Por que ampliar o direito à cultura para os
idosos?
Lígia Canavezi carrega o pandeiro debaixo do
braço como se portasse o escudo de sua armadura. Aos 77 anos, a secretária
aposentada desfila pelos corredores do Centro Municipal de Educação dos
Trabalhadores (CMET) Paulo Freire, em Porto Alegre (RS), com a rapidez e precisão
de passos de quem tem compromissos inadiáveis. É esse o ritmo que torna a sua
presença possível de segunda a quinta nas oficinas de técnica vocal, canto
livre, pandeiro, tambores e teatro oferecidas pela instituição. Em breve, as
sextas-feiras da aposentada contarão com a sua participação na oficina de
Biodança.
“Quando eu me aposentei eu não tinha vontade
de levantar da cama. Porque eu pensei, o que eu vou fazer? Não tinha um
programa, um horário pra cumprir, eu fiquei assim sem rumo”, conta Lígia. Há
cerca de dois anos, depois de se aposentar de seu trabalho na Ordem dos
Advogados do Brasil, ela descobriu no Centro Musical da escola, que oferece uma
extensa lista de atividades artísticas e culturais para pessoas de todas as
idades, uma maneira de passar o tempo fazendo aquilo de que realmente gosta.
Fora as oficinas, há, ainda, apresentações musicais em grupo realizadas em
espaços públicos de Porto Alegre como a Biblioteca Pública do Estado, a Casa de
Cultura Mário Quintana e o Salão de Atos da Universidade Federal do Rio Grande
do Sul (UFRGS).
Na sala onde ocorre a aula de técnica vocal,
no terceiro andar do prédio, Lígia senta do lado da professora, que tem diante
de si um teclado. Em semicírculo, 34 alunos entre mulheres e homens, em sua
maioria pessoas com mais de 50 anos, acompanham a subida e a descida dos
acordes do teclado com vocalizes. As vozes, quando se encontram em uníssono,
enchem o ambiente com a harmonia do cruzamento intergeracional. Para ela, esses
momentos a fazem se sentir em casa.
O cotidiano movimentado, para além de
promover a manutenção de sinapses e o fortalecimento dos músculos ao redor das
articulações do corpo, é também um remédio contra as expectativas de solidão e
desamparo marcantes na vida da pessoa idosa. O encontro de Lígia com a música
na terceira idade foi, em suas próprias palavras, o seu renascimento. “Eu acho
que a vida das pessoas da terceira idade seria bem diferente Se fosse voltada
pra música, pra teatro, pra artes, pra dança”, aponta.
Possibilitado pelo acesso à cultura, o
renascimento de Lígia é um eco das políticas culturais vigentes no Brasil, mais
especificamente, daquelas voltadas para a terceira idade. A Lei nº 8.842/1994,
que institui a política nacional do idoso, salienta a participação desse grupo
na vida em sociedade, usufruindo, produzindo e reelaborando bens e processos
culturais.
Já o Estatuto da Pessoa Idosa (Lei nº
10.741/2003) traz avanços ao destinar um capítulo específico para a cultura, o
esporte e o lazer. A legislação determina que “a pessoa idosa tem direito a
educação, cultura, esporte, lazer, diversões, espetáculos, produtos e serviços
que respeitem sua peculiar condição de idade” e que “as pessoas idosas
participarão das comemorações de caráter cívico ou cultural, para transmissão
de conhecimentos e vivências às demais gerações, no sentido da preservação da
memória e da identidade culturais”, de forma a valorizar os saberes e fazeres
culturais das pessoas idosas.
Num Brasil cada vez mais idoso, discutir o
estilo de vida e as possibilidades para a pessoa da terceira idade é
indispensável. Segundo o Censo do Instituto Brasileiro de Geografia e
Estatística (IBGE) de 2022, o número de pessoas idosas (com idade igual ou
superior a 60 anos) cresceu 57,4% desde 2010. A desvalorização dos corpos
daqueles que chegam à velhice é característica da sociedade atual, exigente por
agilidade, estética e produtividade. O acesso à cultura na terceira idade é uma
forma de driblar o lugar comum de que a velhice se restringe a consultas
médicas, remédios e cadeiras de balanço, um limbo onde impera a sabedoria da
mente, mas cujo corpo é constantemente associado à fragilidade.
