Ratinho
Junior atropela lei ambiental e comunidades para criar super rota para jet skis
e iates entre PR e SP
O
governador do Paraná, Ratinho Junior, do PSD, quer criar uma rota marítima
ligando o litoral paranaense a São Paulo para expandir o turismo náutico de
luxo enquanto passa por cima de leis ambientais e ignora comunidades
tradicionais. O Intercept Brasil teve acesso ao projeto da BR do Mar de
Ratinho, que tem como principal foco o Canal do Varadouro, hidrovia aberta
artificialmente no século 19 e depois preterida em nome do transporte
rodoviário. O plano, que o próprio governador admite ter sido idealizado com a
ajuda de um empresário milionário do setor náutico, já está na mira do
Ministério Público Federal, o MPF, que abriu um inquérito para investigar o
caso. A ideia da BR do Mar foi comentada por Ratinho Junior — sem muitos
detalhes — em setembro de 2024, durante o 9º Congresso Internacional Náutica,
parte da programação da São Paulo Boat Show, considerada a maior feira náutica
da América Latina.
Ao
discursar, o governador disse que o plano começou a ser cogitado ainda em 2023
e que o empresário Ernani Paciornik “foi um dos que nos ajudou a pensar isso”.
Paciornik é CEO do Grupo Náutica, que promove a São Paulo Boat Show, e pode ser
beneficiado diretamente pela BR do Mar. O que Ratinho não falou no evento é que
o projeto já estava em andamento há meses, com investimento milionário. Em
março de 2023, os governos do Paraná e de São Paulo firmaram um protocolo de
intenções visando “fomentar o turismo regional no Canal do Varadouro”. Seis
meses depois, em setembro, o estado do Paraná assinou um contrato e um aditivo
que somam mais de R$ 3,6 milhões, com dispensa de licitação, para a elaboração
de anteprojetos e do Relatório de Controle Ambiental, RCA, das obras e serviços
de dragagem e apoio ao turismo para a futura BR do Mar. O termo foi firmado pela Paraná Projetos,
empresa paraestatal criada em 1998 e financiada por verba pública do governo do
Paraná, e a Universidade Livre do Meio Ambiente, a Unilivre — que, apesar do
nome, não é uma universidade, mas uma organização da sociedade civil sem fins
lucrativos que atua em meio ambiente e planejamento urbano.
Mas,
conforme documentos obtidos pelo Intercept, estudos de solo foram realizados na
região do Canal do Varadouro antes mesmo de o contrato para elaborar o
anteprojeto ter sido firmado e, em desrespeito à lei, sem qualquer aviso ao
Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade, o ICMBio, órgão
federal que administra o Parque Nacional do Superagui – isso deveria ter sido
feito porque parte da obra passa por esta área protegida. A informação também
consta em ofício enviado em janeiro de 2024 pelo MPF ao Instituto Água e Terra,
o IAT, órgão responsável pelas licenças ambientais no estado do Paraná, que
cita “a existência de intervenções ligadas a um possível licenciamento do Canal
do Varadouro, que não foi submetido ao ICMBio”.
Ao
responder esse ofício em 6 de março de 2024, o IAT disse que não havia
“procedimento administrativo de licenciamento ambiental para o objeto em
questão”, embora o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos
Naturais Renováveis, o Ibama, tenha informado ao MPF que, em 19 de setembro de
2023, o próprio IAT havia solicitado uma licença ambiental para a dragagem do
Canal do Varadouro e Sebuí. O Ibama foi
contatado pelo MPF porque é o órgão responsável por conceder licença para
intervenções, estudos ou obras, entre outros casos, quando há impacto em áreas
de proteção ambiental federais. Procurado pelo Intercept, o instituto pontuou
que “a realização de atividades ou empreendimentos de significativo impacto
dentro de unidades de conservação federal” só pode ser feita se houver
autorização do órgão gestor da unidade – que, neste caso, é o ICMBio.
