O
silêncio do Papa Leão 14 sobre os abusos sexuais por padres na América Latina
No
primeiro domingo de seu pontificado, no dia 11 de maio, o Papa Leão 14 apareceu
do alto do balcão central da Basílica de São Pedro, ao meio-dia em ponto, para
falar com uma multidão que o aguardava. A praça e as ruas do entorno da Cidade
do Vaticano pareciam bem mais cheias que quatro dias antes, quando, da mesma
sacada, o cardeal estadunidense naturalizado peruano Robert Francis Prevost foi
apresentado pela primeira vez como o novo chefe da Igreja Católica. No domingo,
além de uma mensagem enfática contra a guerra, Leão 14 chamou os jovens a
aceitarem as vocações “sacerdotais e religiosas”, com uma exortação firme e
direta: “Não tenham medo! Aceitem o convite da Igreja e de Cristo Senhor!”
De
baixo, na Praça São Pedro, sobreviventes de abuso sexual praticados por padres
e lideranças católicas ouviram estas mesmas palavras com aversão. “Os jovens
têm medo. As vítimas têm medo e o papa precisa dizer, com todas as letras, que
o estupro de crianças na Igreja é um crime e será punido. Mas ele permanece em
silêncio”, afirmou Sarah Pearson, porta-voz da SNAP (Survivors Network of those
Abused by Priests). O grupo de sobreviventes esteve no Vaticano para exigir
respostas, durante a realização do Conclave e também nos primeiros dias do
pontificado de Leão 14. O cenário não é novo, mas o contexto é alarmante: sob
uma nuvem de desconfiança, um novo papa, suspeito de acobertar abusos no Peru,
assume o trono de São Pedro.
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Por que isso importa?
- O novo papa é
suspeito de acobertar abusos no Peru, enquanto era cardeal. Vaticano ainda
não se pronunciou sobre o assunto;
- Grupo de
sobreviventes de abusos denuncia impunidade nos casos. Ausência de dados
contribui para impunidade na América Latina e no Brasil.
França
e Espanha são os países com maior quantidade de casos de abusos sexuais
clericais do mundo. Nos últimos 80 anos, a estimativa é de mais de 655 mil
vítimas nessas nações. Com base em estudo conduzido pelo Instituto Nacional
Francês de Saúde e Pesquisa Médica (Inserm), a Comissão Independente sobre
Abusos Sexuais na Igreja (CIASE) informou, em um relatório, publicado em 2021,
que aproximadamente 330 mil menores foram vítimas de abusos na França desde
1950. Outro relatório estima que
aproximadamente 440 mil pessoas na Espanha possam ter sido vítimas de abusos
sexuais relacionados à Igreja Católica.
Ainda
em território europeu, Portugal e Polônia apresentam levantamentos com números
expressivos, tendo o primeiro uma estimativa de 4.815 casos de abusos entre
1950 e 2022. O número foi reportado pela Comissão
Independente para o Estudo dos Abusos Sexuais de Crianças na Igreja Católica em
Portugal, em 2023, no qual também é apresentado o perfil dos abusadores:
“Predominam adultos jovens com estruturas psicopatológicas agravadas por
fatores de risco como o alcoolismo ou o mau controle de impulsos. Destacam-se
as perturbações de personalidade, com facetas socialmente integradas, revelando
capacidade de sedução e manipulação”.
Na
Polônia, foram publicados três relatórios desde 2019. O primeiro considerou 625
casos entre o período de 1990 e 2018, mapeados pela Conferência
Episcopal Polaca (KEP).
Já no segundo, de 2021, 368 novas denuncias foram recebidas, enquanto o último
relatório, apresentado em 2022, adicionou mais 84 novas denúncias de abuso
sexual, ocorridas entre 1965 e 2022.
Nos
Estados Unidos, o relatório mais abrangente sobre o tema é o John Jay Report, encomendado pela
Conferência dos Bispos Católicos dos EUA e publicado em 2004, que estimou 4.392
sacerdotes implicados desde 1950 até 2002.
O papa
Francisco deu passos importantes em direção ao combate de abusos sexuais, desde
o primeiro ano de seu pontificado, em 2013. Os principais ocorreram em 2019,
primeiro com a promulgação do motu proprio Vos estis lux mundi (“Vós sois a
luz do mundo” em latim), que obriga clérigos a reportar abusos e estabelece
procedimentos para investigação, e depois, com a publicação do Vademecum,
o manual sobre a condução de investigações de abuso sexual cometidos por
clérigos. Mas não são poucas as críticas sobre a eficácia das orientações do
Vaticano.
