segunda-feira, 19 de maio de 2025

MASSACRE DE PARAISÓPOLIS: “As famílias querem entender por que a polícia fez isso”

Desirèe Azevedo é historiadora de graduação e antropóloga através de mestrado e doutorado. Entrou por concurso em 2019 ao Centro de Antropologia e Arqueologia Forense (CAAF) da UNIFESP tendo assumido, logo em seguida, o projeto Os 9 de que Perdemos, que envolve pesquisas acerca do Massacre de Paraisópolis 1 e a própria investigação defensiva que permitiu com que o caso não caísse no esquecimento. Mas desde 2017 já estava em contato com o CAAF, quando começou um pós-doutorado na UNIFESP Guarulhos em que estudava justamente o trabalho do órgão sobre a Vala de Perus, o Grupo de Trabalho Perus (GTP) que fez as tentativas de identificação de alguns daqueles mortos.  “O que me trouxe para cá foram os estudos da violência de Estado de uma forma mais ampla. Tenho um mestrado sobre o exílio nos tempos da ditadura, um doutorado sobre o movimento de familiares de mortos e desaparecidos políticos. E foi fazendo a minha pesquisa de pós-doutorado, também sobre esse tema, que me aproximei do CAAF pela primeira vez”, conta a pesquisadora. 

<><> Leia a entrevista na íntegra a seguir:

•        Ocorre o Massacre da DZ7 em primeiro de dezembro de 2019 e rapidamente se difunde a versão dos policiais, de que teria havido tumulto promovido pela multidão e pisoteamento das vítimas. Como você e o CAAF aparecem nessa história?

Logo que eu entro no CAAF em 2019, muitas coisas estavam acontecendo aqui dentro com a expansão de pesquisas e financiamentos. Existiam duas pesquisas estabelecidas: o Grupo de Trabalho Perus (GTP) e sobre os Crimes de Maio. Por conta dessa segunda pesquisa, logo que houve o Massacre de Paraisópolis, basicamente na semana seguinte, fomos procurados por duas outras instituições: o Condepe, que à época tomou a frente das comissões, reuniu os familiares, montou uma comissão para acompanhar a investigação oficial da Polícia Civil e buscou o nosso apoio técnico; e a Defensoria Pública, que começou a acompanhar os familiares e a investigação do caso.   Com um objetivo diferente do Condepe, a Defensoria também procurou nosso apoio técnico. Queria realizar uma investigação defensiva. E foi através dessa aproximação que entramos no caso. Eu estava a um mês no CAAF, tinha acabado de entrar e pedi para tomar a frente do caso.  Cerca de 15 dias após o ocorrido, ainda em dezembro de 2019, começamos a atuar no caso. De lá pra cá outros projetos vêm se desenvolvendo aqui no CAAF, diferentes desse, com objetivos diferentes, mas que têm como ponto de contato a produção de conhecimento nessa relação entre universidade e movimentos sociais. Em geral são projetos que vão abordar, de uma ou outra maneira, a violência de Estado.

•        Em termos de violência de Estado, esse é um caso que parece ter chances de viver um desfecho diferente da maioria e, sem dúvidas, a investigação defensiva cumpriu um papel importante nesse sentido. O que pensa a esse respeito?