Segundo
o Ibama, para uma atividade de “significativo impacto ambiental” há necessidade
de apresentação de Estudo de Impacto Ambiental e Relatório de Impacto
Ambiental, o EIA/RIMA – o que é diferente do Relatório de Controle Ambiental,
RCA, contratado pela Paraná Projetos junto à Unilivre. “Estudos ambientais
simplificados são previstos para licenciamento onde os impactos da atividade ou
empreendimento são considerados não significativos e não preveem a realização
de audiência pública”, explicou o instituto. Já o ICMBio informou ao Intercept
que “tomou conhecimento de pesquisa realizada no canal do Varadouro e
imediatamente alertou o empreendedor que as atividades só poderiam ser feitas
com autorização do órgão licenciador, solicitando a suspensão das atividades”. Foi
justamente a realização de estudos em uma área federal protegida sem consulta
prévia aos órgãos responsáveis que fez o projeto da BR do Mar entrar na mira do
MPF, que abriu inquérito para investigar o caso em julho de 2024 – e ainda não
concluiu.
A
procuradora Monique Cheker, responsável pelo inquérito, reiterou em entrevista
ao Intercept que “quaisquer atividades dentro de um Parque Nacional, mesmo que
sejam atividades de simples pesquisa” necessitam da autorização do ICMBio. Não
é a primeira vez que obras do governo Ratinho Junior no litoral paranaense
chamam a atenção do MPF. Já há um processo correndo na Justiça Federal sobre a
engorda da praia de Matinhos, em que pesam sobre agentes públicos estaduais
denúncias de associação criminosa para liberação de licenciamento
ambiental. Ao todo, segundo o projeto ao qual o Intercept
teve acesso, a construção da BR do Mar está orçada entre R$ 34,6 milhões e R$
36,9 milhões, a depender do cronograma para a dragagem, com duração prevista de
19 a 22 meses, e da instalação da sinalização com boias cegas ou luminosas.
·
Parques
e reservas no caminho da BR do Mar
A área
onde o governo Ratinho pretende fazer a BR do Mar é uma das mais preservadas do
litoral brasileiro: a Mata Atlântica do Sudeste, salvaguardada pela Unesco
desde 1999 como Patrimônio Natural da Humanidade. O projeto prevê que o trajeto passe pelos
parques Nacional do Superagui (PR), Estadual da Ilha do Cardoso (SP), Estadual
Lagamar de Cananéia (SP) e pela Reserva Extrativista Ilha do Tumba (SP), além
de diversas unidades de conservação e áreas de proteção ambiental. No local,
vivem comunidades caiçaras, indígenas e quilombolas, e animais em risco de
extinção, como a toninha, o mico-leão-da-cara-preta e o papagaio-da-cara-roxa.
O
discurso do governo paranaense é de que o projeto vai resultar em
desenvolvimento econômico baseado no “turismo responsável”, mas os documentos
do projeto mostram que o objetivo principal é a estruturação da região para o
turismo náutico de luxo. “Uma simples dragagem, não é nada absurdo, é uma coisa
muito curta inclusive, é poucos metros”, disse Ratinho durante o 9º Congresso
Internacional Náutica, quando anunciou a obra. Os números, entretanto,
contradizem o governador. A estimativa do próprio governo do Paraná é que a
dragagem no Varadouro vai tirar o equivalente a 390 mil m3 — 26 mil caminhões –
de areia e sedimentos em 25 pontos ao longo do canal e descartar em três
locais: Sebuí, Guapicum e Baía dos Pinheiros. Na contramão da percepção de Ratinho sobre os
impactos da obra, a procuradora Monique Cheker, do MPF, destaca que toda
dragagem causa danos ambientais. “Isso é inquestionável”, disse ela ao
Intercept. “E, pela lei, não é possível ter esse tipo de atividade dentro de um
Parque Nacional”, complementou.
