Plano Safra: Lula entre a reforma agrária e o
“agro”
O terceiro mandato do presidente Luiz Inácio
Lula da Silva trouxe à tona uma antiga contradição de seus governos: o esforço
para equilibrar o apoio ao agronegócio e o incentivo à agricultura familiar e à
reforma agrária, bandeiras históricas de movimentos sociais como o MST
(Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra) e entidades como a Fetagri. Lula
visitaria o Assentamento Palmares e o Acampamento Terra e Liberdade, em
Parauapebas, no Pará, no dia 25 de abril. Seria um evento em compromisso com a
Reforma Agrária durante o Abril Vermelho, mês que marca os 29 anos do Massacre
de Eldorado do Carajás. No entanto, a agenda foi suspensa após o falecimento do
Papa Francisco, já que Lula e a primeira-dama, Janja, viajaram a Roma para o
funeral. O MST-PA informou que nova data seria agendada.
É um equilíbrio precário. Recentemente o
governo federal editou a medida provisória (MP) 1289/25, que abriu crédito no
valor de R$ 4,17 bilhões para atender ao Plano Safra 2024-2025, oferecendo aos
produtores rurais de médio e grande porte juros mais baixos que os do mercado.
São R$ 3,53 bilhões para as operações de custeio agropecuário, comercialização
de produtos agropecuários e investimento rural e agroindustrial. Por outro
lado, o governo destinou R$ 645,7 milhões a operações no âmbito do Programa Nacional
de Fortalecimento da Agricultura Familiar (Pronaf), uma linha de crédito do
Plano Safra destinada a pequenos agricultores. Em seu terceiro mandato, Lula
celebrou o lançamento do programa “Terra da Gente”, com a promessa de impactar
295 mil famílias até 2026, como uma retomada da política de reforma agrária. Em
2024, o Palácio do Planalto anunciou o assentamento de 71 mil famílias.
Mas as críticas não tardaram. Movimentos
sociais, liderados pelo MST, contestam os números. Segundo eles, a maior parte
refere-se à regularização de famílias já assentadas em anos anteriores, e não à
criação de novos lotes de terra para quem ainda aguarda na fila da reforma
agrária. O movimento também pressiona por medidas mais incisivas contra a
violência no campo, que permanece alta, especialmente em regiões de expansão do
agronegócio. A Amazônia Legal historicamente é o epicentro da violência no campo
no território brasileiro.
Enquanto o agronegócio é celebrado como um
dos pilares da economia brasileira, respondendo por cerca de 25% do PIB e
garantindo superávits sucessivos na balança comercial, seus impactos sociais e
ambientais despertam preocupações crescentes. Submetido a políticas de
incentivo que incluem crédito subsidiado, isenções fiscais e programas de apoio
técnico, o setor é, na prática, um dos mais beneficiados pela União, embora no
Pará, por exemplo, muitos de seus
representantes (pecuaristas, sojeiros, madeireiros) costumem atacar Lula e
fomentar – inclusive com patrocínio, ações golpistas.
Lula já enfatizou, em entrevistas e falas,
que não vê distinção entre atores diversos do setor agrícola. Grandes ou
pequenos. No ano passado, em entrevista à rádio Difusora, de Goiânia (GO),
chegou a afirmar que representantes do agronegócio brasileiro têm “problema”
com o governo petista por uma questão “ideológica”.
Reproduzida a fala na página oficial do
governo, Lula explicou que defende o MST e não faz distinção entre grandes
exportadores e pequenos produtores. “Os grandes exportadores garantem qualidade
e abrem mercados internacionais. Já os pequenos produtores, que representam
quase 5 milhões de propriedades de até 100 hectares, são os que colocam comida
na mesa dos brasileiros. Eles criam frangos, suínos e outros alimentos
essenciais. Ambos são igualmente importantes”, destacou o presidente, que ainda
ressaltou os investimentos recordes que o agronegócio vem recebendo do atual
governo através do Plano Safra, inclusive com uma generosa negociação das
dívidas do setor.
Apesar do discurso de modernização e geração
de riquezas, o agronegócio emprega menos do que se imagina. De acordo com dados
do IBGE (2023), apenas cerca de 10% da força de trabalho brasileira está
empregada diretamente nas atividades agrícolas, sendo que a mecanização e o
modelo de grandes propriedades reduzem drasticamente a necessidade de mão de
obra. Muitas áreas de monocultura, como soja e cana-de-açúcar, operam com
altíssimos níveis de mecanização, empregando proporcionalmente menos do que
pequenas propriedades agrícolas.
Além da fraca geração de empregos, o
agronegócio também é apontado como um dos principais vetores de degradação
ambiental. Relatórios do MapBiomas mostram que, entre 1985 e 2022, 90% do
desmatamento registrado no Brasil ocorreu em áreas destinadas à agropecuária. O
avanço da soja e da pecuária no Cerrado, na Amazônia e no Pantanal é uma das
maiores pressões sobre os biomas brasileiros, contribuindo para a emissão de
gases de efeito estufa e a perda de biodiversidade.