O
próprio Vademecum trata das
investigações canônicas, ou seja, no âmbito da Igreja, mas não obriga a
autoridade eclesiástica que têm a ciência do caso a denunciar às autoridades
civis. Ativistas enxergam uma brecha para a impunidade, em países onde isso não
é legalmente exigido, o que inclui o sigilo da confissão religiosa, que no
Brasil é protegido pela Constituição Federal e pelo Código Penal.
Francisco
também alterou a constituição apostólica Pascite Gregem Dei (“Apascentai o
rebanho de Deus”), em 2021, passando abusos sexuais do capítulo “crimes contra
obrigações especiais dos clérigos” para “crimes contra a vida, a dignidade e a
liberdade humana” e considerando o abuso de membros de institutos de vida consagrada
e outros fiéis, que vão além de clérigos.
·
Novo papa é acusado de acobertar abusos
É na
esteira da atuação do papa Francisco, considerada insuficiente pelos ativistas,
que o SNAP lançou o Conclave Watch, uma iniciativa
global liderada por sobreviventes de abuso sexual clerical. O observatório foi
desenvolvido com base em uma análise de registros públicos, evidências
fornecidas por vítimas e denúncias de omissões dentro da Igreja. A iniciativa
avaliou o histórico de cardeais papáveis em relação à gestão de casos de abuso
sexual, utilizando critérios estabelecidos pelo decreto papal Vos estis
lux mundi, ou seja, considerando não apenas os abusadores, mas também os
clérigos que possam ter contribuído para o acobertamento de abusos.
O
objetivo central do observatório era garantir que a eleição de um novo papa
representasse um ponto de inflexão na resposta da Igreja Católica aos casos de
abuso sexual. O projeto buscava assegurar que o novo pontífice não tivesse
histórico de acobertamento e que se comprometesse, desde o início, a
implementar uma política universal e vinculativa de tolerância zero.
“Eu,
pessoalmente, e a SNAP, estamos seriamente preocupados com esse novo papa”,
afirma o presidente do Conselho da rede, Shaun Dougherty. “Há apenas quatro
semanas nossa organização apresentou seis relatórios ao cardeal Parolin, o
secretário de Estado, e o cardeal Prevost estava entre os seis primeiros,
porque sentimos fortemente que ele nunca deveria ser papa. Pessoalmente, acho
que ele não deveria nem mesmo ser cardeal.”
Segundo
a SNAP, como provincial dos agostinianos, nos Estados Unidos, Prevost teria
permitido que um acusado de abusar de menores, já impedido de celebrar missas,
residisse em uma casa dos agostinianos em Chicago em 2000. Além disso, a
proximidade com uma escola primária católica tornava a situação ainda mais
preocupante. Uma outra informação é a de que, quando Prevost era bispo de
Chiclayo, no Peru, três vítimas denunciaram um padre às autoridades civis em
2022, depois que não houve nenhum movimento em seu caso canônico apresentado
pela Diocese. Desde então, as vítimas alegaram que Prevost não abriu uma
investigação, enviou informações inadequadas a Roma e que a diocese permitiu
que o padre continuasse a celebrar missas.
“Ele
sabe quem são os padres pedófilos. Ele sabe onde eles estão. Ele tem a
obrigação de expor isso aos 1,4 bilhão de católicos no mundo”, afirma o
presidente do conselho do SNAP.
A fala
indignada tem mais um motivo: assim como muitos membros do SNAP, Shaun
Dougherty é um sobrevivente de abuso sexual clerical na infância. Embora já
tenha falado publicamente muitas vezes sobre o assunto, se emocionou a relatar
para a Agência Pública uma tentaiva de suicídio aos 24 anos e todo o
caminho para “reencontrar a alegria”, com ajuda de terapia e do ativismo.
“Engoli trezentos comprimidos. Felizmente, sobrevivi. Mas muitos dos meus
amigos não tiveram a mesma sorte. Eu os enterrei. Dez, vinte, talvez mais.
Todos vítimas. Todos sobreviventes. Todos mortos”.
O
ativista, que perdeu a mãe há um ano, revela que não conseguiu comparecer ao
velório na paróquia de sua infância, onde foi violentado repetidamente após
missas fúnebres. “Roubaram minha fé, minha inocência, minha dignidade”.
Dougherty rejeita o uso de eufemismos. “Não vamos suavizar. Não vamos dizer
‘abuso’. Estamos falando de estupro. Estupro de crianças.”