De fato, esse é um caso sui generis. E é diferente da maioria justamente pelo início dessa atuação. O que vai impactar as investigações e os desdobramentos do caso em si é o fato de as instituições terem tomado um papel logo do primeiro momento, para além da Polícia Civil que é a instituição responsável pela investigação. Isso é derivado do grande escândalo e da grande comoção pública gerada na época pela quantidade de vítimas. Ou seja, foi um crime com nove vítimas, todas elas jovens, alguns muito jovens – cinco deles eram menores de 18 anos – e no contexto de uma atividade de lazer. Crimes com três vítimas já são considerados massacres ou chacinas, por exemplo. Tudo isso criou muita comoção na época.  Falamos de uma chacina em contexto de operação policial, que tinha uma relação pessoal-política muito forte com o governador da época, o João Doria. Explicamos isso no nosso último relatório Pancadão: história da repressão dos bailes funks de rua da cidade de São Paulo. Mostramos como a política repressiva a esses bailes funks de rua foi algo que foi sendo construído ao longo da última década, dos últimos 12 anos, pelo menos, e como o Doria abraçou essa política, trazendo-a ao seu capital político de então. Ou seja, deixou de ser uma política de segurança tocada pelas polícias e pela Secretaria de Segurança e passou a ser uma política pública abraçada pelo governador.  O Doria é um cara que se elege prefeito e depois governador prometendo acabar com os pancadões e ele faz dessas operações pancadão uma política pública – a única para esse tema na época. Isso faz com que o massacre atinja a figura dele para além da figura de político, atinge o pessoal. Essa pancada midiática compõe o conjunto de fatores que fizeram com que os olhares se voltassem para o caso à época, tanto por parte da imprensa como das instituições.   O próprio Doria e a Secretaria e Segurança Pública (SSP-SP) se movimentaram para que o caso fosse para o DHPP (Delegacia de Homicídios e Proteção da Pessoa) e não se encerrasse na delegacia, com por exemplo um auto de resistência ou uma justificativa de autodefesa. A seguir, o Ministério Público vai indicar uma pessoa para acompanhar o caso – claro que isso é de praxe, sempre acontece, mas foi feito sob holofotes. E a indicação veio direto do Tribunal do Júri, pressupondo que poderia ser um caso de homicídio – o que é o correto. A Defensoria Pública, o Condepe e diversos mandatos de vereadores e deputados também pressionaram. Todos esses olhares fizeram toda a diferença para a própria investigação oficial.

Outra coisa importante de ser dita tem a ver com a investigação defensiva. Diferente de uma contra investigação, que é realizada por pessoas que estão fora do escopo das instituições do Estado e, portanto, do espaço de produção de evidências e verdades jurídicas, a investigação defensiva está nesse espaço. No caso de Paraisópolis a Defensoria Pública passou a acompanhar os familiares das vítimas e o território – considerando que toda a comunidade foi afetada pelo episódio.   E é para a comunidade que os defensores vão logo nos primeiros dias. São eles que vão conseguir as evidências produzidas pelas testemunhas. Sobretudo fotos e vídeos de celulares e câmeras de segurança, além de relatos dos presentes.  A Polícia Civil também faz  sua investigação. Também vai ao território, coleta e produz algumas evidências ao longo do período. Mas a Defensoria faz o mesmo trabalho, e nesse caso chamamos “investigação defensiva” porque tem o sentido não de acusar, embora nesse caso acabe virando uma acusação, mas de defender o direito das vítimas – no caso os familiares dos mortos e a comunidade.  Então a Defensoria Pública vai ao território. Colhe áudios, fotos e vídeos feitos por testemunhas e começa a reunir essas testemunhas. Todo esse material será apresentado ao delegado responsável pela investigação oficial. O delegado à época, e isso pode ter a ver com uma característica pessoal dele ou com a comoção pública em torno do caso, vai aceitar esse material e incorporá-lo à investigação oficial. Então, todo o material com o qual a gente trabalha faz parte da investigação oficial da Polícia Civil, seja o produzido pela polícia ou o produzido pela Defensoria.  As testemunhas são sobreviventes. Estavam lá e poderiam ter morrido. Essas pessoas foram ouvidas na presença do delegado, algumas delas do Ministério Público. Foi tudo feito dentro dos marcos da investigação oficial, o que é importante, porque em geral há uma desvalorização desse tipo de material conseguido e produzido por fora da investigação policial.  No Brasil temos a importância do inquérito policial como elemento central na construção da verdade jurídica e os legistas e peritos, aqueles que têm conhecimento técnico sobre as evidências são pessoal oficial, ou seja, vinculados ao Estado e à Secretaria de Segurança Pública, o que lhes dá a fé pública e os fazem ser tidos como neutros. Geralmente, o que dizem esses peritos policiais é mais levado em consideração, mesmo em casos em que agentes do Estado sejam os acusados. E nós, no CAAF, passamos por esse problema. Pois mesmo usando tudo o que está documentado na investigação nossa palavra é sempre colocada sob dúvidas e questionamentos pelo fato de não sermos peritos oficiais.

