‘Nunca
vieram aqui’: projeto petrolífero aprovado na pandemia preocupa caiçaras
CAIÇARAS,
ATIVISTAS E pesquisadores apontam falta de diálogo no processo de
licenciamento do campo de Bacalhau, megaprojeto de exploração de petróleo da
estatal norueguesa Equinor na Bacia de Santos. Uma única audiência pública foi realizada
de forma virtual em agosto de 2021, ainda durante a pandemia de Covid-19. Em
2025, a multinacional pretende iniciar a extração no local.
O campo
de Bacalhau está localizado a 185 quilômetros da costa de Ilhabela (SP) e
abrange o litoral Norte de São Paulo e Sul do Rio de Janeiro. Com investimento
de R$ 35,8 bilhões, o empreendimento é operado pela Equinor (40%), em parceria
com a ExxonMobil (40%), a Petrogal Brasil (20%) e a Pré-Sal Petróleo,
representante da União responsável pela gestão de contratos de partilha.
O
projeto pretende extrair até 220 mil barris do pré-sal por dia, a partir de um
reservatório a 2 mil metros de profundidade. A produção representaria 6,5% do
total de petróleo produzido pelo Brasil em 2024, quando se extraiu 3,3 milhões de
barris diariamente,
segundo dados da ANP (Agência Nacional do Petróleo, Gás Natural e
Biocombustíveis).
A
Equinor obteve a licença de instalação do Ibama em 2022. O navio-plataforma de
armazenagem e transporte de petróleo e gás natural chegou ao campo de
Bacalhau em fevereiro deste ano. O petróleo só poderá começar a ser extraído
após o Ibama emitir a licença final de operação – o que ainda não foi feito,
segundo consulta pública no site do órgão ambiental.
Gilda
Nunes, do Instituto Ilhabela Sustentável, participou da audiência pública
virtual e apontou a superficialidade do debate. “Houve pouco tempo para
intervenções e a organização foi inadequada. Mesmo após pedidos para uma nova
audiência presencial, o Ibama não atendeu à demanda”, contou.
Entrevistados
pela Repórter Brasil e Danwatch, organização de mídia dinamarquesa parceira nesta
investigação, avaliam que o formato limitou a presença de comunidades
tradicionais sem acesso à internet ou familiaridade com plataformas digitais.
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Pescadores e caiçaras desconhecem empreendimento
No
galpão da Associação de Pescadores de Boiçucanga (APB), em São Sebastião (SP),
um panfleto da Equinor divide espaço com outros materiais de divulgação da
Petrobras e da prefeitura. O folheto da estatal norueguesa anuncia que a
petrolífera faz visitas a “instituições identificadas nos municípios
integrantes da área de abrangência das atividades de óleo e gás no campo de
Bacalhau” para mapear potenciais afetados pelo empreendimento.
“Que eu
saiba não veio ninguém da Equinor”, disse o diretor da Associação, Luiz Carlos
dos Passos Filho, caiçara da terceira geração de pescadores. Ele desconhecia o
projeto e só ficou sabendo por meio da reportagem. Outro integrante da
Associação, Alexandre Morelo, diz ter ouvido falar apenas pela imprensa. “Eles
[Equinor] nunca vieram aqui”.
Em
Ilhabela (SP), a reportagem visitou três comunidades caiçaras acessíveis apenas
por barco. Sem querer se identificar, moradores também afirmaram desconhecer o
empreendimento. Um deles descreveu um “sentimento de invisibilidade” por não
ter sido consultado.
À Repórter
Brasil, a Equinor afirmou que seguiu todos os protocolos estabelecidos pelo
Ibama, incluindo a realização da audiência pública virtual, determinada pelo
órgão em função do estado de calamidade pública durante a pandemia de Covid-19.
Segundo a empresa, a audiência durou 9 horas e 212 perguntas foram respondidas.
Leia a resposta, na íntegra, aqui.
Também
procuradas, a Petrogal disse que, por ser um parceiro minoritário no consórcio
do projeto Bacalhau, não responderia aos questionamentos, encaminhando-os ao
operador responsável, a Equinor. Já a ExxonMobil não respondeu aos
questionamentos enviados.
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Equinor mascarou risco de derramamento, diz oceanógrafo
Em um
parecer técnico de 2020, ao qual a Repórter Brasil teve acesso, o
Ibama apontou a necessidade de complementação de informações no EIA (Estudo de
Impacto Ambiental) apresentado pela Equinor. O órgão ambiental exigiu que a
empresa comprovasse que seus estudos simulavam corretamente o comportamento do
mar na região das bacias de Santos e Campos.
Apesar
dos apontamentos, o Ibama concedeu a licença de instalação do projeto em 2022.
A reportagem questionou o órgão sobre o cumprimento das exigências feitas à
Equinor, mas não obteve resposta até o fechamento deste texto.
