Whitaker, o banqueiro keynesiano de Getúlio
Na teologia econômica da década de 1920
rezava-se por Estado mínimo, superavit orçamentário e até Banco Central
Independente. Missionários estrangeiros, como Otto Niemeyer, visitavam o Brasil
para convencer nossos governantes de que os interesses britânicos eram
universais. E as visitas eram realmente chamadas de “missão”. No entanto, um
colapso mundial abalou aquela fé.
A crise de 1929 derrubou os preços pagos ao
produtor do café brasileiro pela metade, mas o Brasil manteve os níveis de
emprego, ainda que destruindo os frutos da produção. O espírito pragmático do
governo brasileiro rendeu-se às necessidades econômicas e não aos dogmas
liberais da época. Como isso foi possível?
Para Celso Furtado, a política adotada,
“conscientemente ou não” (destaca ele) deslocou o centro dinâmico da economia
das atividades agroexportadoras para o mercado interno. Celso Furtado disse que
o importante é que o valor do produto que se destruía era menor do que o
montante da renda que se criava e que estávamos fazendo o que Keynes
preconizaria anos mais tarde.
A capacidade de importar caiu pela metade na
maior parte dos países da América Latina, o que, segundo Maria da Conceição
Tavares, os obrigou a restringir importações, comprar excedentes e financiar
estoques, visando equilibrar a balança de pagamentos. O efeito foi a manutenção
da renda interna e o estímulo ao “desenvolvimento para dentro”. Surgiu um novo
modelo de desenvolvimento em que a variável externa (exportações) perdeu
importância para a endógena (investimento).
• Críticas
liberais
Não é consensual essa leitura. Carlos Peláez
afirmou que a maioria dos fundos para a compra de estoques de café originou-se
de impostos de exportação sobre o setor cafeeiro, o que não pode ser
considerado um mecanismo anticíclico keynesiano, pois a renda gerada pelos
gastos governamentais com a compra do café foi destruída pelo efeito
multiplicador negativo dos impostos com os quais foi financiada a aquisição.
Mas então como explicar a mudança estrutural
da economia?
Registrou-se incremento da base monetária,
deficit orçamentário, desvalorização cambial e aumento da oferta de crédito. O
resultado foi que num país que era agrário até a Revolução de 1930, o valor da
produção industrial igualou o da agricultura 4 anos depois. Entre a década de
1920 e a de 1940 a participação da indústria no produto aumentou muito, embora
não haja estatísticas precisas. A depender do cálculo, a indústria de
transformação atingiu 16,5% em 1947 quando o Brasil adotou o Sistema de Contas
Nacionais. Outros apontam uma participação pouco maior ou menor, mas é
indubitável que a indústria de transformação se tornou relevante no período.
Não foi nenhuma Revolução Industrial. Segundo
Marcelo Abreu a produção de bens salário, que correspondia em 1919 a cerca de
80% do total do valor adicionado industrial, ainda era 70% ao final da década
de 1930. Ainda assim, em 15 anos de Era Vargas, o país era outro.
Após a Revolução de 1930, a entrada de
interesses industriais e trabalhistas no aparelho de Estado não deslocou as
oligarquias, mas criou um clima favorável à industrialização. Se esta foi
produto de uma crise que exigiu a redefinição do Estado, por outro lado havia
uma forma mentis pragmática, capaz de se adaptar às novas exigências.
A ideologia dominante na Primeira República
era liberal, mas o cientificismo e o culto do progresso dele decorrente
implicava maior aderência ao concreto. A troca desigual, por exemplo, já era
percebida pelos nacionalistas como Amaro Cavalcanti. A tendência histórica de
declínio do preço do café era nítida. A demanda era pouco elástica à variação
do preço. Nos EUA entre 1920 e 1929 a renda real per capita aumentou 35% e o
consumo do café ficou estável em torno de 12 libras per capita. Na depressão os
preços caíram 40%, mas o consumo per capita era só 12,5 libras em 1933.
A solução proposta pelo capitalista Alexandre
Siciliano para manter a produção elevada de café tinha sido, a partir de 1906
(Convênio de Taubaté), a criação de um estoque regulador financiado com
empréstimo estrangeiro. Não existia nenhuma inversão líquida na economia, “pois
o que se investia dentro do país, acumulando estoque, se desinvestia no
exterior, contraindo dívidas”. É como se uma firma estrangeira tivesse pago
adiantado e adiado o transporte. O estoque servia para manter o investimento no
plantio.