•        Em 2023, quando começavam as audiências de instrução, entrevistei o Dmitri Salles, à época presidente do Condepe. Segundo seu relato, testemunhas confirmaram que a ação policial foi motivada por vingança após o assassinato de um agente na região. Nesse sentido vemos um padrão de punições coletivas a comunidades inteiras nesses casos de vingança. Temos o Massacre de Osasco e Barueri que completa 10 anos em agosto e mais recentemente as operações Verão e Escudo na Baixada Santista, para ficar em dois exemplos, que começaram com semelhante pretexto. O que isso dirá a respeito da atuação da polícia e do histórico processo de exclusão social e econômica a que essas comunidades são submetidas?

Temos uma questão histórica em São Paulo, mas parece que mudou um pouco a mentalidade após as operações Escudo e Verão e a figura do Tarcísio. A política também tem sua parte nessa situação, mas me parece que a gente tem resolvido só agora olhar para o problema das operações policiais. Sobre Paraisópolis, as pessoas que estavam no local e a comunidade nos contam que o massacre teve a ver com a morte do sargento Ronaldo Ruas e essa morte desencadeou, na época, no dia seguinte da morte, uma operação saturação.  ‘Operação Saturação’ é um nome genérico usado em São Paulo desde 2005. Perguntamos para a polícia desde quando havia esse tipo de operação e não souberam informar, mas nossa pesquisa indica que é desde 2005 e que, curiosamente ou não, a primeira foi realizada em Paraisópolis. Batizada de “Operação Paraisópolis”, tornou-se uma espécie de modelo a ser replicado nas outras periferias. Vimos aí a concepção de um modelo de policiamento ostensivo usado, na maioria das vezes, nas periferias. São poucos exemplos fora das periferias, e entre eles estão as operações realizadas na região chamada de ‘cracolândia’.  Isso comprova que é um tipo de policiamento voltado para determinados territórios e que tem, em termos operacionais, o cercamento do território e o redirecionamento de agentes de diversos batalhões para fazer a ronda ali. Ou seja, não serão apenas os policiais locais na operação, mas agentes de várias regiões, fazendo referência ao termo “saturação”, que ilustra justamente a ideia de encher, saturar o território de policiais, e esses policiais vão ter geralmente uma ação fiscalizadora que inclui fazer revistas e abordagens de pessoas, carros e casas.   Mas quando é feito esse redirecionamento de policiais de outras áreas, acontece um fenômeno que é o desconhecimento daquele policial a respeito do território, das pessoas que o habitam e especialmente dos criminosos que habitam o território (policiais que operam todo dia no mesmo território já sabem quem são os ‘bandidos do bairro’). Todo mundo acaba virando suspeito. E o tratamento que a polícia dispensa aquelas pessoas que elas sabem que são criminosos, que é brutal, vai ser dispensado sobre toda a comunidade porque o policial de fora não sabesaber quem é quem.   Esse redirecionamento de agentes é uma estratégia de lidar com as operações policiais, que torna muito recorrente a ocorrência de abuso e brutalidade policial nesse contexto, afora o fato de que o próprio trânsito do território fica impedido pela ação.

•        Pensando em bailes funk e pancadões como um todo, notamos que a partir do final dos anos 90 elementos da cultura periférica começaram a ter mais espaço na imprensa tradicional e na indústria cultural. No entanto, ainda assim são tratados de forma marginalizada e recebem das polícias geralmente esse tipo de abordagem violenta. Por que tanta perseguição ao lazer e à cultura das periferias mesmo com uma maior entrada desses setores nos meios de comunicação e nas vidas da própria classe média?