A Baía
dos Pinheiros é o ponto onde está previsto o maior depósito de sedimentos da
dragagem: 340 mil m³. Os outros dois locais de descarte são áreas turísticas
conhecidas e, portanto, já sofrem com especulação imobiliária no entorno do
Parque Nacional do Superagui. Já no Canal do Sebuí, que tem extensão de 8,5
quilômetros, o anteprojeto prevê seis pontos de dragagem e retirada de uma
quantidade equivalente a 1.644 caminhões de sedimentos. Vale destacar que o
Sebuí não é essencial para o trajeto e se configura como um desvio na rota da
BR do Mar. A área tem uma cachoeira já conhecida pelos turistas na região e,
por estar fora do Parque Nacional do Superagui, já enfrenta o avanço de
propriedades particulares nas áreas de proteção ambiental, reservas particulares
e das comunidades tradicionais. O Canal
do Varadouro já passou por dragagem no passado para ser uma ligação hidroviária
entre os estados do Paraná e São Paulo, mas tornou-se obsoleto para o
transporte de mercadorias e hoje é usado pelas comunidades tradicionais da
região. O objetivo da nova dragagem é criar uma profundidade uniforme de 2,4
metros para viabilizar a navegação de embarcações de até 40 pés, que podem
levar mais de 10 pessoas.
O
projeto do governo paranaense ainda inclui a instalação de 160 sinais náuticos
ao longo da BR do Mar e a criação de estruturas de atracagem para tripulantes e
turistas. Não há, porém, no projeto ao qual o Intercept teve acesso, indicação
ou estudo sobre as consequências do aumento do fluxo de embarcações na região
nem de quem fará a fiscalização — ao navegarmos pela área, encontramos só um
ponto de fiscalização no trajeto Paranaguá-Varadouro, à beira do Porto de
Paranaguá. Também verificamos na visita que a região sequer tem infraestrutura
básica. Nove das 18 comunidades no entorno do Parque Nacional do Superagui não
têm acesso nem mesmo à energia elétrica. Além disso, muitas pessoas vivem sem
fossas sépticas e outras enfrentam acesso precário à água potável. Vale
destacar que a proposta de dragagem contempla benfeitorias em apenas seis
comunidades, como a construção de novos trapiches e receptivos para turistas,
estrutura batizada no projeto como “apoio náutico”. São elas: Vila do
Superagui, Ilha das Peças, Sebuí, Guapicum, Barbados e Vila de Ararapira.
Nos
dois pontos já tradicionais do turismo paranaense, Vila do Superagui e Ilha das
Peças, estão previstas a construção de “apoios náuticos médios”, o que inclui
três banheiros, ambulatório, duas áreas de conveniências, receptivo e trapiche,
totalizando 506 m² de construção. Para
Sebuí, Guapicum e Barbados, a previsão é haver “apoios náuticos pequenos”:
trapiche, receptivo, dois banheiros, ambulatório e uma conveniência, com 372 m²
de construção. Guapicum, que já tem bares e restaurantes, é conhecido por receber
turistas em barcos particulares ou jet
skis – entre os frequentadores ilustres, está o próprio Ratinho Junior. Já na
Vila de Ararapira, está previsto construir um trapiche.
·
Da
falta de estrutura nas comunidades à
jetskiata do secretário
Durval
Martins mora há 35 anos na Vila Fátima, uma comunidade localizada onde se
afunila o Canal do Varadouro. O bar dele é um dos pontos mais estruturados da
região, apesar disso não é destino dos barcos de luxo e jet skis que navegam
por lá. “Ninguém para. Esses barcos grandes já tem o destino deles, né?”, diz o
comerciante.
Martins,
que tem 67 anos, convive apenas com as consequências da presença dos barcos
grandes, além do barulho provocado pelos jet skis que costumam circular em
grupo na região. “Meu comércio aqui atende meus amigos, que chegam de barco.
Mas são barcos pequenos, pescadores que vêm de São Paulo. Eles respeitam,
chegam devagar, comem e bebem. Agora esses barcos grandes dão prejuízo, eles
não respeitam ninguém”, desabafa. Os
moradores da região revelam ter percebido um aumento no número e frequência dos
jet skis, que antes eram vistos apenas nos fins de semana. A exemplo dos
motoclubes, eles andam em comboios e são chamados de jeteiros. Um desses
jeteiros que circula pela região é o atual secretário de Agricultura e
Abastecimento do Paraná, o deputado estadual Marcio Nunes, do PSD.