Depois da Revolução de 1930 a situação muda.
• José
Maria Whitaker
Um dos executores da mudança estrutural da
economia nada tinha do Physique du rôle do revolucionário. Era paulista e
banqueiro.
José Maria Whitaker (1878-1970) enriqueceu em
banca advocatícia, na comercialização de café e como financista. No Governo
Epitácio Pessoa assumiu a direção do Banco do Brasil. Na época, nenhum banco
oferecia crédito abundante no país. Descontava-se uma letra de câmbio em 90
dias e o banco aguardava esse prazo para receber o que emprestara em
prestações. Whitaker estimulou a rede bancária nacional ao criar a Carteira de
Redescontos do Banco do Brasil. Acabou por abandonar o governo, sendo alvo de
críticas dos membros de sua própria classe.
Em 1930 assumiu a pasta da fazenda.
Definia-se um liberal preocupado com o “equilíbrio dos orçamentos”. Embora do
Partido Democrático, ele era descomprometido com a Revolução de 1930. Chamado
por Vargas para o ministério a fim de aplacar os paulistas, procurou antes de
tudo socorrer os cafeicultores. Porém, notou que, antes, a redução da oferta de
café era efetuada pela sua retenção nos entrepostos internos, mediante gastos
do governo oriundos de empréstimos estrangeiros. Contudo, a situação em 1930
era de estagnação econômica que afetava não só os fazendeiros, mas colonos,
pequenos comerciantes, atacadistas e importadores.
A deliberação de compra do café ocorreu numa
reunião entre José Maria Whitaker, Juarez Távora, o presidente do Banco do
Brasil Mario Brant e Getúlio Vargas a 29 de dezembro de 1930. Por
aconselhamento de “um dos nossos mais inteligentes commerciantes de café” foi
imposta uma sobretaxa à saca de café exportado para financiar a compra dos
estoques e queimá-los para liberação das safras futuras. Mas isso foi só um
paliativo. Teria que haver novas medidas.
José Maria Whitaker não abandonava a
profissão de fé liberal: “Seu objetivo principal era restituir aos lavradores a
livre disposição de suas safras, e acabar com as intervenções nos mercados de
café”. Ele tentou financiar a compra com impostos, cortar gastos estatais,
evitar emissão de moeda. Sem sucesso.
• Pragmatismo
Inicialmente José Maria Whitaker desejava tão
somente salvar a lavoura do café e evitar os fantasmas que assustavam qualquer
liberal: déficit orçamentário, aumento de impostos e emissão monetária. Só que
ele violou na prática os seus princípios. Podia não tê-lo feito, afinal a crise
de 1930 não teve a mesma saída por parte de todos os governos latino
americanos. Sem perder de vista seu interesse privado e os de sua classe,
percebeu que era necessário combiná-los a uma visão de conjunto do país.
“Sem emissões e sem augmento de tributação”
era o lema de José Maria Whitaker, mas suas intenções esbarraram nos fatos. Ele
abriu um crédito no Banco do Brasil de 150 mil contos para a compra de café.
Ele também retomou a carteira de redescontos do Banco do Brasil para aumentar a
oferta de crédito pelos bancos.
Como o orçamento foi deficitário, José Maria
Whitaker propôs a redução simbólica de despesas (de salário do presidente e de
ministros, de uso de automóveis, dispensa de funcionários, maior controle de
aposentadorias de funcionários etc.). Obras de construção foram adiadas e o
imposto sobre o consumo aumentou. Houve aumento da faixa de isenção do imposto
de renda, aumentando o limite de 6 para 10 contos, liberando-se 50 mil
contribuintes.
Pode parecer contraditório. E era. Porque se
tratava de um político prático em constante tensão com seus princípios. José
Maria Whitaker tinha consciência dos resultados de sua política, continuada sem
ele após seu pedido de demissão em novembro de 1931. Ele acentuava claramente a
recuperação da demanda efetiva, o aumento do emprego e o crescimento
industrial.