Para
Carlos França, oceanógrafo formado pela Universidade de São Paulo (USP) e
fundador do Instituto de Cultura Oceânica, em São Sebastião (SP), persistem
falhas no EIA da Equinor. Segundo ele, a empresa subestima em aproximadamente
30% a força das correntes oceânicas que poderiam transportar o óleo até a costa
em caso de vazamento. “Esses e outros erros comprometem o resultado final e
mascaram os riscos reais de que o óleo atinja manguezais, praias e áreas de
pesca artesanal”, afirmou.
Outro
ponto crítico apontado por Carlos França envolve os derivadores lagrangianos –
boias equipadas com sensores que flutuam ao sabor das correntes e ajudam a
entender como substâncias se deslocam no oceano. Segundo o estudo da própria
Equinor, três dos 25 derivadores lançados no mar chegaram à costa Sudeste do
Brasil. Para Carlos França, isso demonstra que há caminhos pelos quais um
vazamento de óleo poderia atingir o litoral.
O
problema foi apresentado à Equinor por Carlos França após a audiência pública
virtual. A petroleira respondeu rejeitando a possibilidade de óleo na costa e
alegou que os tempos de deslocamento registrados – entre 28 e 184 dias – eram
longos demais para que o óleo resistisse sem se degradar.
Luiz
Carlos dos Passos Filho, da Associação de Pescadores de Boiçucanga, assustou-se
diante da possibilidade de um derramamento de óleo atingir a costa. “Seria um
desastre para nós”, afirmou à reportagem.
Em
resposta à reportagem, a Equinor afirmou que utilizou uma modelagem de
derramamento de óleo seguindo todas as exigências legais. O banco de dados
utilizado, diz a empresa, incluiu informações coletadas durante anos em
campanhas, projetos ambientais e científicos e por meio das boias instaladas no
campo de Bacalhau. “O relatório de modelagem de óleo foi avaliado e aprovado
pelo Ibama como parte do processo de licenciamento”, disse a petroleira. Leia a
resposta completa da companhia aqui.
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Região abriga 1,3 mil espécies ameaçadas
Segundo
o parecer técnico do Ibama, uma das Unidades de Conservação afetadas pelo
empreendimento é o Refúgio de Vida Silvestre do Arquipélago de Alcatrazes, uma
pequena ilha no litoral paulista que abriga mais de 1,3 mil espécies, cem delas
ameaçadas.
Em um
rápido passeio de barco no entorno do arquipélago, a reportagem encontrou a
toninha, um tipo de golfinho considerado criticamente ameaçado de extinção.
“Temos essas e outras espécies ameaçadas que encontraram aqui um lugar seguro
para reprodução”, afirmou Marina Marques, pesquisadora do VIVA Instituto Verde
Azul, com sede em Ilhabela (SP). “O equilíbrio ambiental estaria ameaçado no
caso de um vazamento de óleo”, comentou.
Monitoramentos
recentes identificaram 27 espécies de baleias na Bacia de Santos, 30% delas
ameaçadas de extinção. Os dados são de um estudo do Instituto VIVA enviado ao
Ibama no decorrer do processo de licenciamento do projeto.
Maria
Emília Morete, doutora em Ecologia pela USP que assina o estudo, avalia que a
análise de impacto da Equinor minimiza os efeitos sobre os cetáceos ao
classificá-los como “reversíveis” e de “baixa magnitude”. Entre os impactos
subestimados, segundo a pesquisadora, estão o risco de colisão com embarcações,
a poluição sonora que interfere na comunicação das baleias e a ausência de
medidas compensatórias específicas. “As atividades do campo Bacalhau ocorrerão
por cerca de 35 anos. Algumas espécies de cetáceos têm longevidade menor que 35
anos! Gerações inteiras podem ser impactadas”, pontuou no documento.
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Dinheiro para o fundo noruguês
O campo
de Bacalhau, descoberto pela Petrobras em 2012, passou ao controle da
norueguesa Equinor após mudanças na legislação durante o governo Temer. A
partir de 2016, empresas estrangeiras puderam operar blocos do pré-sal, antes sob controle
exclusivo da estatal brasileira.
A
Equinor é uma empresa estatal de economia mista da Noruega. O governo norueguês
é dono de 67% das ações. Parte dos lucros da Equinor – e de outras empresas de
petróleo e gás com sede no país – abastecem o Fundo Soberano da Noruega, que tem US$ 1,8 trilhão em
ativos sob sua gestão.
O fundo investe globalmente na transição energética, em projetos verdes e em
infraestrutura sustentável.
Apesar
dos esforços da Noruega para reforçar sua imagem como líder global no
enfrentamento das mudanças climáticas, a Equinor anunciou, em fevereiro de
2025, que cortaria de R$ 10
bilhões para R$ 5 bilhões os investimentos em projetos de baixo carbono e
renováveis ao longo dos próximos dois anos.
