MASSACRE
DE PARAISÓPOLIS: “As famílias querem entender por que a polícia fez isso”
Desirèe
Azevedo é historiadora de graduação e antropóloga através de mestrado e
doutorado. Entrou por concurso em 2019 ao Centro de Antropologia e Arqueologia
Forense (CAAF) da UNIFESP tendo assumido, logo em seguida, o projeto Os 9 de
que Perdemos, que envolve pesquisas acerca do Massacre de Paraisópolis 1 e a
própria investigação defensiva que permitiu com que o caso não caísse no
esquecimento. Mas desde 2017 já estava em contato com o CAAF, quando começou um
pós-doutorado na UNIFESP Guarulhos em que estudava justamente o trabalho do
órgão sobre a Vala de Perus, o Grupo de Trabalho Perus (GTP) que fez as
tentativas de identificação de alguns daqueles mortos. “O que me trouxe para cá foram os estudos da
violência de Estado de uma forma mais ampla. Tenho um mestrado sobre o exílio
nos tempos da ditadura, um doutorado sobre o movimento de familiares de mortos
e desaparecidos políticos. E foi fazendo a minha pesquisa de pós-doutorado,
também sobre esse tema, que me aproximei do CAAF pela primeira vez”, conta a
pesquisadora.
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Leia a entrevista na íntegra a seguir:
• Ocorre o Massacre da DZ7 em primeiro de
dezembro de 2019 e rapidamente se difunde a versão dos policiais, de que teria
havido tumulto promovido pela multidão e pisoteamento das vítimas. Como você e
o CAAF aparecem nessa história?
Logo
que eu entro no CAAF em 2019, muitas coisas estavam acontecendo aqui dentro com
a expansão de pesquisas e financiamentos. Existiam duas pesquisas
estabelecidas: o Grupo de Trabalho Perus (GTP) e sobre os Crimes de Maio. Por
conta dessa segunda pesquisa, logo que houve o Massacre de Paraisópolis,
basicamente na semana seguinte, fomos procurados por duas outras instituições:
o Condepe, que à época tomou a frente das comissões, reuniu os familiares,
montou uma comissão para acompanhar a investigação oficial da Polícia Civil e
buscou o nosso apoio técnico; e a Defensoria Pública, que começou a acompanhar
os familiares e a investigação do caso.
Com um objetivo diferente do Condepe, a Defensoria também procurou nosso
apoio técnico. Queria realizar uma investigação defensiva. E foi através dessa
aproximação que entramos no caso. Eu estava a um mês no CAAF, tinha acabado de
entrar e pedi para tomar a frente do caso.
Cerca de 15 dias após o ocorrido, ainda em dezembro de 2019, começamos a
atuar no caso. De lá pra cá outros projetos vêm se desenvolvendo aqui no CAAF,
diferentes desse, com objetivos diferentes, mas que têm como ponto de contato a
produção de conhecimento nessa relação entre universidade e movimentos sociais.
Em geral são projetos que vão abordar, de uma ou outra maneira, a violência de
Estado.
• Em termos de violência de Estado, esse é
um caso que parece ter chances de viver um desfecho diferente da maioria e, sem
dúvidas, a investigação defensiva cumpriu um papel importante nesse sentido. O
que pensa a esse respeito?
De
fato, esse é um caso sui generis. E é diferente da maioria justamente pelo
início dessa atuação. O que vai impactar as investigações e os desdobramentos
do caso em si é o fato de as instituições terem tomado um papel logo do
primeiro momento, para além da Polícia Civil que é a instituição responsável
pela investigação. Isso é derivado do grande escândalo e da grande comoção
pública gerada na época pela quantidade de vítimas. Ou seja, foi um crime com
nove vítimas, todas elas jovens, alguns muito jovens – cinco deles eram menores
de 18 anos – e no contexto de uma atividade de lazer. Crimes com três vítimas
já são considerados massacres ou chacinas, por exemplo. Tudo isso criou muita
comoção na época. Falamos de uma chacina
em contexto de operação policial, que tinha uma relação pessoal-política muito
forte com o governador da época, o João Doria. Explicamos isso no nosso último
relatório Pancadão: história da repressão dos bailes funks de rua da cidade de
São Paulo. Mostramos como a política repressiva a esses bailes funks de rua foi
algo que foi sendo construído ao longo da última década, dos últimos 12 anos,
pelo menos, e como o Doria abraçou essa política, trazendo-a ao seu capital
político de então. Ou seja, deixou de ser uma política de segurança tocada
pelas polícias e pela Secretaria de Segurança e passou a ser uma política
pública abraçada pelo governador. O
Doria é um cara que se elege prefeito e depois governador prometendo acabar com
os pancadões e ele faz dessas operações pancadão uma política pública – a única
para esse tema na época. Isso faz com que o massacre atinja a figura dele para
além da figura de político, atinge o pessoal. Essa pancada midiática compõe o
conjunto de fatores que fizeram com que os olhares se voltassem para o caso à
época, tanto por parte da imprensa como das instituições. O próprio Doria e a Secretaria e Segurança
Pública (SSP-SP) se movimentaram para que o caso fosse para o DHPP (Delegacia
de Homicídios e Proteção da Pessoa) e não se encerrasse na delegacia, com por exemplo
um auto de resistência ou uma justificativa de autodefesa. A seguir, o
Ministério Público vai indicar uma pessoa para acompanhar o caso – claro que
isso é de praxe, sempre acontece, mas foi feito sob holofotes. E a indicação
veio direto do Tribunal do Júri, pressupondo que poderia ser um caso de
homicídio – o que é o correto. A Defensoria Pública, o Condepe e diversos
mandatos de vereadores e deputados também pressionaram. Todos esses olhares
fizeram toda a diferença para a própria investigação oficial.