José Maria Whitaker uma vez mais colheu as
críticas de sua própria classe, cuja racionalidade microeconômica lhe impedia
de ver no Governo a salvação da lavoura e da economia como um todo. Mesmo
aninhado de novo entre os próceres paulistas de 1932, ele não se arrependeu da
obra. Em relatório de 4 de fevereiro de 1933, jactou-se que o café novo
exportado “deu vida nova à nossa economia”: “O commercio reanimou-se, as
industrias movimentaram-se, desappareceram os sem trabalho”, os juros caíram de
12% a 5% na praça do Rio de Janeiro e os negócios da bolsa de São Paulo
excederam em 50% o ano anterior.
• A
obra
Em resumo, José Maria Whitaker comprou café
para destruir, mas como não havia maneira de contrair dívida externa para
financiar essa operação (devido à crise internacional), ele expandiu o crédito.
“A situação seria totalmente distinta caso a acumulação de estoque fosse
financiada com a expansão de crédito” diz Celso Furtado, devido ao efeito
multiplicador. A renda acrescida seria habitualmente gasta com importados, mas
como o mercado mundial estava em crise, o Brasil não tinha divisas para isso.
Com poucas reservas cambiais e muita procura,
o cruzeiro perdeu poder aquisitivo: “Ao manter-se a procura interna com maior
firmeza que a externa, o setor que produzia para o mercado interno passa a
oferecer melhores oportunidades de inversão que o setor exportador”. A renda
foi mantida elevada e a capacidade para importar baixou. Celso Furtado chama
isso de deslocamento do centro dinâmico. Isso resulta na substituição de
importações.
José Maria Whitaker primeiramente socorreu os
cafeicultores, base de suas relações sociais e, indiretamente, de sua riqueza.
O interesse privado o moveu. Em seguida, foi motivado pela importância da
cafeicultura não só para os fazendeiros, mas para o conjunto da economia. Ele sabia que outros grupos sociais como o
comércio, os bancos e a indústria necessitavam da reativação da circulação de
riqueza na economia.
José Maria Whitaker era um banqueiro liberal
no sentido da elite paulista daquele tempo: federalista, contra o centralismo e
defensor da intervenção do Estado apenas em favor dos de cima. Liberalismo que
não excluía grande plasticidade hermenêutica na interpretação da democracia. Em
1930 foi centralista, intervencionista e autoritário.
E não é paradoxal que em 1932 tivesse sido
coerente com sua classe, organizando a campanha pelo ouro para o bem de São
Paulo. Voltou à sua grei. E pouco depois, lá estava sua classe fundando a USP e
exigindo a mais intensa repressão aos trabalhadores em nome do anticomunismo.
Violência que a inteligência uspiana de tinturas críticas costuma atribuir
apenas ao Estado Novo.
Depois de tudo
Em 1955, José Maria Whitaker reassumiu o
Ministério da Fazenda no governo de Café Filho e procurou fazer uma gestão
ortodoxa. No entanto, naquelas circunstâncias excepcionais de 1930, ao procurar
salvar os cafeicultores, percebeu sua política teria outros desdobramentos
econômicos positivos.
O mundo pós crise de 2008 abriu alternativas
para a semi-periferia. Mutatis mutandis, tanto quanto em 1929. Mas as
oportunidades precisam ser aproveitadas. Não necessariamente por declarados
socialistas, mas por dirigentes imbuídos de interesse nacional.
Obviamente que há forte oposição, afinal não
precisa muito para um governo incomodar o capital, mesmo quando o favorece.
Basta ler as investidas maldosas do ex ministro Armínio Fraga contra a política
de valorização do salário mínimo.
Sem um partido popular, mesmo que alguns de
seus expoentes não sejam mais de esquerda, novas propostas não têm aderência ao
real. Mas sem combate ao neoliberalismo (disfarçado em realismo político)
podemos perder mais que um governo.
Fernando Haddad e o ungido Gabriel Galípolo
imitam José Maria Whitaker. Mas com sinal trocado. Afinal, cada um só pode
decepcionar a classe social que deveria representar. Enquanto Gabriel Galípolo
sobe juros, Fernando Haddad viaja aos EUA para vender nossa futura
infraestrutura digital. A periferia de hoje dispensa missões, pois a crença é
inabalável.
Se conselhos fossem úteis, eu daria um:
sacrifique sua ideologia para fazer história. Se um banqueiro conseguiu, por
que não um intelectual?
Fonte: Por Lincoln Secco, em A Terra é
Redonda

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