A pesquisa Cultura nas Capitais (2025) aponta
que o percentual de pessoas acima de 60 anos que consome cultura no país está
abaixo de 30% em quase todas as linguagens artísticas e tipos de equipamentos
culturais. Considerando-se a média de todas as capitais, apenas 23% das pessoas
idosas ouvidas pelo estudo vão a shows de música, 19% vão a museus, 18% vão ao
teatro, 17% vão a feiras do livro e 15% frequentam bibliotecas. O acesso a
livros foi a única categoria acima da média, com 51% de pessoas idosas afirmando
que leem. Quando aplicado o recorte de região, percebe-se que os índices caem
em quase todas as categorias nas regiões norte, nordeste e centro-oeste.
A pesquisa também mostra que o consumo
cultural de idosos das classes D/E é significativamente menor em relação aos
idosos das classes B e A. Das 14
atividades culturais mapeadas pela pesquisa, os idosos das classes B e A ficam
abaixo da porcentagem média de consumo de apenas 5, enquanto os idosos das
classes D/E estão abaixo da porcentagem média de consumo de todas as
atividades. Os dados revelam que 70% dos idosos das classes D/E nunca foram a
museus, 72% nunca foram ao teatro e 78% nunca frequentaram uma feira literária.
Ainda segundo a pesquisa, idosos negros e negras consomem mais cultura em
relação aos brancos e brancas nas capitais brasileiras.
Para o especialista em direitos culturais
Olimpio Ferreira, o consumo cultural no Brasil e a efetividade das políticas
culturais, independente da faixa etária, estão atrelados a questões
intersetoriais. “Participar da vida em comunidade agrega diversas dimensões e
sem dúvidas os outros marcadores sociais e identitários influenciam na
efetivação de políticas”, explica Olimpio, que é presidente da Comissão de
Direitos Culturais da OAB do Ceará.
Segundo o pesquisador, vem daí a necessidade
de escuta e voz para que as políticas, planos e programas possam ser pensados
por aqueles que irão usufruir dos bens culturais, bem como produzi-los e
reelabora-los. O que implica na não restrição da inserção cultural de idosos
apenas via meia-entrada, mas de modo que o fazer cultural também seja praticado
pelo próprio grupo social. “É preciso ouvir as falas das pessoas idosas, para
além de uma pesquisa (sem invalidar sua importância para elucidar questões), pois
são os próprios que vão dizer o que querem e não o outro”. Olimpio aponta as
iniciativas de reconhecimento e valorização de mestres e mestras da cultura
popular como bons exemplos destas políticas. Atualmente, estados como Ceará,
Paraíba e Pernambuco adotam políticas e ações com este foco.
• A
importância do incentivo
Com uma abordagem multidisciplinar que
envolve a educação e a arte por meio de práticas socioculturais, o CMET Paulo
Freire se destaca quando o assunto é integrar a pessoa idosa no meio social. A
escola trabalha tanto o ensino fundamental com o público formal por meio do EJA
(Educação de Jovens e Adultos), quanto com o que chamam de público permanente
ao longo da vida, através das oficinas artísticas e práticas culturais.
Só no Centro Musical da organização estão
matriculados 126 idosos, que em sua maioria também participam de outros núcleos
do Centro Cultural. A vice-diretora diz que a integração das pessoas idosas no
Centro reside na atenção ao cuidado, além das práticas pedagógicas do educador
que dá nome à instituição.
“A gente vai construindo juntos uns com os
outros. Não na perspectiva de efetivamente estar dando conta de todas as
questões de ensino fundamental, mas podendo olhar para as possibilidades de
cada um deles.” O diretor da escola, Paulo Mattos, explica que para melhor
atender aos estudantes, realizam uma entrevista junto ao Serviço Educacional do
município para entender a história de cada pessoa e propor melhores caminhos
dentro da instituição.
Grande parte dos matriculados no CMET
ingressam pela educação básica, mas permanecem vinculados à instituição para
além da diplomação por conta das atividades culturais. Adelaide Gomes de
Andrade, uma das estudantes mais velhas a passar pelo Centro Cultural, que o
diga. Tendo ingressado no CMET aos 90 anos com o sonho de ser enfermeira, a
anciã só deixou a instituição depois de ter sido vitimada pela covid-19 em
2023, com pouco mais de 100 anos.
