segunda-feira, 19 de maio de 2025

Pino Corrias: Trump e Pepe Mujica, dois mundos invertidos - dia e noite

Temos dois mundos nos noticiários, distantes como o dia e a noite. O mundo de Pepe Mujica, o ex‑presidente do Uruguai que governou por cinco anos em nome da justiça, da honestidade e da partilha do bem comum, inclusive de seu salário, 90% do qual era doado aos pobres. E o mundo de Donald Trump, o bilionário sempre ávido por mais bilhões, que governa os Estados Unidos e o mundo brandindo armas, impostos e ameaças. Que promete felicidade por meio do consumo e identidade por meio do poder. Que odeia o Estado de bem‑estar social, pensa que Deus recompensa os devotos com a riqueza e pune os infiéis com a pena da pobreza.

<><> Eis o artigo.

Na terça‑feira Pepe morreu aos 89 anos em sua casa de fazenda de três cômodos nos arredores de Montevidéu. "Estou indo, meu corpo está exausto, o guerreiro precisa de descanso", despediu‑se de Lúcia, sua esposa há 49 anos, e de alguns companheiros que esperavam no pátio, onde floresce o hibisco, ao lado do velho Fusca que Pepe dirigia também quando era presidente. A dez mil quilômetros de distância, nas mesmas horas, Trump dançava cintilante pelos salões dourados, fontes e arco‑íris artificiais de Bin Salman, o sultão de Riad, entre outros homens bilionários: banqueiros, financistas, industriais, assinando acordos estratégicos no valor de 600 bilhões de dólares, talvez mil, talvez 3 mil, para armas, petróleo, satélites, Inteligência Artificial. Cada um para engordar sua própria Era de Ouro. E ali, à sombra do palácio real, estacionavam cem carros blindados com motoristas, escoltas, televisores planetários.

Pepe Mujica foi agricultor, guerrilheiro nas fileiras marxistas dos Tupamaros, detido por 15 anos em confinamento solitário, libertado sem rancor, com palavras de pacificação para o Uruguai, que o elegeu presidente de 2010 a 2015. O primeiro discurso que proferiu em sua posse foi sobre o direito à felicidade: "Devo lutar para melhorar a vida das pessoas. Não o fazer é imoral". E contra seu inimigo absoluto, o consumismo: "Viemos ao mundo para tentar ser felizes, porque a vida é curta e não volta. Mas se gastarmos nosso tempo trabalhando e trabalhando para consumir coisas que não duram muito, a vida se vai. Cuidado, não compramos as coisas com o dinheiro, mas com o tempo de vida, a única coisa que não podemos comprar".

Trump nasceu bilionário e mediu toda a sua aventura em dinheiro, consumos, conquistas. Com os mesmos ingredientes, ele fabricou o triunfo de sua política, que prossegue com os empurrões, as ameaças, o desafio, ao longo da diagonal que divide o mundo em amigos e inimigos. Em espertos e idiotas. Em países que não querem se submeter à sua vontade e aos beneméritos que "vêm beijar minha bunda".

Pepe falava e atuava contra um mundo que cresce na injustiça, na desigualdade, nos conflitos, aprisionado pela religião do dinheiro que distorce tudo, multiplicando o número de excluídos: "Vivemos em um mundo em que se acredita que quem triunfa deve ter muito dinheiro, ter privilégios, uma casa grande, muitos empregados. Enquanto eu penso que esse modelo vencedor é apenas uma maneira idiota de complicar a vida, acho que aqueles que passam o tempo acumulando riquezas são tão doentes quanto um viciado em drogas, deveriam ser tratados".

Trump pensa exatamente o oposto: a riqueza é o propósito da vida. Temos que agarrar tudo o que queremos, como o presente recém recebido do Catar, um Boeing 747 de 400 milhões de dólares, com onze banheiros onde você pode sentar confortavelmente para urinar em cima do mundo. Especialmente sobre aquele imaginado por Pepe Mujica, seu mundo invertido, ao qual ele havia dedicado a proposta de lei das "cinco liberdades" - da fome, da sede, da dor, do medo, da restrição - cultivada até o último dia, como as flores rosas que desde ontem continuam crescendo em seu jardim.