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MPF recorre contra decisão que permite dragagem do rio
Tapajós (PA) sem estudos ambientais e consulta prévia
O
Ministério Público Federal (MPF) recorreu contra uma decisão judicial que negou
pedido urgente para impedir o estado do Pará de licenciar ou autorizar obras na
hidrovia do rio Tapajós – especialmente dragagens – sem a realização de estudos
ambientais completos e Consulta Prévia, Livre e Informada (CPLI) aos povos e
comunidades tradicionais.
O
recurso, apresentado no último sábado (10) ao Tribunal Regional Federal da 1ª
Região, em Brasília (DF), questiona a fundamentação de decisão da 2ª Vara
Federal de Santarém (PA), que considerou inexistentes os requisitos de urgência
e risco de dano.
“A
decisão desconsiderou as graves violações aos direitos socioambientais
perpetradas pelo estado do Pará e pelo Departamento Nacional de Infraestrutura
de Transportes (Dnit), bem como ignorou os riscos irreversíveis que podem advir
da continuidade da dragagem no rio Tapajós sem as devidas salvaguardas
ambientais e sociais”, alerta o procurador da República Vítor Vieira Alves.
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Riscos socioambientais
Segundo
o MPF, a decisão ignorou documentos técnicos do Instituto Chico Mendes de
Conservação da Biodiversidade (ICMBio) e Instituto Brasileiro do Meio Ambiente
e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) que apontam graves riscos ambientais
decorrentes da dragagem no rio Tapajós, como:
# liberação
de metais pesados (como mercúrio) e sedimentos, comprometendo a qualidade da
água, a vida aquática e representando um risco direto à saúde das populações
que consomem essa água e seus peixes;
# prejuízo
às populações de peixes e outros organismos aquáticos (base da cadeia
alimentar) devido à turbidez da água e alterações no ecossistema, afetando
diretamente a pesca e a segurança alimentar das comunidades ribeirinhas e
indígenas que dependem desses recursos; e
# destruição
e perturbação de habitats cruciais para a reprodução, alimentação e migração de
espécies ameaçadas, como botos (rosa e tucuxi), peixe-boi amazônico, quelônios
amazônicos (tartarugas) e aves aquáticas.
Demais
argumentos do MPF – Outros argumentos do MPF no recurso incluem:
# a
decisão não considerou os relatos de lideranças de povos e comunidades
tradicionais potencialmente impactados, ouvidos em audiência;
# a
Justiça Federal não se manifestou sobre a violação ao direito dos povos e
comunidades tradicionais à CPLI, garantido pela Convenção nº 169 da Organização
Internacional do Trabalho (OIT);
# a
decisão inverteu a lógica do princípio da precaução ambiental ao exigir que o
MPF demonstrasse o dano concreto da dragagem, quando caberia ao empreendedor –
o Dnit – comprovar a ausência de impactos significativos, contrariando a Súmula
nº 618 do Superior Tribunal de Justiça (STJ);
# há
uma contradição na decisão quando a Justiça Federal em Santarém afirma que não
há perigo na demora, mas reconhece a existência de um licenciamento em curso
para dragagens anuais, o Plano Anual de Dragagens de Manutenção Aquaviária
(Padma), o que possibilitaria a retomada das operações de dragagem sem os
devidos estudos e consulta;
# o MPF
contesta a justificativa de ‘emergência’ para uma dragagem anterior, afirmando
que a obra foi realizada durante a cheia e que o argumento de emergência é
usado para contornar obrigações legais;
# é
inaceitável que o Dnit e o estado do Pará tenham deliberadamente ignorado por
anos a necessidade de planejar adequadamente a manutenção da hidrovia do rio
Tapajós para depois alegar ‘emergência’ como justificativa para atropelar os
direitos fundamentais de povos e comunidades tradicionais e as salvaguardas
ambientais constitucionalmente previstas;
# o
recurso destaca que a dragagem viabiliza o escoamento de mercadorias agrícolas,
integrando um corredor logístico que contribui para o desmatamento e a crise
climática, e que a decisão ignora os impactos sinérgicos e cumulativos, ou
seja: impactos que se somam e se reforçam com o tempo, ficando cada vez
maiores.
O MPF
pediu que a decisão da Justiça Federal em Santarém seja revista e reiterou a
necessidade da realização do Estudo de Impacto Ambiental e Relatório de Impacto
Ambiental (Eia/Rima) – incluindo estudos específicos de impactos a povos
indígenas e a comunidades quilombolas– e da CPLI a indígenas, extrativistas,
pescadores artesanais, ribeirinhos, quilombolas e demais povos e comunidades
tradicionais potencialmente afetados.
Agravo
de Instrumento nº 1016216-77.2025.4.01.0000
Fonte:
Reporter Brasil/MPF-Pará

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