Os riscos de um “mar de lama” na Amazônia
Uma
parte da população amazônica vive próxima a barragens de mineração que
apresentam problemas estruturais e de risco potencial à vida humana e à
floresta. Uma análise exclusiva da InfoAmazonia revela que, dos 371
empreendimentos minerários na região, 46% (171) estão em estado de emergência —
com falhas físicas, como corrosão, erosão ou desgaste de materiais —, ou
classificados como risco médio ou alto de atingir comunidades e causar danos em
caso de rompimento. Os dados são da Agência Nacional de Mineração (ANM).
A
atividade das mineradoras gera rejeitos, como lama, líquidos e resíduos
tóxicos, que são armazenados em barragens. Em caso de rompimento, esses
materiais podem se espalhar por uma área de 590 km² na Amazônia, — o
equivalente a mais que o dobro da cidade de Porto Alegre (RS) — atingindo
pontos próximos a florestas, cidades e quilombos, segundo os dados da ANM.
Durante
a instalação e o registro oficial pela ANM, as barragens passam por uma
avaliação sobre os possíveis riscos de acidentes, como rompimentos e outras
falhas na estrutura, e os danos causados por eles, ambos classificados como
alto, médio ou baixo. A categoria de risco verifica o estado de conservação, a
altura da barragem, a capacidade para o volume de rejeitos e o histórico de
manutenção e monitoramento pelos órgãos responsáveis. Já o dano potencial
analisa a possibilidade de perdas humanas e os impactos socioambientais e
econômicos.
Para
entender até onde a lama chegaria em caso de um rompimento, as empresas
calculam a distância de alcance do rejeito de acordo com o volume, o tipo, a
altura e a geometria da estrutura da barragem. Seis estados da Amazônia seriam
afetados em caso de acidente: Pará, Maranhão, Mato Grosso, Amapá, Rondônia e
Amazonas.
O Pará
seria o mais prejudicado, com 409,48 km² impactados, área equivalente a 40% da
capital Belém. Os rejeitos atingiriam cidades como Barcarena (PA), Almeirim
(PA), Parauapebas (PA) e Pedra Branca do Amapari (AP), além de 345 km² de
floresta e três comunidades quilombolas, onde vivem mais de 400 famílias.
Nos
outros estados, o impacto seria menor: em Mato Grosso, 64,99 km² seriam
atingidos; Maranhão, 51 km²; Amapá, 24,58 km²; Rondônia, 21,94 km²; e Amazonas,
18,51 km². No entanto, o histórico de rompimentos no Brasil mostra que os
cálculos preditivos de área em caso de acidente não são precisos: “As
informações das barragens são enviadas pelas próprias empresas, não são
produzidas pelo Estado. Isso prejudica a eficácia desses dados”, explica
Francisco Kelvin da Silva, coordenador do Movimento dos Atingidos por
Barragens, organização que atua no tema desde 1970.
Segundo
Silva, oficialmente, o Brasil tem cerca de 30 mil barragens para diferentes
usos: contenção de sedimentos, hidrelétricas, geração de energia, irrigação,
navegação, espalhadas por todo o território nacional: “Entretanto, os
pesquisadores indicam que o número pode ser ainda maior, especialmente em
regiões do interior do país que ainda não estejam cadastradas pelo governo”.
Além
disso, no caso das barragens de mineração, há um déficit nos registros, pois
existem áreas não cadastradas, como aquelas que indicam a presença de garimpo
ilegal. Foi esse o caso do rompimento ocorrido em fevereiro, no Amapá,
quando os rios Cupixi e Araguari foram
manchados com lama, areia e argila, resíduos da extração de ouro, nos
municípios de Pedra Branca do Amapari e Porto Grande.
“No
caso da Amazônia, uma quantidade muito grande de barragens ligadas à atividade
do garimpo só está sendo identificada nos últimos relatórios, em virtude dos
problemas de segurança que apresentam. Ou seja, são verificadas quando já estão
causando algum dano”, diz Silva.
Empresas
atuam na região com a extração de bauxita, ferro, manganês, cobre, níquel e
outros minérios. Esses materiais podem causar problemas de saúde, tanto pela
ingestão direta, como no consumo de água contaminada, ou indireta, quando
animais contaminados são usados para alimentação.