Em uma
publicação em seu perfil do Instagram, em 30 de dezembro de 2023 quando ainda
comandava a Secretaria de Turismo do estado, Nunes registrou uma incursão ao
Canal do Varadouro. No vídeo, ele destaca o projeto do governo Ratinho Junior e
anuncia uma espécie de jetskiata, reunindo ao menos 100 jet skis. Nunes ainda diz que o governador avançou com a
obra porque está “pensando no futuro” e que um dos benefícios dela é que as
comunidades tradicionais poderão “vender sua cultura”.
Antes
de comandar a Agricultura no governo Ratinho Junior, Nunes já chefiou a
Secretaria Estadual de Desenvolvimento Sustentável, que na época também
aglutinava a área de Turismo, em um arranjo executado pelo governador quando
assumiu o primeiro mandato e extinguiu a Secretaria do Meio Ambiente. Depois
disso, comandou a Secretaria de Turismo, que deixou em março deste ano para
assumir a Agricultura. Perguntamos a Nunes sobre a sua participação no projeto
do Canal do Varadouro e em passeios de jet skis na região, mas não houve
resposta até a publicação desta reportagem. O espaço segue aberto.
O
barulho frequente e a circulação dos veículos náuticos não são a única
consequência que preocupa as comunidades. Martins contou ao Intercept que
também precisa conviver com a erosão provocada pela intensa movimentação perto
dos bancos de areia. Há dois anos, o
comerciante ergueu uma estrutura de contenção e concreto para proteger o
negócio, mas já está tudo no chão. “O pessoal veio aqui me falar sobre esse
projeto. Eu disse que não sou contra, mas não sei se para mim é bom”, pondera. Na visita que fizemos às comunidades da
região, a população evita comentar sobre o projeto por medo de retaliação. Sob
reserva e com a garantia de que não seriam identificados, alguns moradores
relataram que o receio existe porque o projeto envolve interesses particulares de
figuras ligadas ao governo estadual ou de grande poder financeiro e político. Para Martins, morador da Vila Fátima, cada
comunidade será impactada de forma diferente. “Depende do que vão fazer. Nas
comunidades como aqui, Vila Fátima, Tibicanga e Ararapira Velha, que são
encostados, que são barrancos, se começar a passar barco grande, vai acabar com
tudo”, afirma.
·
Sem
consulta aos moradores nem licença ambiental
Até
agora, o projeto da BR do Mar do governo Ratinho Junior tem ignorado a opinião
das comunidades tradicionais. Afinal, não houve nenhuma consulta prévia formal
aos moradores das regiões do Varadouro nem do Sebuí, onde há a previsão de
fazer dragagem e descarte do material dragado, nem de todas as 18 comunidades
afetadas pelas obras. A informação consta no inquérito do MPF. Segundo o
documento, o IAT não abriu qualquer consulta prévia formal até meados de 2024
para ouvir os moradores. Essa consulta é prevista na Convenção 169 da
Organização Internacional do Trabalho, OIT, da qual o Brasil é signatário, e
garante o direito de comunidades tradicionais e povos indígenas serem ouvidos
sobre obra ou projeto que as impacte.
As
consultas públicas formais às comunidades tradicionais também estão previstas,
segundo o Ibama, na Resolução 09/1987 do Conselho Nacional do Meio Ambiente, o
Conama. O MPF ainda enfatizou, em resposta ao Intercept, que a Portaria
Interministerial 60/2015 “estabelece a presunção de impacto em comunidades
tradicionais dentro de um raio de 8 km para empreendimentos portuários”,
definindo assim quais comunidades devem ser ouvidas “em procedimento próprio”.