Em
2002, ele buscou o papa Francisco, então cardeal Jorge Bergoglio, arcebispo de
Buenos Aires à época, para denunciar a tentativa da Congregação Marianista de
silenciar as vítimas mediante acordos de confidencialidade. Munido de
documentos, procurou o arcebispado e foi recebido pelo secretário de Bergoglio.
“Queria saber de que lado estavam: das vítimas ou da escola que queria nos
fazer calar”, relatou. A resposta: Bergoglio nunca o recebeu pessoalmente. Em
seu lugar, Sebastián foi encaminhado ao bispo Mario Poli, que expressou apoio
institucional à escola, segundo o relato. “Foi uma resposta marcada por
arrogância e subestimação da gravidade do crime. Eu era só um jovem lutando por
justiça, e eles me deixaram claro quem detinha o poder”, lamenta.
Quando,
em 2013, Bergoglio foi eleito papa Francisco, Sebastián tornou públicas suas
tentativas frustradas de diálogo. Em mais de uma década de pontificado, afirma,
jamais recebeu qualquer contato, desculpa ou convite ao diálogo. “A Igreja
Católica na América Latina continua agindo como se fôssemos o quintal do
Vaticano, sem as mesmas exigências de transparência e justiça que vemos na
Europa”, denuncia. A Pública pediu respostas ao Vaticano sobre a
suspeita de encobrimento de abusos por parte do papa Leão 14, mas não recebeu
resposta até a publicação. Também enviamos perguntas à Arquidiocese de
Buenos Aires que não respondeu até a publicação.
·
O apelo das vítimas na América Latina
No
mesmo dia em que vimos a fumaça branca sair pela chaminé da Capela Sistina, 8
de maio, a SNAP entregou ao Vaticano uma carta aberta com princípios
de justiça que devem ser adotados pelo novo papa urgentemente, entre eles:
criação de um conselho global de sobreviventes de abusos que conte com a
colaboração da Igreja, mas que não esteja sob seu controle; adoção de uma
política de tolerância zero no direito canônico, suporte legal e formação de um
fundo de reparação às vítimas que ofereça apoio psicológico, financeiro, além
de espaços de memória, e a abertura dos arquivos secretos da Igreja.
Em
paralelo, foi apresentada à VELM (Vatican Entity for Listening and Mediation)
uma denúncia formal contra o cardeal Robert Prevost, o papa Leão 14, acusando-o
de manter padres suspeitos de abuso em atividades pastorais e de ignorar apelos
de vítimas enquanto bispo da Diocese de Chiclayo, no Peru. O documento detalha
vários casos e sugere que a omissão foi deliberada e sistemática.
Essas
revelações tornam ainda mais grave o fato de que, mesmo com diretrizes oficiais
da Santa Sé, que orienta o encaminhamento das denúncias, a aplicação dessas
normas varia fortemente entre regiões. No caso do Peru, as acusações feitas por
duas jovens contra Prevost mostram que, apesar do regimento, a omissão pode
manter impune até mesmo o mais alto escalão da Igreja. A porta-voz do SNAP
questiona a assimetria, na comparação com Estados Unidos, em que a formação de
redes contra o abuso sexual clerial avançou bastante desde que o Jornal “Boston
Globe” publicizou diversos escandalos em 2002.
“Quando
você está em um lugar onde não há esse mesmo tipo de rede de segurança, onde é
muito mais difícil processar, é muito mais difícil abrir um processo civil,
acho que a igreja tem uma responsabilidade maior com essas vítimas. E as
vítimas no Peru não devem receber tratamento desigual em relação às vítimas nos
Estados Unidos. Quero dizer, o catolicismo deve ser universal.O Vaticano não
pode controlar as leis dos Estados Unidos, do Peru, da Itália. Mas pode
controlar a lei de sua igreja. Portanto, eles não deveriam estar tratando uma
vítima nos Estados Unidos melhor do que uma vítima no Peru”.
O novo
Papa, no entanto, ainda não se pronunciou sobre o tema. E embora a Santa Sé
possua diretrizes internas, como o Vademecum, ativistas denunciam a
distância entre as normas e sua aplicação real — especialmente na América
Latina. “O fato da América Latina ser o maior continente católico do mundo
afeta muito o quanto que se consegue desconstruir a estrutura clerical e como
se lida com assuntos mais complexos”, explica Suzana Regina Moreira, mestre em
Teologia pela Pontifícia Universidade Católica (PUC) do Rio de Janeiro e
doutoranda pela mesma instituição.