Outra
coisa importante de ser dita tem a ver com a investigação defensiva. Diferente
de uma contra investigação, que é realizada por pessoas que estão fora do
escopo das instituições do Estado e, portanto, do espaço de produção de
evidências e verdades jurídicas, a investigação defensiva está nesse espaço. No
caso de Paraisópolis a Defensoria Pública passou a acompanhar os familiares das
vítimas e o território – considerando que toda a comunidade foi afetada pelo
episódio. E é para a comunidade que os
defensores vão logo nos primeiros dias. São eles que vão conseguir as
evidências produzidas pelas testemunhas. Sobretudo fotos e vídeos de celulares
e câmeras de segurança, além de relatos dos presentes. A Polícia Civil também faz sua investigação. Também vai ao território,
coleta e produz algumas evidências ao longo do período. Mas a Defensoria faz o
mesmo trabalho, e nesse caso chamamos “investigação defensiva” porque tem o sentido
não de acusar, embora nesse caso acabe virando uma acusação, mas de defender o
direito das vítimas – no caso os familiares dos mortos e a comunidade. Então a Defensoria Pública vai ao território.
Colhe áudios, fotos e vídeos feitos por testemunhas e começa a reunir essas
testemunhas. Todo esse material será apresentado ao delegado responsável pela
investigação oficial. O delegado à época, e isso pode ter a ver com uma
característica pessoal dele ou com a comoção pública em torno do caso, vai
aceitar esse material e incorporá-lo à investigação oficial. Então, todo o
material com o qual a gente trabalha faz parte da investigação oficial da
Polícia Civil, seja o produzido pela polícia ou o produzido pela
Defensoria. As testemunhas são
sobreviventes. Estavam lá e poderiam ter morrido. Essas pessoas foram ouvidas
na presença do delegado, algumas delas do Ministério Público. Foi tudo feito
dentro dos marcos da investigação oficial, o que é importante, porque em geral
há uma desvalorização desse tipo de material conseguido e produzido por fora da
investigação policial. No Brasil temos a
importância do inquérito policial como elemento central na construção da
verdade jurídica e os legistas e peritos, aqueles que têm conhecimento técnico
sobre as evidências são pessoal oficial, ou seja, vinculados ao Estado e à
Secretaria de Segurança Pública, o que lhes dá a fé pública e os fazem ser
tidos como neutros. Geralmente, o que dizem esses peritos policiais é mais
levado em consideração, mesmo em casos em que agentes do Estado sejam os
acusados. E nós, no CAAF, passamos por esse problema. Pois mesmo usando tudo o
que está documentado na investigação nossa palavra é sempre colocada sob
dúvidas e questionamentos pelo fato de não sermos peritos oficiais.
• Em 2023, quando começavam as audiências
de instrução, entrevistei o Dmitri Salles, à época presidente do Condepe.
Segundo seu relato, testemunhas confirmaram que a ação policial foi motivada
por vingança após o assassinato de um agente na região. Nesse sentido vemos um
padrão de punições coletivas a comunidades inteiras nesses casos de vingança.
Temos o Massacre de Osasco e Barueri que completa 10 anos em agosto e mais
recentemente as operações Verão e Escudo na Baixada Santista, para ficar em
dois exemplos, que começaram com semelhante pretexto. O que isso dirá a
respeito da atuação da polícia e do histórico processo de exclusão social e
econômica a que essas comunidades são submetidas?
Temos
uma questão histórica em São Paulo, mas parece que mudou um pouco a mentalidade
após as operações Escudo e Verão e a figura do Tarcísio. A política também tem
sua parte nessa situação, mas me parece que a gente tem resolvido só agora
olhar para o problema das operações policiais. Sobre Paraisópolis, as pessoas
que estavam no local e a comunidade nos contam que o massacre teve a ver com a
morte do sargento Ronaldo Ruas e essa morte desencadeou, na época, no dia
seguinte da morte, uma operação saturação.