¨      Mujica, o presidente camponês e sua lição sobre a natureza e liberdade. Por Carlo Petrini

Há pessoas que souberam concretizar seus pensamentos por meio de sua própria existência, explicitando assim uma vida vivida com plena e digna coerência. Uma delas é José "Pepe" Mujica, que em seu modo de ser e agir encarnou o ideal de um socialismo fortemente dedicado à luta contra as desigualdades, à crítica ao capitalismo e ao respeito à liberdade individual.

Pepe nos deixou há dois dias, aos 89 anos, todos vivido na busca de seus ideais, sem jamais ostentar o peso político que o mundo inteiro reconheceu a ele, e sem jamais esconder as origens humildes de sua família de emigrados e agricultores. Em sua longa carreira política, Mujica sempre doou 90% de seu salário aos mais necessitados, continuando a viver em uma fazenda rural onde, junto com Lúcia, sua esposa e companheira de toda a vida, cultivava uma pequena área de terra.

Um estilo de vida que levou os jornais mais importantes do mundo a rotulá-lo de "o presidente pobre". Um apelido que ele sempre rejeitou publicamente porque não respeita aqueles que de fato vivem naquela terrível condição. A pobreza sempre foi algo sério para Mujica e ele tinha plena consciência dos sofrimentos que ela pode gerar. De membro da resistência a presidente do seu povo, a vida também lhe reservou provações realmente duras. A participação ativa nos Tupamaros – o movimento de inspiração marxista-leninista que lutava por maior dignidade para as classes sociais mais pobres – na década de 1970 custou a Mujica sua captura e prisão por mais de 12 anos, muitos dos quais em total isolamento.

No entanto, a força desse homem sempre foi tirar as melhores lições de cada fato vivenciado, e quero relatar como, com sagacidade e ironia, ele comentava sobre sua tortuosa trajetória de vida: "Sou um camponês meio bagunçado e o único mérito que tenho é ser um pouco basco, teimoso, duro, gregário e constante, e por isso me mantive firme. Mas não sou um fenômeno. Na verdade, passei anos na prisão porque fui pego, porque me faltou velocidade. Não tenho vocação de herói. No entanto, tenho uma espécie de fogo interior estimulado pela injustiça social".

É evidente que um sujeito tão determinado e tão arraigado em suas convicções conseguiu atrair a atenção do mundo inteiro por suas políticas corajosas, fortemente voltadas para a liberdade individual. Tive a sorte de encontrar Pepe em algumas ocasiões, duas das quais foram indelevelmente marcadas pela extraordinária empatia que esse grande personagem era capaz de gerar, mesmo que apenas com um olhar.

Em 7 de novembro de 2016, centenas de jovens de diferentes nacionalidades lotavam a Aula Magna da Universidade de Milão para ouvir duas pessoas, então com quase setenta anos, e um octogenário, discutirem temáticas sociais mais urgentes, adotando um ponto de vista nada convencional: a felicidade. Uma dessas pessoas era eu, os outros dois eram grandes homens que fizeram a história da América Latina e que, com grande humildade e profunda admiração, me permito chamar de companheiros: Mujica, em uma de suas primeiras viagens após seu mandato como presidente, e Luis Sepúlveda, o grande poeta, escritor, mas antes de tudo militante. Mais de mil pessoas não conseguiram entrar no anfiteatro, obviamente todas interessadas em ouvir os depoimentos daqueles dois gigantes da cultura latino-americana que pagaram com a prisão uma vida dedicada à busca de seus ideais e que, infelizmente, hoje não estão mais entre nós. Lembro-me de como alguns jornalistas detratores tentaram ridicularizar aquele encontro: "Três comunistas.  Antigamente, os comunistas comiam as criancinhas, agora contam fábulas”. Acredito que teria sido difícil nos fazer um elogio melhor do que esse, mesmo que feito inconscientemente.

A felicidade que tivemos a oportunidade de discutir é a de nossas trajetórias de vida que, embora diferentes, compartilham o mesmo esforço: a afirmação da felicidade não como bem-estar individual, mas global, e da política, aquela movida pela paixão e pela compaixão, e não pelo bolso, como forma de alcançá-la. A síntese compartilhada daquele encontro por todos nós três, de fato, foi que a verdadeira felicidade se vive por meio do empenho pelo bem comum, pelos direitos de uma humanidade que sofre com as desigualdades e, portanto, em ver esse tipo de política se realizar.