Em 20
de setembro de 2024, a procuradora do MPF Monique Cheker enviou ofício para
diversos órgãos e instituições estaduais e federais com o objetivo de promover
uma apresentação formal do projeto. A
reunião ocorreu em 30 de outubro, em Paranaguá. Participaram representantes de
ICMBio, Ibama, IAT, secretarias do governo do Paraná e equipe técnica do
projeto, entre outros, mas as comunidades tradicionais não estiveram presentes
– uma das razões foi a desconfiança de que o encontro pudesse configurar como
se tivessem sido ouvidas e dessem aval para o desenvolvimento do projeto. Segundo
a procuradora Monique Cheker, foi nesta reunião em Paranaguá que ficou
esclarecido que “a maior parte das dragagens” estava prevista para ocorrer
dentro do Parque Nacional do Superagui, “o que não é permitido por lei”. Além
disso, relatos e documentos aos quais o Intercept teve acesso revelam que houve
uma abordagem casual das comunidades, por técnicos da Unilivre, ainda durante a
elaboração do anteprojeto de dragagem do Canal do Varadouro. Fontes e
documentos consultados pela reportagem
apontam que um dos responsáveis por isso foi Fernando Silveira Augusto Armani,
conhecido como professor Armani.
Armani
é citado como integrante da equipe técnica do projeto em um documento com
timbre da Paraná Projetos e da Unilivre apresentado pelo IAT ao MPF no
inquérito que investiga o caso. Relatos feitos ao Intercept apontam que ele
teria anunciado o projeto de maneira individual e sugerido aos moradores que,
junto com a dragagem, uma série de benfeitorias seria feita nas comunidades,
como reforma de escolas e unidades de saúde – que não constam na proposta. Armani
também teria ido até São Paulo e entregado um documento para lideranças da
comunidade do Marujá, na Ilha do Cardoso, de acordo com os relatos ouvidos pela
reportagem. O papel timbrado pela Paraná Projetos e Unilivre afirma que a
equipe técnica estava interessada em entender se a comunidade queria o “turismo
sustentável” na região — mas sem citar a BR do Mar nem a dragagem do Canal do
Varadouro. Segundo apurado pelo
Intercept, o contato foi realizado em janeiro de 2024, e a comunidade não
aceitou a proposta. A abordagem de Armani com as comunidades também foi
registrada na ata de uma reunião ocorrida na Defensoria Pública do Paraná, em
maio de 2024. A ata cita, por exemplo, a “participação do professor Armani nas
comunidades, causando desinformação acerca dos projetos a serem implementados”.
A ação
fora dos padrões junto à comunidade do Marujá foi confirmada pelo defensor
público do estado de São Paulo, Andrew Toshio Hayama, que atua na defesa de
povos e comunidades tradicionais na região do Vale do Ribeira. Ele diz que os
moradores ficaram sabendo do projeto pela imprensa e que “não houve procura
oficial e formal”.
O
Intercept entrou em contato com lideranças da Ilha do Cardoso, mas não obteve
retorno até a publicação desta reportagem. Procuramos o professor Armani para
comentar sobre os relatos e a menção na ata da reunião, mas não houve resposta.
O espaço segue aberto. Perguntamos à
Paraná Projetos sobre sua participação na criação da BR do Mar, o contrato para
elaboração do anteprojeto de dragagem no Canal do Varadouro, os critérios que
embasaram a decisão de um RCA em vez de um EIA/RIMA para medir os impactos ambientais
da obra, bem como a atuação da empresa na consulta informal a comunidades
tradicionais. Não houve retorno até a publicação da reportagem. O espaço também
segue aberto.
Também
questionamos a Unilivre sobre sua participação no projeto da BR do Mar,
incluindo por que foram feitos estudos em uma área federal protegida sem
autorização prévia do ICMBio, qual o estágio de execução do contrato firmado
com a Paraná Projetos, que critérios foram utilizados para medir o impacto
ambiental na região do Canal do Varadouro, como se deu a atuação de
colaboradores em consultas a comunidades tradicionais e qual é a experiência da
Unilivre com estudos, pesquisas ou projetos em áreas litorâneas,
especificamente dragagem. Em nota, a Unilivre afirmou que não poderia comentar
sobre o acordo firmado com a Paraná Projetos porque “determinadas informações
se encontram resguardadas por cláusulas de confidencialidade contratual” e pela
Lei Geral de Proteção de Dados, a LGPD.