Pela lógica, a gente imaginaria que o fato de o funk ter rompido barreiras culturais, de preconceito, de discriminação de classe e raça – e também de mercado porque hoje o funk lucra horrores –, que o complemento lógico disso seria ter uma maior aceitação nos territórios. Mas são questões diferentes.   Quando estamos falando dos bailes funk nos territórios, estamos falando de cultura e mercado, mas sobretudo de direito à cidade. Estamos falando de jovens negros e periféricos que estão nas ruas exercendo o seu direito à cidade, construindo ao mesmo tempo sua identidade e a própria cidade. Isso tem a valer com as formas de ocupação da rua e vale para todo mundo, desde os jovens do baile funk até os coroas do samba.  E aí entram algumas coisas. Tem a discriminação em relação a essa população que ‘incomoda’ quando exerce seu direito à cidade e tem também disputas pelo território e pelo mercado. Quando pensamos nos bailes de rua que acontecem nas periferias, o que se levanta como impeditivo ou problemas legados às suas realizações têm a ver com ‘desordem urbana’. São problemas que existem quando há qualquer forma de lazer nas ruas, qualquer uma. Temos problemas de poluição sonora, de criar trânsito, de limpeza urbana, de saúde pública – com consumo de álcool, cigarros e drogas – e uma série de problemas que vão acompanhar a realização dessas atividades.  Mas essas atividades não criam apenas problemas. Elas também criam uma série de oportunidades. Em primeiro lugar o exercício do direito ao lazer, à diversão e à cultura, que são direitos básicos de cidadania. Além deles cria-se oportunidades de mercaos, comércios e profissões. Temos essas duas faces, mas quando determinados setores vão falar sobre os eventos de rua só irão se referir aos problemas que podem causar. O papel do governante é olhar com isonomia para isso, ou seja, olhar para essas atividades e buscar formas de balancear o que há de bom e de ruim. É basicamente o que fazem quando é o próprio poder público que organiza a atividade, como a Virada Cultural por exemplo.   Mas quando o poder público se exime de negociar esse tipo de situação, outros setores vão se colocar politicamente como mediadores, pois precisam de solução uma vez que parte da população fica incomodada com esse tipo de evento. 

Em São Paulo, geralmente esse vácuo é preenchido por pessoas ligadas à PM, sejam agentes de fato, atuando como policiais, seja por meio de representantes da corporação que ocupam espaços nas instituições de Estado. E nos dois casos o olhar é disciplinador, pois esse é o olhar da polícia. O objetivo é estabelecer a ordem diante das reclamações de parte da população e da inação do poder público, o que aumenta o poder da polícia no território na medida em que um poder foi repassado à ela por projeto de lei que regula a emissão de ruídos sonoros por veículo: o de fazer esse tipo de fiscalização à sua maneira. E bem, bailes funk de rua são basicamente feitos por sons automotivos.  Paraisópolis é uma favela que tem certa centralidade periférica, é um tipo de “centro da periferia” pois oferece uma série de serviços para as pessoas da região que muitas vezes não existem em outras favelas. As pessoas vão à Paraisópolis para acessar esses serviços, então tem muito comércio, muita ONG, muita atuação do poder público. Também tem muita disputa pelo solo, pelo território, pois é uma favela que não vai ser deslocada e vem sendo urbanizada ao longo dos últimos 20 anos. Então há toda uma disputa em torno do bairro que é mercantil e diz respeito a economia, a ganhos, a quem vai ocupar aquele lugar, e a polícia participa. Militariza essa disputa atuando em favor de determinados interesses, como por exemplo, quando tentam fechar os bailes funk na favela de um jeito e, no Morumbi, ali do lado, se tem algo semelhante na rua vão atuar de uma outra forma.

•        Em 2 de dezembro de 2019, horas depois do massacre, os corpos dos nove jovens assassinados ainda estavam quentes quando o então governador João Doria deu uma coletiva de imprensa ao lado do seu secretário de segurança pública e do comandante-geral da PM reiterando a versão dos policiais que depois foi refutada pela investigação defensiva conduzida pelo CAAF e pela Defensoria. Acredita que no final das contas as operações contra os bailes transformam-se numa espécie de showbizz policial-eleitoral?

Você comentou dessa coletiva de imprensa e nós a citamos diversas vezes e em diversos materiais que produzimos porque ela é muito chocante e repete diversos padrões. Mas é bom falarmos sobre ela porque não podemos perder a capacidade de nos indignar com isso.  Foi horas depois do massacre. A investigação apenas começava e ainda ia demorar até que desse um retorno. A única coisa que se tinha naquele momento era a narrativa dos policiais envolvidos. Considerando o resultado, ou seja, as nove pessoas mortas naquela ação, é inadmissível que a cadeia de comando daqueles policiais vá para a televisão repetir a narrativa oferecida pelos agentes que começavam a ser investigados naquele mesmo dia. O que compete a essas autoridades, nesses casos, é dizer que o ocorrido está sob investigação e o que os policiais envolvidos alegaram que não devia sequer ter sido vocalizado por essas autoridades, que não sabiam o que de fato aconteceu.  Ao repetir a narrativa, estão de certa maneira confirmando e passando a ideia de que foi o que aconteceu de fato. Mas é preciso relativizar, pois trata-se dos agentes envolvidos no episódio de letalidade. Obviamente há situações de letalidade em que os policiais exercem seu direito à defesa, quando há trocas de tiro por exemplo. Mas esse não foi o caso, então antes de colocar qualquer narrativa era necessário que primeiro houvesse a investigação. Não dá para partir do pressuposto de que um policial envolvido num caso de letalidade esteja dizendo toda a verdade sobre o caso em que participa. Isso precisa ser o ponto de partida de uma investigação, não o seu fim. Especialmente quando há vidas perdidas.  Me parece que ao fazer isso há uma espécie de estímulo à letalidade que passa pela perspectiva da impunidade. A cadeia de comando, no fim das contas, termina no governador e no secretário, que também são chefes dos investigadores. Quando há um respaldo desse, que tipo de recado chega para outros PMs e mesmo para policiais civis incumbidos de investigar a letalidade? É uma forma de anuir com esse comportamento e dizer que não há necessidade de rigor na investigação. 