O segundo encontro com Pepe que recordo com extremo prazer é datado de 30 de outubro de 2022, um dia que marcou a história recente de um país que ambos sempre amamos muito: o Brasil. Estávamos, de fato, em São Paulo, no local escolhido por Lula para que seus apoiadores mais próximos acompanhassem as eleições presidenciais brasileiras. Juntos, entendemos que o segundo mandato presidencial de Lula teria começado. Era natural celebrar o momento com uma foto. E a primeira pessoa com que pensamos compartilhar essa foto foi outro grande homem do nosso tempo: o Papa Francisco. Os dois, de fato, se encontraram várias vezes e posso dizer com certeza que tinham grande apreço mútuo, no pleno respeito de sua diversidade. Muitas das políticas libertárias de Mujica não podem colimar com a visão de um chefe da Igreja Católica, mas ambos reconheciam o valor da coragem e da honestidade de seus caminhos de vida.

A abordagem que essas duas grandes personalidades sempre mantiveram está extremamente ligada à poesia que camponeses e artesãos sabem fazer. Mesmo em tempos tão sombrios, aqueles que pensam "poeticamente" podem descortinar o paradigma de renascimento humano fortemente buscado por Mujica e Bergoglio. Duas testemunhas que sempre acreditaram na poesia como política do futuro, que se manifesta em palavras e ações muito diferentes daquelas a que estamos acostumados. Sua origem camponesa comum também os uniu nisso, em saber encarnar a poesia da vida.

"Por isso, volto a insistir na ideia de que a felicidade não pode ser separada da liberdade, mas a felicidade é uma escolha livre e também não pode ser separada do senso de sobriedade, que significa simplesmente isto: viver apenas com o necessário, com bagagem leve. Para quê? Para ter tempo livre, porque se você quer possuir muitas coisas, lembre-se de que não as compra com o dinheiro, você as compra com o tempo da sua vida, o tempo que você gastou para ganhar aquele dinheiro. E a verdadeira liberdade é ter tempo para as coisas mais preciosas da vida: família, afetos, amigos, militância, empenho." Obrigado, Pepe, pelo seu exemplo, pelas suas palavras, pela sua poesia.

¨      “A política não é uma profissão, é o sentido que encontrei para a vida”, dizia Pepe Mujica

Manuel Alcántara, um dos grandes especialistas atuais em política na América Latina, entrevistou o então líder Pepe Mujica, político determinado e ex-líder do movimento guerrilheiro tupamaro, que se tornou uma referência para a esquerda latino-americana e uma figura política global.

<><> Eis a entrevista.

·        Pepe, estamos vivendo um momento histórico particular. Agora aposentado, como o senhor enxerga o contexto global?

O que abunda neste período é a incerteza. Caminhamos como se estivéssemos pisando em brasas, nada parece definitivo, tudo cambaleia. Muitas das instituições estratégicas de nossa humanidade estão se desarticulando. Dá a impressão de que não estamos em uma época de mudança, mas, sim, que estamos em uma mudança de época.

·        Neste contexto, qual é o principal problema que observa no Uruguai, neste momento?

É um problema que toda a América Latina tem. A política internacional não existe, é a proteção dos interesses nacionais. Precisamos de acordos para uma série de coisas, mas as decisões são tomadas pelo mundo desenvolvido e não coincidem necessariamente com as do mundo não desenvolvido.

Não existe uma política internacional que procure criar uma harmonia de caráter mundial. Este é um problema que está se transformando em um fenômeno geológico e a humanidade não tem consciência de que é preciso tomar medidas de caráter mundial recomendadas pela ciência.

Além disso, existe o tema das matérias-primas. Nosso intercâmbio é uma perda permanente de valor porque não podemos vender valor agregado e vamos correndo atrás. Esta é uma escala superior do colonialismo. Contudo, nosso tempo e a disponibilidade de recursos estão acabando e não sabemos como lidar com isso. Eu não acredito que exista uma crise ecológica, a crise é política porque há mais de 30 anos sabemos o que é preciso fazer e não conseguimos dar conta.

·        Como se conjuga o Uruguai do passado com o de hoje?

No Uruguai, temos uma grande dívida com os nossos avós... Nos anos 1930, tínhamos um PIB per capita como o da França e Bélgica. O Rio da Prata estava muito descolado da região. No entanto, após a guerra essa realidade mudou. A Europa, que era o nosso mercado natural, fechou-se, vendíamos cada vez mais barato e comprávamos mais caro e, por volta de 1960, começamos a nos parecer cada vez mais com a América Latina.