“Quando
começou a explodir mais a questão dos abusos sexuais durante o pontificado do
papa Francisco, com as implementações que ele tentou colocar nos diversos
países da América Latina, foi muito lento o processo para pegar essas
diretrizes e implementar a nível nacional. A gente teve o Chile, que foi um dos
casos mais graves, a Argentina também. No Brasil, está sendo um processo
extremamente lento”.
O
relatório Justiça para os
sobreviventes de abuso sexual de crianças na Igreja Católica na América Latina, produzido pela
Child Rights International Network (CRIN), em 2019, mostra que, apesar de ser o
continente mais católico do mundo, a América Latina registra as menores taxas
de denúncia de abuso sexual clerical. “Não existem os números, porque ainda não
existe o trabalho sendo feito para coletar todos os casos que existem. Quando
eu olho até para a minha experiência, junto com comunidades ou as histórias que
eu escuto de quem atua mais em comunidades periféricas, rurais, são muitos
casos de abusos. Há um silenciamento muito forte das vítimas, das famílias das
vítimas, especialmente quando são pessoas menores, porque quando se trata de um
padre ou, pior ainda, se for um bispo, às vezes a própria família prefere que a
criança não denuncie”, explica Moreira.
Dentre
os motivos do silenciamento estaria a tamanha centralidade na figura de padres,
bispos, pastores e monsenhores como a única representatividade possível de
Cristo na Terra. Alinhada a outras questões sociais construídas a partir de
visões e valores patriarcais, o ser clerical tornou-se não apenas parte da
estrutura em um nível ritual, mas o ideário específico sobre a possibilidade de
ministrar a graça de Deus na igreja.
“O
clericalismo é essa lógica que hierarquiza, além da estrutura institucional,
hierarquiza a nível relacional humano, de qual é a opinião que o povo nas
paróquias acredita quando tem alguma dúvida de fé. É só no padre, é só no
bispo. Só eles sabem defender e dizer o que é o que a igreja ensina. E perdem
então a dimensão horizontal do que é ser povo de Deus, o que é ser igreja
enquanto comunidade”.
Para
Moreira, isto é reflexo de um processo histórico de colonização em que
missionários foram os principais agentes da evangelização. “Quando a gente
olha, por exemplo, para os Estados Unidos, sempre foi uma religião de minoria.
Não tinha o aspecto tão colonizador quanto era aqui”, explica. Essa
centralidade hierárquica e afetiva torna especialmente doloroso e confuso, para
muitos fiéis, lidar com denúncias de abusos cometidos por membros do clero.
Questionar
a conduta de um padre, para grande parte das comunidades, é questionar a
própria fé. A questão é mais complexa do que parece. “Os abusadores têm essa
dupla face. Em muitos casos eles têm realmente uma relação muito afetiva com as
pessoas. Então é óbvio que a comunidade não vai pensar que ele cometeu um
crime. Vai questionar até o máximo possível, porque tem uma relação pessoal com
essa figura”.
A
estrutura simbólica do catolicismo latino-americano, moldada por séculos de
autoridade clerical, dificulta a quebra do silêncio, mesmo quando o crime é
inegável. Um dos resultados disso é a falta de iniciativas da sociedade civil
que, no Brasil, por exemplo, não tem força suficiente para quebrar esta
barreira.
·
A ausência de dados no Brasil
No
Brasil, o cenário de abusos e estupros praticados por clérigos também é
nebuloso. O maior país católico do mundo carece de dados sistematizados, canais
transparentes de denúncia e políticas claras de responsabilização. A comparação
com outros países é gritante: nos Estados Unidos, promotores estaduais já
produziram relatórios com mais de mil nomes de padres acusados, baseados em
investigações profundas. No Brasil, nada semelhante foi sequer tentado.
“Não dá
nem para dizer que é um estágio embrionário. Simplesmente, não existe”, afirma
o jornalista Giampaolo Braga. Em parceria com o jornalista Fábio Gusmão, ele
produziu uma investigação de três anos que expôs um cenário alarmante de
negligência, falta de transparência e ausência de políticas públicas e
eclesiásticas efetivas e deu origem ao livro Pedofilia na Igreja,
lançado em 2023.
Durante
a apuração, os autores tentaram contato com diversas instâncias da Igreja
Católica, inclusive o Vaticano, em busca de respostas e dados. Após dois anos
de tentativas frustradas, a resposta oficial foi protocolar e remeteu os
jornalistas a uma comissão nacional: o Núcleo Lux Mundi, criado pela
Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), em 2019, com objetivo de
implementar as diretrizes motu proprio Vos Estis Lux Mundi, do Papa
Francisco. No entanto, o que encontraram foi desanimador.