Além de participar do Grupo de Teatro,
Adelaide também integrou o grupo Criartes/Ateliê da Rampa, customizando roupas
ao longo do ano letivo para o desfile da 3ª idade que ocorria no átrio da
escola no fim do ano. É que com o passar do tempo, a presença nas oficinas se
torna garantida não apenas através da paixão pelo que se faz ou pelos
benefícios físicos oferecidos pelas atividades, mas principalmente pelo vínculo
desenvolvido entre colegas e o senso de pertencimento.
• Corpos
sensuais
No Centro Cultural da Universidade Federal do
Rio Grande do Sul (UFRGS), uma menina imita, ora com os braços para o ar, ora
debruçada sobre o chão, os movimentos de dança que uma mulher produz em um dos
telões da exposição Novos Velhos Corpos 50+, uma instalação de videodança
realizada em 2022. Num gesto de imitação das ações de um corpo mais velho,
distante dos movimentos lentos e travados que são característicos da
estereotipização do mover-se enquanto idoso, a menina rompe com o estigma de
que um corpo velho não deve estar sujeito a uma reprodução que glorifique. O
objetivo da exposição era “imergir o espectador em imagens de dança e provocar
tensão e relação entre rótulos geracionais”.
Suzi Weber, a mulher do telão, é professora
do curso de Teatro da UFRGS. Aos 60 anos, Suzi integra o Novos Velhos Corpos,
um coletivo de dança com pessoas 50+ que surgiu no início da pandemia de
coronavírus. Composto por Monica Dantas, de 57 anos; Eva Schul, de 77; Eduardo
Severino, de 62; Robson Lima Duarte, de 63; Rossana Scorza, de 58; e Suzi
Weber, o grupo surge como uma provocação a respeito daquilo que o corpo velho
pode fazer, desafiando as convenções sobre a presença da pessoa idosa no fazer
de uma arte que exalta a agilidade e a eficiência, mas associada ao corpo
jovem.
“O campo da dança está sempre pensando na
questão corporal, e sempre com muitas exigências por um corpo jovem ou por um
corpo que parece jovem”, explica a professora. Essas exigências, conforme
detalha Suzi, são um reflexo das pressões sociais por características físicas
que remetam a virtudes, ao ágil e, no caso das mulheres, ao feminino. “Tu vê
que na literatura não há um problema ser velho. É até bom, é alguém experiente.
Mas, no jogo social, é um problema”, discorre. Como se lentidão, marcas de expressão
e demais impressões que a passagem do tempo deixa pelo corpo fossem traços
indesejados até mesmo no campo artístico, onde, em tese, a emancipação dos
estigmas sociais deveria cantar por todos os corpos. Indo na contramão dessa
realidade, o grupo tenta abraçar a liberdade e se desvencilhar dessas
convenções.
No palco, apresentando o espetáculo de dança
Novos Velhos Corpos 50+ Sustentar e Abraçar, proposta de coreografia manifesto
que mistura a dança com música ao vivo, teatro e imagens de vídeo, os seis
dançarinos desafiam não só o lugar comum reservado à pessoa da terceira idade
no que tange a agilidade, mas também a sensualidade. “A gente contribui na
contramão dos estereótipos. Nós estamos lá com nossos corpos, e o corpo já é um
discurso”, diz.
No centro do tablado, os dançarinos se
debruçam e se jogam sobre uma maca, peça central do espetáculo. No decorrer dos
atos, a maca se transforma em cama, em mesa, em muro e em tela para a projeção
de vídeos: um objeto símbolo de vulnerabilidade transfigurado em múltiplas
possibilidades. “Todo mundo quer dançar, essa comunidade 50+. Eu relaciono a
dança com a morte. A morte é a última queda, esse cair da gravidade. Dançar é
lutar contra essa queda, e a dança é um desafio para a gravidade. Então, nesse
sentido, é uma celebração de vida”, pontua Suzi.
• Direito
ao acesso
O paraibano Fernando Coelho da Costa, de 70
anos, é uma das vozes masculinas da turma de técnica vocal no CMET Paulo
Freire. Fernando rodou o Brasil trabalhando com vendas antes de parar em Porto
Alegre, em 1999. Em 2015, sua relação com a cidade mudou depois de conhecer a
proposta multidisciplinar da escola. Tendo ele cursado o ensino básico até a 4ª
série, voltar para a escola, já depois de aposentado e com uma fratura no
joelho decorrente de um acidente, se tornou uma alternativa almejada. Além de
obter um diploma e cumprir uma etapa que há muito havia ficado para trás, ainda
poderia fazer o que mais gosta: cantar.
