duas semanas depois, as
tropas russas cruzaram a fronteira e massacraram a Criméia e as cidades na
fronteira, além de bombardear Kiev. E, na fase mais dura da guerra, abandonou
brasileiros na Ucrânia, orientando-os a que saíssem ‘por meios próprios’.
Centenas tiveram de fugir de trem e ônibus para a Polônia e Hungria. Agora, que
não tem poder algum, quis aparecer no filme do resgate dos brasileiros em Gaza.
O filme de Jair queimou em 24 horas. Papelão sem igual.
Fonte: Jornal do Brasil
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