Isso me faz pensar que existe um papel que a polícia cumpre na contenção e controle social, na militarização desses conflitos entre diferentes grupos sociais. E se ela atua nessa contenção, há uma anuência com a atuação desses policiais que irá reverberar no sistema de Justiça de muitas formas. Encontramos, no fim das contas, uma estrutura que garante essa impunidade. Recentemente vimos numa pesquisa que só 2% dos policiais que cometem crimes são condenados.  E nesse aspecto há ainda o possível medo do Tribunal do Júri de decidir sobre a vida de um policial. Há uma percepção generalizada da sociedade do tamanho do poder que esses policiais têm nas ruas a partir dos abusos e excessos que cometem. E isso é ignorado pelo sistema de Justiça. E o direito penal não dá conta, porque falamos de uma violação de direitos humanos, não apenas de crimes individuais.  No caso de Paraisópolis falamos de uma comunidade que convivia com operações fazia um mês, que tinha toque de recolher apesar desse conceito não existir na legislação. Então não há como explicar a motivação do crime senão por essa disputa territorial e o papel que a polícia exerce nele. Os nove jovens foram mortos nesse contexto, sem dúvida não foram pessoalmente tornados alvos, mas estavam no território-alvo.

•        Voltando à investigação defensiva, qual a importância da presença de familiares das vítimas ao longo desse processo?

Falamos de um caso de violação de direitos humanos em que as pessoas estão profundamente chocadas, tristes, revoltadas, indignadas. Essa foi uma situação na qual não foi um civil ou um indivíduo qualquer que provocou a morte, mas um agente do Estado, que em tese, deveria proteger essas pessoas. Esse é um fator que coloca a inaceitabilidade do caso e dificulta o luto porque a pessoa se sente desprotegida nessa situação.   A Fernanda, irmã do Dennys Guilherme, é de uma família negra. O filho dela é um rapaz negro, o irmão dela mais novo também, e a morte do Denis não se encerra nela mesma porque se desdobra em várias coisas, inclusive na desconfiança em relação aos agentes policiais e no medo de que algo parecido ocorra com outro ente querido – o filho.   Nesses casos as pessoas precisam muito de ações de reparação dessa violência e dessa dor. Eu acredito que a participação dos familiares nesses casos tem muitas dimensões. Uma das mais importantes é a reparação e a própria tentativa de conduzir um processo no qual os direitos à verdade, à memória e à justiça sejam respeitados. Nesse sentido, nosso trabalho tinha como objetivo, de alguma maneira, auxiliar os familiares na garantia desses direitos.  Não tem como a pessoa se sentir tranquila e realizar o seu luto pacificamente se ela não sabe o que aconteceu com o seu parente. Nesse caso era inescapável o fato de que os familiares se envolveriam. Eles estavam absolutamente em dúvida sobre o que tinha acontecido. Afinal de contas, naquela madrugada eles foram chamados para ir em busca dos seus entes queridos que saíram para uma festa e não voltaram. Os familiares então vão buscar seus corpos mortos e esses corpos, o que eles veem ali, não bate e não combina com o que os policiais estão dizendo que aconteceu. Eles vão à comunidade, ouvem as pessoas e, novamente, aquilo não combina com o que os policiais estão dizendo que aconteceu.  Foi a partir de uma necessidade visceral que esses familiares passam a fazer perguntas, todas muito claras, objetivas, coerentes. E nós, para além das perguntas que elaboramos, ao trabalharmos com eles nesse caso, buscamos responder as suas questões. Era muito importante responder àquilo que eles colocavam na tentativa de contribuir com a resolução do caso e o direito à verdade dessas pessoas.