Alguns
materiais, como cobre e chumbo, podem causar irritações na pele quando a pessoa
entra em contato com a poeira dos rejeitos. Em geral, as doenças associadas são
infecciosas, como a dengue, que se prolifera em focos de água parada. Também há
risco de doenças renais, câncer, hipertensão e problemas psiquiátricos, como
depressão, ansiedade, insônia e estresse.
Para
Silva, o Estado não consegue estimar os danos reais dos empreendimentos. Ele
explica que, antes mesmo de uma barragem começar a funcionar, as comunidades e
os municípios sofrem impactos nos serviços públicos e no crescimento
desordenado dos territórios.
“Você
tem um impacto cumulativo dessa operação que é muito grande, que tem a ver não
só com o impacto ambiental, mas com a capacidade do Estado de atender diante
dessa nova realidade. A gente tem um crescimento muito grande da especulação
imobiliária, do preço da terra, o que agrava os conflitos urbanos — com casos
de violência contra mulheres crescendo — e também no ambiente rural, com brigas
por moradia”, relata.
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Pará: o estado sob maior risco
As
populações do estado do Pará disputam o espaço com grandes mineradoras que
operam na região. Neste ano, por exemplo, o Tribunal da Holanda vai julgar a
empresa norueguesa Hydro-Alunorte, acusada de despejar minérios em rios que
margeiam comunidades ribeirinhas nos municípios de Barcarena e Abaetetuba.
A
Associação dos Caboclos, Indígenas e Quilombolas da Amazônia (Cainquiama)
afirma que o impacto ambiental nos rios está causando perda de memória, câncer
e problemas neurológicos nos moradores das comunidades Sítio São João, São
Sebastião do Burajuba e Sítio Cupuaçu, localizadas em Barcarena. A empresa atua
no município desde 1995. No ano passado, a Justiça Federal condenou a
Hydro-Alunorte a pagar R$ 100 milhões pelo impacto causado nas comunidades.
“Nós
queremos a nossa vida como era antigamente. Queremos a nossa saúde. Somos
tradicionais, somos povo da floresta. Queremos tomar banho no rio, andar a pé,
nas nossas praias. Queremos voltar a pescar e comer os nossos peixes, vender.
Queremos a nossa saúde de volta”, diz Maria do Socorro Costa Silva, presidente
da Cainquiama.
De
acordo com o VI Relatório Anual de Segurança de
Barragens de Mineração, da Agência Nacional de Mineração (ANM), órgão
responsável pelo cadastro e monitoramento dos empreendimentos, das 371
barragens existentes na Amazônia, apenas 17% (66) foram vistoriadas em 2024.
As
vistorias são feitas para que o órgão verifique se a empresa está cumprindo os
requisitos legais dos Planos de Segurança de Barragem — documento que descreve
ações de redução de impactos — e para avaliar a conservação das estruturas
físicas das barragens.
A líder
quilombola Sandra Amorim é coordenadora da Associação de Moradores da
Comunidade Quilombola Sítio São João, território que está próximo de duas
barragens da empresa Imerys Rio Capim, em Barcarena. A empresa extrai dali o
minério caulim
Este
minério é uma rocha fina composta por silicato de alumínio. Ela é usada para
confecção de papel, cerâmicas, tintas, borrachas, dentre outros.. As duas
barragens apresentam risco alto e baixo para rompimento, e ambas têm dano
potencial alto às comunidades.
Sandra
é uma das ativistas que lutam contra a mineração no Pará. “Afetou sim, porque
não tem mais como a gente usar o rio. Eles chamam de acidentes, a gente chama
de crime ambiental mesmo. A água pura é contaminada pelos rejeitos, por lixo”,
afirma.
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Quilombos atingidos
Em
Oriximiná, noroeste do Pará, os quilombos Boa Vista e Alto Trombetas ficam
próximos de 11 barragens de mineração da empresa Mineração Rio do Norte (MRN),
que explora bauxita na região do Vale do Trombetas.
Manuel
Edilson Santos, líder quilombola conhecido como “Munduca”, diz que vive há 46
anos com medo de um acidente. Ele mora na comunidade Boa Vista, localizada a 10
minutos de distância da barragem da MRN.
Este
foi o primeiro quilombo a receber titulação no Brasil, em 1995, e lá vivem 50
famílias. Porém, a mineradora chegou antes que o Estado cumprisse seu papel, em
1979, de titular os territórios quilombolas. Desde então, as comunidades
tiveram diversas modificações no espaço: primeiro, com a criação da vila de
Porto Trombetas — feita para receber os funcionários da mineradora —, depois
com práticas de despejo e criação de tubulações para derramamento em lagos.
