Transtorno
do jogo é semelhante à dependência química, apontam especialistas em saúde
mental
As
apostas online representam um grave problema social e de saúde pública,
impulsionado por mecanismos psicológicos e tecnológicos, massivamente promovido
em mídias sociais e ainda enfrentando desafios significativos de regulamentação
e fiscalização eficazes.
Amanda
Milani, mestre em saúde pública pela Fiocruz e pesquisadora do Laboratório de
Estudos e Pesquisas em Saúde Mental, Internet e Mídia Sociais, e Rafael Freire,
psiquiátrica clínico e forense, especialista em transtornos do impulso e
colaborador do Programa Ambulatorial de Transtornos do Impulso do Instituto de
Psiquiatria do Hospital das Clínicas de São Paulo, falaram sobre o vício em
apostas online durante entrevista ao jornalista Luis Nassif, na noite de quarta
(14), para o programa TVGGN 20 Horas, no Youtube.
Historicamente,
os jogos de aposta existem há pelo menos três mil de anos, e fazem parte de
diversas culturas. No entanto, na visão de Milani, as plataformas online trazem
“características contemporâneas” a essa forma de se relacionar com os jogos,
com de plataformas digitais, redes sociais, aplicativos e influenciadores
digitais para massificar o alcance, o que gerou um grande debate no Congresso
nesta semana, no âmbito da CPI das Bets, após o depoimento da influenciadora
Virgínia Fonseca.
Do
ponto de vista da saúde mental, o jogo de aposta patológico é um transtorno do
impulso, relacionado à falta de controle sobre o comportamento de apostar. Os
impulsos são vistos como representações dos nossos instintos ou vontades,
explicou o psiquiatra Rafael Freire. “Com o advento da tecnologia, a gente vê
crescer, de forma exponencial, a dependência de jogos eletrônicos, dependência
tecnológica e o transtorno do jogo.”
O
“transtorno do jogo” é classificado como uma dependência comportamental, que se
manifesta de forma análoga às dependências químicas, apontou Freire. Pessoas
afetadas podem apresentar fissura (pensamento constante no jogo) e a
necessidade de recuperar o dinheiro perdido, o que faz com que o comportamento
domine suas mentes e vidas, levando-as a negligenciar atividades importantes
como dormir, descansar ou trabalhar. “É algo que domina a mente da pessoa e faz
com que ela deixe de fazer outras coisas importantes para a vida dela”,
comentou o psiquiatra.
O
IMPACTO DAS BETS
O
impacto das apostas online é gigantesco, não se limitando aos problemas
financeiros, mas afetando a saúde mental, as relações pessoais, a educação e
levando até mesmo ao suicídio. Para cada pessoa que adoece pela dependência do
jogo, em média, outras quatro pessoas (familiares ou dependentes financeiros)
são afetadas, indicou o psiquiatra Rafael Freire. “Imagine um influenciador com
mais de 50 milhões de seguidores. É um número assustador [de atingidos]. É
realmente um cenário desesperador.”
Segundo
Freire, há estudos falando que cerca de 3 a 4% da população desenvolveu
transtorno do jogo voltado para apostas. Crianças e adolescentes são muito mais
vulneráveis devido ao cérebro imaturo e menor desenvolvimento da parte cortical
responsável pelo julgamento crítico e filtro de impulsos. A facilidade de
acesso online amplifica essa vulnerabilidade, pois as plataformas estão
disponíveis o tempo todo e não exigem que o menor saia de casa. A prevalência
de transtorno do jogo em adolescentes pode chegar a 10%. Idosos com depressão
também são um grupo vulnerável, buscando no jogo a única expectativa de “virar
a vida”, explicou.
PROGRAMANDO
A DERROTA
As
plataformas são programadas para que as pessoas se endividem, oferecendo
créditos iniciais (como R$ 500,00 ou R$ 1000,00) para começar a apostar,
levando os usuários a dobrar ou triplicar seu endividamento.
O
componente tecnológico é imperativo nessa discussões, apontou Milani, ao
lembrar que todo o sistema online é facilmente construído para capturar e
viciar os jogadores, dificultado o controle pelos usuários.
“Fico
pensando se é possível replicar o discurso da autonomia, desejo do sujeito e
suas implicações, suas vontades, quando o próprio mecanismo das plataformas
subtrai essa possibilidade das pessoas. O que é possível controlar, diante
disso tudo?”, indagou a especialista.
As
plataformas de apostas online têm recebido muita visibilidade através de
influenciadores digitais e pessoas que vendem sua imagem e credibilidade para
promovê-las. Estudos indicam que cada influenciador pode mudar o comportamento
de uma a cada três pessoas que visualizam suas publicações, o que representa um
número assustador dado o grande número de seguidores de alguns influenciadores.
Existe
uma glamorização dessas plataformas pelos influenciadores, apresentando-as como
“apenas uma diversão”. Enquanto isso, as pessoas com uso prejudicial sentem-se
envergonhadas, escondidas e sofrem muitas consequências negativas, apontou
Amanda Milani, mestre em saúde mental.
Em
2018, a Lei 13.756, conhecida como Lei das Bets, permitiu a exploração
comercial das apostas de cota fixa em eventos reais ou fictícios. A “cota fixa”
significa que se sabe quanto se pode perder ou ganhar em cada aposta, mas na
prática, isso não muda o fato de ser um jogo de azar, pois o apostador não
controla totalmente o resultado. Para quem estuda a área da saúde, diz o
psiquiatra Rafael Freire, jogo de azar é qualquer situação em que o resultado
não é controlado total ou parcialmente.
Embora
a regulamentação de 2018 tenha sido importante para estabelecer alguma base
legal, permitindo, por exemplo, mover processos contra empresas que antes não
tinham sede no Brasil, ainda há um caminho a ser construído.
Existem
“padrões obscuros” (dark patterns) identificados nas plataformas online, que
são formas de burlar a lei, como esconder avisos ou usar “letras miúdas” para
expor os termos de responsabilidade. A fiscalização adequada desses mecanismos
ainda é um desafio no meio digital.
DEBATENDO
SOLUÇÕES
O
problema pode ser abordado tanto pela via médica, tratando-o como uma questão
de saúde mental, quanto pelo âmbito da educação. É urgente construir mecanismos
de educação digital para que os sujeitos que vivem nas redes sociais possam se
proteger dessa vulnerabilização.
Estratégias
como a redução de danos existem e visam refletir sobre a relação dos sujeitos
com essa fonte de desconforto (que é considerado um eufemismo para o sofrimento
causado). No entanto, a ideia de redução de danos para jogos foi considerada
“conversa mole”. Para Milani, restringir o debate à “loucura” e ao vício, à
patologia em si, é uma discussão pertinente ao campo da saúde mental, mas não é
suficiente para tratar o quadro geral. É preciso investir em educação digital,
arte e cultura nesse enfrentamento.
Fonte:
Jornal GGN

Nenhum comentário:
Postar um comentário