No campo político, o setor se consolidou como
uma força conservadora. A Frente Parlamentar da Agropecuária (FPA), também
conhecida como bancada ruralista, é hoje uma das maiores e mais influentes do
Congresso Nacional, com mais de 300 membros. São 41 deputados federais da
Amazônia- se incluirmos Tocantins, inserido na Amazônia Legal- e 13 senadores,
se o raciocínio for o mesmo. Tradicionalmente alinhada a pautas conservadoras
em costumes, contrária a demarcações de terras indígenas e às políticas de reforma
agrária, a bancada atua de maneira decisiva na formulação de leis ambientais e
trabalhistas que favorecem grandes proprietários rurais.
Essa influência vai além de Brasília.
Governos estaduais e prefeituras de regiões agrícolas frequentemente moldam
suas agendas para atender demandas do setor, muitas vezes em detrimento de
comunidades tradicionais, quilombolas e assentados da reforma agrária. Nos
últimos anos a Amazônia tem sentido essa força, com o avanço, por exemplo, da
soja no oeste do Pará.
• Commodities
e exportação
A contradição se intensifica no governo Lula,
que tenta conciliar o apoio à agricultura familiar com a manutenção de laços
estratégicos com o agronegócio. O resultado é um cenário em que a política
agrícola oficial busca expandir a produção sem necessariamente enfrentar as
desigualdades fundiárias e os danos socioambientais acumulados ao longo das
últimas décadas. Apesar dos supostos avanços em práticas agrícolas mais
sustentáveis por parte de uma minoria de grandes produtores, a lógica
predominante ainda é a da expansão horizontal da fronteira agrícola, com altos
custos sociais e ambientais.
“Não existe dicotomia”, afirma à Amazônia
Real, Bruno Malheiro, atualmente um dos mais importantes pesquisadores sobre as
grandes atividades econômicas e seu impacto na geografia amazônica. “A gente
tem uma escolha clara, que na verdade vem desde o primeiro governo Lula, pela
exportação de commodities como motor de inserção na economia e
desenvolvimento. Então, toda política
social e todo superávit primário se assenta na exportação de soja, ferro,
petróleo, que são os três principais, aí depois vem celulose, enfim,
commodities. A soja e o minério de ferro são realidades presentes na Amazônia
hoje e o petróleo passou a ser especulado na Foz do Amazonas”, complementa.
Malheiro afirma ainda que isso configura que
todo o cabedal de políticas públicas e todas as instituições pensadas para a
agricultura estão voltadas para esses setores. “Há uma escolha por esses
negócios de expansão territorial e que, na verdade, é inviável pensar algum
tipo de solução conjunta com a agricultura familiar, porque esses negócios se
nutrem dos territórios da agricultura familiar, dos camponeses, dos territórios
quilombolas, indígenas. Então, é uma escolha pela destruição, no final das contas.
A Amazônia e outros biomas serão destruídos por esse tipo de escolha”, diz.
Segundo o pesquisador, o Brasil chegou num
estrangulamento, principalmente com a circulação da produção de soja, de acordo
com o tamanho da produção. Isso porque o país exporta soja, mas não tem
capacidade de armazenamento. “O Brasil armazena só 63% da soja que produz. O
resto disso precisa ser circulado rápido. E a maioria da soja que está no Mato
Grosso e está vindo para a Amazônia, é exportada nos portos do Sul e isso
encarece o produto. Então, existe um
projeto também de exportar pelos portos do Norte. Aí tem a Ferrogrão, tem
Meritituba em Itaituba, perto de Santarém. Enfim, tem os portos e as hidrovias
que querem construir para o escoamento
desses grãos. O governo não entra só como esse lado financiador, do ponto de
vista financeiro, mas também com o lado da infraestrutura de circulação desses
produtos”.
O resultado disso é o que alguns
pesquisadores chamam de ‘engenharia do colapso’, porque os conflitos e o
desmatamento acompanham as rodovias e os eixos de circulação, as chamadas
‘rotas de sacrifício’, como classifica Bruno Malheiro. “Os governos progressistas
estão ampliando essas rotas de sacrifício e um dos maiores impactados é a
Amazônia”.
A promessa de uma “economia verde” no campo
brasileiro, por ora, continua mais como um discurso de exportação do que uma
realidade para o interior do país, principalmente na Amazônia. Enquanto isso,
Lula mantém interlocução constante com grandes produtores rurais e
representantes do agronegócio. Apesar da retórica crítica nos anos anteriores,
o governo reconhece que a pujança do setor é essencial para a balança comercial
e para a estabilidade macroeconômica do país.