Sobre a
abordagem junto a lideranças no entorno do Parque Nacional do Superagui, a
Unilivre ressaltou que “audiências públicas, com exposição de cada projeto são
periodicamente realizadas mediante chamamento público” e que “reuniões
participativas e consultas são realizadas com as comunidades potencialmente
afetadas com eventuais futuras intervenções”.
·
Mentor
da obra comanda rede de empresas do setor náutico
Citado
por Ratinho Junior como “um dos que nos ajudou a pensar” o projeto da BR do
Mar, Ernani Paciornik era não só um empresário presente no Congresso
Internacional Náutica, mas o anfitrião do evento. O congresso, inclusive, leva
este nome por ser idealizado pelo Grupo Náutica, cujo CEO é Paciornik. Além disso, a edição de 2024 realizada em Foz
do Iguaçu teve como co-realizador o próprio IAT, que é responsável pelos
licenciamentos ambientais no Paraná e tem papel decisivo no andamento da BR do
Mar, pois consta como o próprio “empreendedor” da obra de dragagem em documento
enviado ao Ibama ainda em 2023.
Paciornik
é um curitibano que nasceu em uma família tradicional da capital. Seu pai é
Moysés Paciornik, médico ginecologista que, em 1959, fundou o Centro Paranaense
de Pesquisas Médicas. O empresário é
presidente e CEO de companhias que atuam em um leque de segmentos do setor
náutico. Além disso, seu grupo também opera em obras públicas no litoral de
vários estados, incluindo o Paraná. Isso torna, naturalmente, suas empresas
candidatas a assumir contratos que envolvam a infraestrutura náutica para
consolidar a BR do Mar. “As pessoas vão vir de fora para navegar no local, por
causa dos atrativos turísticos que existem na região. Tenho certeza que vamos
ter uma segunda Foz do Iguaçu no estado. A Mata Atlântica, entre Cananéia,
Guaraqueçaba e Antonina, é um grande potencial para o turismo mundial”, afirmou
Paciornik durante o congresso.
Não é
por acaso que Paciornik tem atuado como mentor e uma espécie de garoto
propaganda da BR do Mar. O turismo defendido pelo empresário é o de barcos de
luxo. Nos Boat Shows, organizados pelo Grupo Náutica, são lançadas embarcações
como a Intermarine 60, uma lancha que custa R$ 5,2 milhões, e o Azimut Fly 56,
um iate italiano que não sai por menos de R$ 15 milhões. No ano passado, o Grupo Náutica vendeu mais de
1 mil barcos, um aumento de 20% em relação ao ano anterior. E os Boat Shows
foram responsáveis por mais de 70% dos negócios náuticos realizados no Brasil. Os Boat Shows já fecharam contratos com
governos estaduais e o federal para locação de espaço utilizado por secretarias
e o Ministério do Turismo. Em 2022, por exemplo, o governo de Jair Bolsonaro
pagou R$ 1,6 milhão para participar do São Paulo Boat Show e do Rio Boat Show. As empresas ligadas a Paciornik também já
firmaram acordos com governos estaduais e municipais. A Metalu Brasil, por
exemplo, implementou estruturas de apoio ao turismo náutico em 13 municípios do
interior paulista, por meio de investimentos do governo paulista no setor de
turismo náutico.
No
Paraná, a Metalu de Paciornik construiu um píer às margens da baía de
Guaratuba, no litoral paranaense. Já a Grupo 1 Comunicação e Infraestrutura,
que também tem Paciornik como sócio, firmou contrato em 2024 com a
Administração dos Portos de Paranaguá e Antonina para revitalizar uma marina em
uma área de 250 mil m2. A empresa de Paciornik pagará, durante 20 anos, R$ 70
mil por mês para explorar financeiramente a estrutura depois da revitalização e
poderá lucrar alugando vagas para embarcações de diferentes tamanhos. Paciornik trafega bem pelo governo, a ponto de
integrar a comitiva de Ratinho Junior no evento Paraná em Foco e até
compartilhar fotos que ele mesmo tirou para serem publicadas no site do governo
do Paraná. O empresário também já defendeu o setor náutico em visita ao
ex-presidente Jair Bolsonaro, em 2019.