O timbre de voz baixo do cantor,
característico de radialistas, é trabalhado nas terças-feiras durante a aula de
técnica vocal, seguida pela oficina de canto livre. A permanência na escola
mesmo após a conclusão do ensino fundamental em 2023 era um assunto já
esclarecido. As aulas de canto, de teclado e as apresentações em grupo em
espaços culturais eram uma prática e uma rotina que não podiam ser encerradas,
mesmo que agora Fernando esteja cursando o ensino médio no Instituto Federal de
Porto Alegre. Exercitar os músculos da laringe junto a um grupo de mais de
trinta pessoas para produzir uma melodia é um ato de auto salvação que não pode
ser interrompido.
“Se não fossem essas oficinas que eu faço
aqui, hoje eu era um cara com uma depressão bem forte. Porque quando eu entrei
aqui eu estava em um começo de depressão. Depois desse tempo, sumiu tudo,
acabou tudo”, relata Fernando. Homem solteiro e vivendo sozinho em uma
metrópole, enfrentar a velhice com o apoio da arte e da cultura o livrou das
intermináveis horas em que seus pensamentos o levavam para lugares indesejados
dentro de sua cabeça, nos momentos em que ficava “dentro de casa, parado,
sozinho, sem ninguém, só olhando para o tempo”.
Somado a isso, a música ainda possibilitou
que a relação de Fernando com a cidade não se restringisse às consultas médicas
e idas a farmácias, e que as trocas em suas relações interpessoais não se
resumissem a conversas sobre artrite e osteoporose. “Na época de férias, nós
ficamos dois meses sem ir para a escola. A gente fica reprimido, esquisito. O
negócio é brabo”, comenta.
Apesar do entusiasmo de Fernando em fazer do
espaço público e das programações culturais uma segunda casa, a falta de
acessibilidade em alguns desses espaços muitas vezes impede o aposentado de
aceitar convites para apresentações ou realizar expedições nos pontos de
cultura. “Quando tem roda de viola e pagode, eu estou junto. Mas em festa, em
teatro, eu não vou porque para mim é bem difícil. Tem muita dificuldade”, diz o
cantor.
Publicado no site da Enecult (Encontro de
Estudos Multidisciplinares em Cultura), um estudo da Universidade Federal da
Bahia analisou 944 projetos de teatro que captaram recursos junto à Lei Rouanet
no período de 2011 a 2014. Desses projetos, 703 incluíram planejamento de
acessibilidade física, que diz respeito a “medidas que permitem a entrada nos
locais de apresentação que contemplam o acesso físico, como rampas, portas
amplas, piso tátil”. Ainda, 270 dos projetos analisados possuíam planejamento
de democratização do acesso aos espetáculos, em referência às “estratégias de
descontos nos ingressos para inclusão de pessoas idosas”, que segundo a
pesquisadora Viviane Panelli Sarraf, do Instituto de Estudos Brasileiros da
Universidade de São Paulo, são consideradas públicos não usuais dos espaços
culturais.
“A minha acessibilidade das pernas me impede
de fazer muitas coisas. Dia desses teve uma apresentação na Biblioteca
[Estadual] do RS. E aí a professora me ligou, ela estava lá e falou assim ‘não,
o senhor não pode, não dá para o senhor vir porque aqui não tem acessibilidade
para o senhor entrar’. Eu fiquei triste, né?”, relata o cantor.
Ainda que em alguns lugares a entrada de
Fernando seja barrada, em outros ela se torna possível. O cantor relata,
emocionado, que durante uma entrevista para uma rádio local, pôde cantar versos
da canção Vida de Viajante, de Luiz Gonzaga, numa alusão ao seu próprio
percurso Brasil adentro. “Minha vida é andar por esse país/ Pra ver se um dia
descanso feliz/ Guardando as recordações da terra por onde passei/ Andando
pelos sertões e dos amigos que lá deixei”, versou Fernando, a voz grave fazendo
a garganta tremer.
Fonte: Por Alexandre Briozo Filho, no Nonada

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