Parte desses impactos só começou a ser corrigida após 1981, com a criação da
Política Nacional de Meio Ambiente, que instituiu o licenciamento ambiental e
planos de segurança.
“A
gente fica a 100 metros de uma barragem dessas. Mora gente ao lado da barragem
e na frente dela. Então, não tem como dizer que lá não há risco. Você não sabe
a hora nem o momento em que ela pode estourar, entendeu? Já são muitos anos
jogando lama nos igarapés”, explica Munduca.
A MRN
promove diversas atividades de reconhecimento das comunidades quilombolas, como
projetos educacionais, seminários e apoio às práticas extrativistas. Apesar
disso, Munduca conta que os danos às famílias são constantes, pelo medo de usar
as águas dos rios, pela perda do território e pelo receio de que um rompimento
ocorra.
“Eu sou
muito revoltado com o que acontece aqui. Imagina, eles fizeram um estudo de
componente quilombola com 600 páginas de documento. Você acredita que, dentro
do território, os comunitários — que são em sua maioria semi-analfabetos — vão
ter condições de entender a importância disso? É uma humilhação. É muito
covarde, sabe?”, diz Munduca.
No caso
das duas barragens da MRN que ameaçam a vida dos quilombolas da Comunidade Boa
Vista, ambas têm dano potencial considerado médio. Isso significa que, em caso
de rompimento, há possibilidade de perdas de vidas humanas, impactos ambientais
e estruturais, segundo a ANM.
“Ela [a
empresa] está tirando minério sem nenhuma preocupação. Para a mineração, tudo
aqui está sendo feito com 100% de qualidade, com tudo em segurança, sem dano ao
meio ambiente, mas isso não é real. Os nossos rios estão sujos”, diz Munduca.
A
InfoAmazonia procurou a MRN e perguntou sobre os seus protocolos de segurança.
Em resposta, a empresa informou que faz monitoramento das barragens 24h por dia
e possui o Centro de Monitoramento Geotécnico (CMG), estrutura que “garante a
segurança dos reservatórios e barragens, com instrumentos automatizados que
fornecem leituras diárias analisadas por toda a equipe do CMG e barragens”.
A
mineradora informou, também, que todas as barragens foram vistoriadas por
auditores externos, em 2024 e 2025, e que estão seguras: “A empresa também
promove ações de conscientização, como seminários informativos e simulados, que
mantêm comunidades próximas ao empreendimento e empregados informados e
preparados para qualquer tipo de incidente, atuando preventivamente com a
ampliação do conhecimento sobre o tema”, explicou.
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Mineradoras com barragens
Dez
empresas concentram 77 barragens na Amazônia. São elas: Mineração Rio do Norte
S.A. (24), Cooperativa Mineradora dos Garimpeiros de Ariquemes (9), Vale S.A.
(9), Alcoa World Alumina Brasil Ltda. (7), Mineração Taboca (6), Salobo Metais
S.A. (6), Cooperativa de Mineração dos Garimpeiros de Pontes e Lacerda (4),
Cooperativa dos Garimpeiros do Vale do Vila Nova (4), Mineração Apoena S.A. (4)
e Salinas Gold Mineração (4).
Dessas,
a Vale S.A., Mineração Taboca, Salobo Metais, Alcoa World Alumina Brasil têm
casos de investigações de irregularidades no Brasil sob análise – processos
judiciais ou denúncias feitas por comunidades ao MPF – ou rompimentos de
barragens já ocorridos e denunciados à imprensa.
O
Ministério Público Federal (MPF) recomendou, em 2021, a suspensão das
atividades da
barragem da Mineração Taboca S.A., após identificar vazamento de rejeitos no
território do povo Waimiri Atroari.
Já a
Vale S.A. foi responsável por dois grandes rompimentos de barragens no Brasil:
os de Brumadinho e de Mariana, ambos no estado de Minas Gerais. A empresa
também é dona da Salobo Metais S.A, que tem barragens na região. Em 2022, o
Ministério Público do Trabalho do Pará pediu que a Justiça determinasse a
retirada de 1.400 trabalhadores da área de risco, onde atuavam na barragem
Mirim, no município de Marabá (PA).