Questionamos
Paciornik sobre sua participação na criação da BR do Mar e eventuais benefícios
que o projeto pode trazer às suas empresas. Ele disse apenas, em nota enviada
por sua assessoria de imprensa, que não há qualquer envolvimento de suas
empresas em relação à obra de dragagem do Canal do Varadouro. Segundo o texto, “as referências feitas ao
tema ocorreram exclusivamente em espaços públicos e dentro de debates mais
amplos sobre o setor, especificamente no Congresso Internacional Náutica, que é
um fórum plural, voltado ao intercâmbio de ideias para o fortalecimento do
turismo náutico no Brasil”.
·
Orçamento
milionário e incertezas no horizonte
No
Plano de Contratações Anual do IAT para 2025 está prevista uma verba de R$ 50
milhões para a “contratação dos estudos e obras para desassoreamento e
recuperação do Canal Varadouro”. A descrição cita que o valor será utilizado
para proporcionar “melhorias nas condições de navegabilidade e fomentando o
turismo no local”. A previsão foi feita, entretanto, sem que houvesse aprovação
do licenciamento ambiental para as obras. Pelo contrário, foi feita mesmo após
o Ibama ter informado ao IAT, ainda em 2024, que a licença para a dragagem dos
canais do Varadouro e do Sebuí não seria concedida. É o que mostra um ofício
assinado em 17 de dezembro de 2024 pelo então diretor substituto de
licenciamento ambiental do Ibama, Liceros Alves dos Reis, ao diretor-presidente
do IAT, José Luiz Scroccaro – atualmente, Scroccaro é diretor de saneamento
ambiental e recursos hídricos do IAT. No documento, Reis informa que o processo
de licenciamento ambiental para dragagem do Varadouro “será encerrado”.
Reis
cita que o ICMBio informou ao Ibama que, “após análise das complementações do
projeto, permanece o impedimento legal e normativo para a execução de atividade
no interior do Parque Nacional do Superagui”. Questionado sobre a possibilidade
de o governo do Paraná abrir um novo processo de licenciamento do mesmo
projeto, o Ibama disse ao Intercept que isso só é possível “em projetos negados
por este tipo de interferência” se a localização for alterada. Vale ressaltar que o IAT já estava ciente de
que precisava da licença de órgão federal — no caso, o Ibama — desde novembro
de 2023, quando um parecer técnico do próprio Ibama pontuou que, pelo fato de o
projeto ser realizado entre dois estados e por haver o registro de uma terra
indígena (Cerco Grande) no entorno da obra, o órgão responsável por conceder o
licenciamento deve ser federal. A preocupação com a obra também chegou a São
Paulo. A pedido do Ibama, a Fundação Florestal, ligada à Secretaria do Meio
Ambiente, Infraestrutura e Logística de SP, manifestou sua preocupação sobre os
impactos na região. Em nota técnica de março de 2024, a entidade recomendou a
realização de “estudos sobre os impactos potenciais elencados”, como o aumento
no fluxo de embarcações, o risco de erosão, e possíveis efeitos na pesca
artesanal e no turismo desenvolvido pelas comunidades tradicionais. A fundação
ainda pontuou que “intervenções no Canal do Varadouro devem ser analisadas com
muita cautela”.