A aproximação, no entanto, vem sendo vista
com desconfiança por setores da esquerda. Segundo algumas lideranças, existe
uma clara prioridade no atendimento às demandas do grande agronegócio, enquanto
a reforma agrária e a agricultura familiar continuam recebendo mais promessas
do que realizações efetivas. “O MST demonstra um desconforto com isso. São
valores muito simbólicos para a
agricultura familiar e muitos recursos para o agronegócio”, contesta Pablo
Neri, diretor nacional do MST no estado do Pará. “O fato é que Lula não foi
eleito com um programa de esquerda. A própria natureza da eleição, a frente
ampla, já é uma natureza de disputas internas. Havia uma expectativa, mas se vê
ele cedendo para o parlamentarismo do centrão. O que a gente entende é que tem
que investir na massificação da ideia de reforma agrária e agroecologia para a
construção da justiça social”, afirma. Segundo ele, os próprios bancos empurram
os pequenos agricultores para a pecuarização e isso gera perdas e falências. “A
fórmula bancária de financiamento coloca em xeque essa política de agricultura
familiar. Temos visto isso aqui no Pará”, diz.
A tensão expõe uma escolha estratégica: para
viabilizar sua agenda de governabilidade no Congresso — onde a bancada
ruralista é uma das mais fortes — Lula aposta em uma política de conciliação,
mesmo que isso signifique desacelerar pautas mais radicais de reforma social no
campo. A promessa de fazer “as duas coisas ao mesmo tempo” — crescer e
distribuir, apoiar o agronegócio e impulsionar a reforma agrária — segue como a
corda bamba sobre a qual caminha o governo Lula no campo. “E essa é a escolha
dos governos progressistas na América Latina inteira”, salienta Bruno Malheiro.
Durante 17 anos o pesquisador Marcos
Pedlowski percorreu, como cientista, as estradas e vicinais do estado de
Rondônia. Constatou a profunda mudança da cobertura vegetal e o avanço do
latifúndio na Amazônia, e também, em paralelo, o aumento do uso de agrotóxicos
nos territórios do agro, temas constantes de seus artigos acadêmicos. A
avaliação que ele faz sobre o cenário atual não é otimista.
“Essas duas coisas estão juntas. Porque há um
detalhe ainda, que o grande vendedor de venenos agrícolas do Brasil, que
atualmente é a China, é também o principal comprador dos grãos. Então, para a
China é um negócio muito vantajoso. E o governo Lula aposta nessa noção ainda
antiquada das vantagens comparativas, segundo a mentalidade predominante, que a
gente vende grãos e minérios e compra o resto que a gente não produz, que é
essa face da desindustrialização”, afirmou à Amazônia Real.
Pedlowski ressalta que há também o avanço da
violência sobre os territórios camponeses, sobre as populações tradicionais e
as populações indígenas. “Eu tenho feito uma leitura sobre a questão dos
alimentos ultraprocessados, que tem tudo a ver com o latifúndio agroexportador,
porque parte dessa comida ultraprocessada são amidos, milho e soja, e aí entram
as grandes corporações que controlam a produção de alimentos e que se conjugam
com o latifúndio agroexportador aqui no Brasil. Na minha opinião, o governo Lula
não está acendendo a vela para dois senhores, não. Ele acende a vela para um
senhor e finge que vai acender a vela para o outro senhor”, avalia.
• Pequenos
agricultores excluídos
Pesquisador agrário da Universidade do Estado
do Pará (UEPA), Fabiano Bringel, faz uma análise territorial que mostra como a
Amazônia está distante efetivamente de uma política agrária mais inclusiva por
parte da União. “Quando a gente pensa a Amazônia enquanto bioma com 60% do
território nacional, a gente chega à conclusão, segundo dados do próprio IBGE,
que temos na Amazônia algo em torno de um pouco mais de um milhão de produtores
rurais. Desses, cerca de 90% são classificados como agricultores familiares. Ou
seja, no final das contas, nós vamos ter aí uma boa parte desses produtores
rurais descobertos de uma política agrária, que no final das contas não
consegue chegar a essa grande maioria de produtores que estão classificados
como agricultores familiares”.
Segundo Bringel, se a comparação for feita em
âmbito nacional, o Brasil tem quase 4 milhões classificados como
estabelecimentos rurais. “Cerca de 80%
desses 4 milhões de estabelecimentos, são da agricultura familiar. Ou seja, é
uma política completamente distorcida, que só agrava no caso da Amazônia,
porque na Amazônia, além dessa categoria agricultura familiar, nós temos aí uma
série de pertencimentos, como por exemplo, povos tradicionais, incluindo
ribeirinhos, comunidades quilombolas, sem falar nos próprios povos indígenas
que também se ressentem da falta desse investimento completamente distorcido e
que só ajuda, no final das contas, uma grande minoria, uma minoria de
produtores rurais classificados como agronegócio no Brasil e especialmente na
Amazônia. Então a distorção e desigualdade se aprofundam, no final das contas,
quando se trata da Região Norte”, diz.
“Os circuitos do agronegócio também são os
circuitos do clube de tiro, os circuitos
das igrejas, das festas agropecuárias. O governo vem sendo também uma máquina de trituração de territórios
camponeses, quilombolas, indígenas. É o que temos para a Amazônia do futuro se
continuarmos com essas escolhas”, conclui Bruno Malheiro.
Fonte: Por Ismael Machado, na Amazônia Real

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