Entre as perguntas elaboradas pelos familiares que foram centrais para a investigação está a questão do pisoteamento. Isso partiu deles desde o primeiro momento, e de vários deles antes mesmo de se conhecerem. Se olharmos vídeos das famílias na saída do IML, diversas delas estão questionamento a versão do pisoteamento. A Fernanda diz isso ao profissão repórter. O Danylo (irmão do Denys Henrique) mostra ao vivo para os Jornalistas Livres a roupa do irmão sem marcas de pisoteamento. Eles que foram trazendo essa dúvida. Também partiu deles o questionamento em relação ao porquê disso tudo. Especialmente depois que se descobriu que não houve agressão por parte do público, nem socorro às vítimas. As famílias querem entender por que a polícia fez isso.

•        Há uma real expectativa de que o caso vá para o júri ao final da fase instrução que ainda se arrasta ao longo desse ano? O que está em jogo com uma possível punição aos agentes envolvidos e que mensagem enviaria ao restante da sociedade?

Não sou uma pessoa exatamente otimista, mas tenho muita convicção de que esse caso vai a júri. É um caso que gerou muita repercussão e gera uma mobilização social e uma produção de conhecimento muito grande a seu respeito. Tem muita prova, muita prova.   Não tem tanta testemunha por conta de uma situação recorrente em casos de letalidade policial: as pessoas temem. Boa parte das testemunhas que deram depoimento num primeiro momento na delegacia já não apareceram em juízo. Mas têm algumas testemunhas e muitas provas. Como há muitos elementos que indicam a participação dos policiais, acho muito difícil que o juiz assuma para si a tarefa de decidir sobre o caso. Acho mais provável que queira deixar que a sociedade, por meio do júri, tome a decisão.  Já foram ouvidas as famílias e as testemunhas de acusação. Agora estão terminando de ser ouvidas as testemunhas de defesa e não são muitas que têm algo para dizer dos fatos. Boa parte delas são testemunhas de contexto, ou seja, pessoas da própria polícia que vão falar sobre o contexto de Paraisópolis e uma série de outros elementos. Como testemunhas do fato estão apenas policiais que participaram da ação, mas não foram acusados. Policiais que, a meu juízo, poderiam ser réus nesse processo. Tiveram ainda duas testemunhas periciais da própria PM. Mas não tiveram testemunhas do DHPP, que concluiu a investigação como homicídio culposo (quando não há intenção de matar) com dolo eventual (quando os policiais sabiam da possibilidade de resultado morte e mesmo assim continuaram a ação). Além disso, o MP discordou do delegado, oferecendo a denúncia por homicídio doloso, compreendendo que foi dolo eventual.  Agora devem ter mais algumas audiências de instrução ao longo do ano. Depois disso o juiz tem três decisões para tomar. A primeira seria considerar que não houve crime e arquivar o caso: acho pouco provável.  Também pode dizer que houve um crime culposo, por exemplo com descumprimento de protocolos, mas que não queriam ter matado ninguém. Acho pouco provável pois sobram elementos que comprovam que eles progrediram na sua ação, mas o juiz pode decidir assim e então o caso voltaria para o Tribunal Militar.  A terceira opção seria concluir que há muitas provas para dar sequência ao processo e enviá-lo ao Tribunal do Júri. Acho que ele fará isso. Seria temerário diante de tantas provas que ele enviasse o caso para o Tribunal Militar, onde se sabe que o caso logo seria arquivado, uma vez que a própria Corregedoria já disse que agiram em legítima defesa.   Nem todo mundo se arrisca a dizer, mas tenho convicção de que vai a júri. O juiz me parece uma pessoa ponderada. Mas uma vez no júri, o desfecho é imprevisível. Não há como antecipar nada. O que sabemos é que as estatísticas não são favoráveis à condenação dos PMs, mas esse é um caso diferente – o que faz as chances existirem.

 

Fonte: Por Raphael Sanz, no Le Monde 

 

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