Já no
fim de 2024, o governo Ratinho Junior propôs e a Assembleia Legislativa do
Paraná aprovou uma lei que estabelece um prazo máximo de 30 dias para uma
manifestação “única e conclusiva” de órgãos federais, como o Ibama, no caso de
licenciamentos ambientais. A legislação ainda prevê que, se não chegar no
prazo determinado, a manifestação pode ser ignorada pelo órgão estadual ou
municipal e “não implicará prejuízo ao andamento do processo de licenciamento
ambiental”. A norma, porém, teve sua constitucionalidade questionada na
Justiça, e o caso está sob análise do Supremo Tribunal Federal, o STF. A
Justiça também pode ser decisiva para o futuro da BR do Mar a depender das
conclusões da investigação do MPF sobre o caso. Em resposta ao Intercept, a
procuradora Monique Cheker confirmou que o inquérito será prorrogado, mas não
detalhou por quanto tempo. Ela ainda pontuou que “o simples fato de haver
possibilidade de alterações dentro de um Parque Nacional já vincula a
atribuição do licenciamento ao Ibama”. “Dessa forma, o órgão estadual ambiental
(no caso, o IAT, no Paraná) não pode iniciar qualquer tipo de licenciamento
dessa obra”, ressaltou. Cheker ainda disse que “é irrelevante que o
licenciamento seja fatiado, no estado de SP ou no estado do Paraná”.
Questionamos
o IAT sobre sua atuação no projeto da BR do Mar, incluindo a elaboração do
anteprojeto, a previsão de orçamento
milionário para a obra em 2025, a falta de consulta às comunidades tradicionais
e o fato de atuar simultaneamente como empreendedor e fiscalizador do
licenciamento ambiental para a dragagem. Ainda perguntamos por que o instituto
foi co-realizador de uma edição do Congresso Internacional Náutica em Foz do
Iguaçu, no ano passado. Não houve resposta até a publicação da reportagem. O
espaço segue aberto.
·
Ratinho
Junior promete “aprofundar discussão” sobre projeto
O
Intercept enviou uma série de perguntas para o governador Ratinho Junior,
incluindo questionamentos sobre a realização de estudos prévios sem autorização
na região do Canal do Varadouro, a negativa de licença por parte de Ibama e
ICMBio, a não realização de consulta formal às comunidades tradicionais e a
participação do empresário Ernani Paciornik na elaboração do projeto da BR do
Mar.
Em
nota, o governo do Paraná informou que este “ainda é um projeto em caráter
primário que pretende levar melhorias às condições de navegabilidade do canal,
para facilitar a vida das comunidades ribeirinhas e fomentar o turismo de base
comunitária na região”.
Sobre o
licenciamento ambiental, o governo Ratinho Junior afirmou que, por meio do IAT,
solicitou ainda em 2024 a “relação das licenças necessárias para dar andamento
às contratações e estudos”, mas “não recebeu resposta” do órgão federal. E
pontuou que o IAT vai se reunir com o corpo técnico do Ibama e do ICMBio “com a
intenção de viabilizar os licenciamentos e aprofundar a discussão do projeto”. O governo Ratinho Junior destacou ainda, que o
desenvolvimento do projeto “ainda contempla a contratação de um EIA/RIMA”,
necessário para “especificar as intervenções necessárias e também de consulta
pública e audiência pública”. Por fim, o
governo Ratinho classificou o projeto da BR do Mar como “em fase de formatação”
e sem “orçamento definido”. Também garantiu que está “à disposição do
Ministério Público Federal para esclarecimentos”.
Apesar
dos entraves e promessas, fato é que, por enquanto, o plano da BR do Mar segue
ativo no governo Ratinho Junior, e os jet skis avançam na área, com tudo o que
uma rodovia tem direito, até mesmo acidentes. O comerciante Martins, morador da
Vila Fátima, conta que já viu de perto uma colisão, quando um jet ski em que
estava um casal atingiu um tronco de madeira em alta velocidade. Apesar de não ter uma convicção sobre o que é
melhor para o futuro da região e da comunidade onde vive há três décadas, Martins
diz já perceber um sinal bem claro sobre a futura BR do Mar. “Essa obra é pra
‘eles’, não é pra nós”, afirma o morador da Vila Fátima.
Fonte:
Por Diogo da Silva e José Pires, em The Intercept

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