Em
2019, a Justiça Federal determinou a
proibição da entrada da Alcoa World Alumina Brasil no Projeto de
Assentamento Agroextrativista (PAE) Lago Grande, em Santarém (PA), sem a
realização da consulta prévia, livre e informada às comunidades. A norma foi um
pedido do MPF. O órgão afirmou em ação ajuizada que estavam ocorrendo assédios
às comunidades, sem seguir o trâmite da consulta.
Todas
as empresas citadas – Mineração Rio do Norte S.A., Cooperativa Mineradora dos
Garimpeiros de Ariquemes, Vale S.A., Alcoa World Alumina Brasil Ltda, Mineração
Taboca, Salobo Metais S.A, Cooperativa de Mineração dos Garimpeiros de Pontes e
Lacerda, Cooperativa dos Garimpeiros do Vale do Vila Nova, Mineração Apoena
S.A. e Salinas Gold Mineração – foram questionadas pela InfoAmazonia sobre as
vistorias realizadas no último ano, sobre os protocolos de segurança e a
estrutura das barragens que possuem nos estados da Amazônia.
A Vale
informou que todas as barragens possuem declaração de estabilidade positiva e
são vistoriadas periodicamente e que as estruturas passam por inspeções
rotineiras de campo, auditorias externas e são monitoradas permanentemente
também pelo Centro de Monitoramento Geotécnico (CMG), 24 horas por dia, durante
todos os dias da semana.
“As
barragens da Vale no Pará possuem declaração de estabilidade positiva e são
vistoriadas periodicamente, de acordo com a legislação. A empresa não possui
nenhuma barragem em nível de emergência no estado. As estruturas passam por
inspeções rotineiras de campo, auditorias externas e são monitoradas
permanentemente também pelo Centro de Monitoramento Geotécnico (CMG). O CMG
funciona por meio de sistema integrado com instrumentos, câmeras e
acompanhamento de equipe técnica, que monitora as estruturas geotécnicas
(barragens) da Vale, 24 horas por dia, durante todos os dias da semana.
Todas
as barragens da Vale no Pará possuem Plano de Segurança de barragens, conforme
previsto em lei. A empresa periodicamente, realiza conjunto de ações educativas
de promoção da cultura de segurança sobre barragens. Entre elas, testes de
sirenes e simulados de emergência, visitas às operações e seminários
orientativos, cujo objetivo é aprofundar o conhecimento das pessoas sobre
medidas de segurança de barragens e as ações de prevenção. Por fim, a Vale
reitera o seu compromisso com a proteção das comunidades, do meio ambiente e
com a segurança de suas estruturas”, disse a empresa.
A
Mineração Apoena, da companhia Aura Minerals, explicou, via assessoria de
imprensa, que todas as barragens passam por auditorias três vezes ao ano e
inspeções regulares quinzenalmente . “Todas as nossas barragens estão
regulares, todas atestadas dentro da regularidade. Além das auditorias externas
exigidas por lei, a AURA cumpre com legislação e faz inspeções internas,
regulares, com seu próprio time de especialistas, periodicamente, de forma
regular”, disseram.
As
outras empresas não responderam até a publicação da matéria.
COMO
ANALISAMOS AS BARRAGENS DE MINERAÇÃO NA AMAZÔNIA?
. Nesta
reportagem, analisamos as informações sobre as barragens de mineração
disponibilizadas pela Agência Nacional de Mineração. Foram consideradas
os dados de barragens em operação, listadas no Sistema Integrado de Gestão de
Barragens de Mineração (SIGBM), coletados em abril de 2025, nos nove estados da
Amazônia Legal: Pará, Amapá, Amazonas, Acre, Roraima, Rondônia, Mato Grosso,
Tocantins e Maranhão.
. Além
das características das barragens, como planos de segurança, níveis de risco e
danos possíveis, verificamos a sobreposição das áreas de inundação com a
localização de comunidades quilombolas e localidades quilombolas,
disponibilizadas pelo Instituto Nacional de Colonização e
Reforma Agrária (Incra) e pelo Censo 2022 (IBGE).
. Para
reforçar nosso compromisso com a transparência e garantir a replicabilidade das
análises, a InfoAmazonia disponibiliza os dados nesta pasta.
Fonte:
Por Jullie Pereira, na InfoAmazonia

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