Segundo
Braga, “não havia estrutura alguma de acolhimento de vítimas ou de cobrança das
dioceses”. Era só uma comissão de orientação, de boas práticas. Tudo ainda no
plano da vontade, sem nada efetivo sendo feito”. “Não tinha nada pronto. Era
tudo muito no plano das boas intenções”, completa Gusmão. O que explica este
cenário, de acordo com os jornalistas, é que a maioria das dioceses sequer
publica nomes de padres afastados ou expulsos por abuso.
O
trabalho alcançou 80 Dioceses e Arquidioceses, de 23 estados e do Distrito
Federal, totalizando 96 cidades. Os jornalistas chegaram a 170 nomes de padres
abusadores no Brasil, mas usaram apenas 108 no livro, destes, apenas 60 foram
condenados. “Não colocamos mais porque não tínhamos segurança jurídica. Muitos
casos já haviam prescrito ou estavam arquivados”, explica Braga. Porém, a
escassez de informações é tamanha que os jornalistas estimam que os 108 nomes
representam apenas uma pequena parte do problema. De acordo com o levantamento
dos autores, o Brasil possuía, em 2023, 27 mil sacerdotes atuando em 111 mil
igrejas.
“No
início da apuração, entrevistamos o Tim Lennon, que era o presidente da SNAP à
época. Uma das perguntas que a gente fez era: pela experiência de vocês, do
clero todo, qual é o percentual de abuso? Ele falou 10%. Aí a gente falou, mas
isso no Brasil vai dar 2,7 mil padres! A gente achou 170, botamos 108 no livro.
Tem uns 2 mil padres faltando para mais!”, afirmou Braga.
Sobre
essa diferença de tratamento entre os casos de abuso clerical ocorridos no
Norte e no Sul Global, a organização Adultxs por los
Derechos de la Infancia, criada por Cuattromo, em 2012, deu o nome de “duplo
padrão da Igreja Católica”. Países do Norte Global, como os Estados Unidos
e nações europeias, têm implementado comissões de inquérito, investigações
públicas e sistemas de indenização para vítimas, refletindo uma abordagem mais
proativa na abordagem de abusos. Ou seja, além da dor individual, há um padrão
sistêmico: o tratamento desigual entre vítimas do Norte Global e da América
Latina. Em países como Estados Unidos, Alemanha e Irlanda, comissões de inquérito,
investigações públicas e indenizações começaram a emergir após pressão social.
Já na América Latina, o caso de Cuattromo é uma exceção: o silêncio ainda é
regra.
A única
saída, defendem os autores do livro Pedofilia na Igreja, é a
transparência. Tornar públicos os processos, prestar contas à sociedade e
garantir apoio às vítimas. “A luz do sol é o melhor desinfetante”, diz Braga.
Além disso, defendem a responsabilização não apenas do abusador, mas de quem
acoberta — seja bispo, arcebispo ou funcionário da cúria. Eles propõem que a
Igreja informe regularmente o número de denúncias, publique os nomes dos
envolvidos após comprovação, colabore com a Justiça comum e ofereça apoio às
vítimas. “A vítima tem que estar em primeiro lugar. A Igreja precisa cortar na
própria carne, por mais doloroso que seja. Porque esconder é perpetuar. E,
nesse caso, perpetuar significa deixar que mais crianças sejam abusadas”,
conclui Gusmão. Shaun Dougherty cobra esta mesma transparência, a partir
do Vaticano: “O cardeal Prevost sabe quem são os padres pedófilos. Ele tem os
relatórios. E agora, como Papa, deve isso a 1,4 bilhão de católicos. Se estamos
mentindo, que abra os arquivos e prove”. A denúncia apresentada pela SNAP
reacende as discussões sobre o compromisso da Santa Sé com a justiça. Se for
ignorada, reforçará a percepção de que, mesmo com documentos formais como
o Vademecum, a estrutura da Igreja continua a proteger seus
próprios membros, inclusive quando acusados de crimes graves. “A distância
entre as normas e sua aplicação real é o que destroi a confiança”, afirma Sarah
Pearson, responsável pela comunicação da SNAP. “O Papa Leão XIV sabe o que tem
de fazer. A questão é: ele vai fazer?”
Fonte:
Por Elaine Schmitt e Evandro Medeiros, da Agência Pública

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