E a longo prazo, também vacilamos politicamente. Quando os povos estão bem e caem bruscamente, sofrem muito mais do que aqueles emergentes. É difícil para as massas entender e suportar as dificuldades de uma vida que empobrece.

·        Contudo, havia uma espécie de resiliência na sociedade uruguaia e, nos anos 1980, alcançou-se uma transição exemplar...

Sim, sim, voltamos. Aceitamos os defeitos da democracia e decidimos lutar dentro dela para buscar melhorá-la, sabendo que não é perfeita. Dentro da variável que podíamos escolher, era necessário cuidar e lutar para melhorá-la e isto, no momento, é um ponto comum para a maioria dos uruguaios.

·        De fora, surpreende o estado de espírito da classe política uruguaia e essa falta de polarização que vemos em outros países.

Trata-se de cultivar um capital comum, temos pensamentos discordantes, mas temos consciência de que formamos um “nós”. E isso deve ser muito valorizado porque a democracia, por sua natureza, precisa de relações humanas e de certo nível de respeito que seja transmitido ao resto da sociedade. A relação de cachorro e gato acaba afetando a convivência.

Se os líderes não dão o exemplo, não podem pretender que a sociedade respeite as regras do jogo, que significa ter diversidade de opiniões e ser capaz de conviver como povo. Isso não quer dizer que as diferenças não existem, e por vezes diferenças muito graves, mas é preciso buscar superá-las.

·        O seu período coincidiu com a ascensão e queda de certo estímulo a um tipo de integração latino-americana. Que lembranças o senhor tem?

Chávez estimulou muito esta ideia. E, hoje, nós estamos trabalhando nisso, porque é uma das formas de defender o nosso destino. Contudo, se continuarmos nos vendo como países, nunca compreenderemos. Diante do COVID, cada governo buscou fazer o que podia. Se tivéssemos nos manifestado em grupo, poderíamos ter tido mais sorte.

Temos um acúmulo de coisas em comum que devemos defender. Por exemplo, hoje, poderia ser organizada uma OPEP do lítio, todas as potências estão vindo porque aqui, na América Latina, há três países fortes (Chile, Bolívia e Argentina). Porém, se cada um segue de seu lado, vão acabar perdendo uma grande oportunidade.

O que falta é liderança. Desde Bolívar, sempre se falou em integração, mas essas ideias sempre foram promovidas por pensadores, nunca baixaram até as correntes populares. Estamos em um processo de tentar fazer com que as pessoas entendam que não é um problema intelectual, é um problema de todos.

·        Qual é o papel do político?

Sou um militante social desde os 14 anos, continuo sendo. Para mim, a política não é uma profissão, é o sentido que encontrei para a vida e, sendo assim, considero impossível conceber a minha vida sem ela. Essencialmente, venho almejando melhorar um pouco a sociedade onde nasci. Eu faço isso pela sociedade. Ou talvez por mim mesmo, para dar um sentido à vida.

·        Então, que conselho daria para alguém que queira se dedicar à política?

Que busque conhecer a si mesmo e se gosta muito de dinheiro, que jamais se envolva com a política. É preciso ter paixão pela política. A função da política é a de conjugar os inevitáveis egoísmos individuais e a existência desse todo que nos ampara, que é a sociedade. A política pode ser aprendida, mas existe uma brasinha que você a tem ou não.

·        Para terminar, entre seus conhecidos na política, quais são as três personalidades que destaca como bons exemplos?

Conheci Fidel, estive com Che Guevara e, claro, com Chávez. Contudo, fiquei muito impressionado com a senhora Merkel. Sou amigo íntimo de Lula, todo um personagem da história da nossa América Latina e por quem tenho muito respeito. E se tenho que destacar um terceiro, é um homem pouco conhecido, que se chamava Raúl (Raúl Sendic, pai do ex-vice-presidente uruguaio). Ele foi a única pessoa que conheci que, dez anos antes, previu que a União Soviética se despedaçaria. Esta é uma magia na alta política

 

Fonte: il Fatto Quotidiano/La Stampa - tradução de Luisa Rabolini, para IHU/El Espectdora

 

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