‘Operação Saturação’ é um nome genérico usado em São Paulo desde 2005.
Perguntamos para a polícia desde quando havia esse tipo de operação e não
souberam informar, mas nossa pesquisa indica que é desde 2005 e que,
curiosamente ou não, a primeira foi realizada em Paraisópolis. Batizada de
“Operação Paraisópolis”, tornou-se uma espécie de modelo a ser replicado nas
outras periferias. Vimos aí a concepção de um modelo de policiamento ostensivo
usado, na maioria das vezes, nas periferias. São poucos exemplos fora das
periferias, e entre eles estão as operações realizadas na região chamada de
‘cracolândia’. Isso comprova que é um
tipo de policiamento voltado para determinados territórios e que tem, em termos
operacionais, o cercamento do território e o redirecionamento de agentes de
diversos batalhões para fazer a ronda ali. Ou seja, não serão apenas os
policiais locais na operação, mas agentes de várias regiões, fazendo referência
ao termo “saturação”, que ilustra justamente a ideia de encher, saturar o território
de policiais, e esses policiais vão ter geralmente uma ação fiscalizadora que
inclui fazer revistas e abordagens de pessoas, carros e casas. Mas quando é feito esse redirecionamento de
policiais de outras áreas, acontece um fenômeno que é o desconhecimento daquele
policial a respeito do território, das pessoas que o habitam e especialmente
dos criminosos que habitam o território (policiais que operam todo dia no mesmo
território já sabem quem são os ‘bandidos do bairro’). Todo mundo acaba virando
suspeito. E o tratamento que a polícia dispensa aquelas pessoas que elas sabem
que são criminosos, que é brutal, vai ser dispensado sobre toda a comunidade
porque o policial de fora não sabesaber quem é quem. Esse redirecionamento de agentes é uma
estratégia de lidar com as operações policiais, que torna muito recorrente a
ocorrência de abuso e brutalidade policial nesse contexto, afora o fato de que
o próprio trânsito do território fica impedido pela ação.
• Pensando em bailes funk e pancadões como
um todo, notamos que a partir do final dos anos 90 elementos da cultura
periférica começaram a ter mais espaço na imprensa tradicional e na indústria
cultural. No entanto, ainda assim são tratados de forma marginalizada e recebem
das polícias geralmente esse tipo de abordagem violenta. Por que tanta
perseguição ao lazer e à cultura das periferias mesmo com uma maior entrada
desses setores nos meios de comunicação e nas vidas da própria classe média?
Pela
lógica, a gente imaginaria que o fato de o funk ter rompido barreiras
culturais, de preconceito, de discriminação de classe e raça – e também de
mercado porque hoje o funk lucra horrores –, que o complemento lógico disso
seria ter uma maior aceitação nos territórios. Mas são questões
diferentes. Quando estamos falando dos
bailes funk nos territórios, estamos falando de cultura e mercado, mas
sobretudo de direito à cidade. Estamos falando de jovens negros e periféricos
que estão nas ruas exercendo o seu direito à cidade, construindo ao mesmo tempo
sua identidade e a própria cidade. Isso tem a valer com as formas de ocupação
da rua e vale para todo mundo, desde os jovens do baile funk até os coroas do
samba. E aí entram algumas coisas. Tem a
discriminação em relação a essa população que ‘incomoda’ quando exerce seu
direito à cidade e tem também disputas pelo território e pelo mercado. Quando
pensamos nos bailes de rua que acontecem nas periferias, o que se levanta como
impeditivo ou problemas legados às suas realizações têm a ver com ‘desordem
urbana’. São problemas que existem quando há qualquer forma de lazer nas ruas,
qualquer uma. Temos problemas de poluição sonora, de criar trânsito, de limpeza
urbana, de saúde pública – com consumo de álcool, cigarros e drogas – e uma
série de problemas que vão acompanhar a realização dessas atividades. Mas essas atividades não criam apenas
problemas. Elas também criam uma série de oportunidades. Em primeiro lugar o
exercício do direito ao lazer, à diversão e à cultura, que são direitos básicos
de cidadania. Além deles cria-se oportunidades de mercaos, comércios e
profissões. Temos essas duas faces, mas quando determinados setores vão falar
sobre os eventos de rua só irão se referir aos problemas que podem causar. O
papel do governante é olhar com isonomia para isso, ou seja, olhar para essas
atividades e buscar formas de balancear o que há de bom e de ruim. É
basicamente o que fazem quando é o próprio poder público que organiza a
atividade, como a Virada Cultural por exemplo.
Mas quando o poder público se exime de negociar esse tipo de situação,
outros setores vão se colocar politicamente como mediadores, pois precisam de
solução uma vez que parte da população fica incomodada com esse tipo de
evento.
Em São
Paulo, geralmente esse vácuo é preenchido por pessoas ligadas à PM, sejam
agentes de fato, atuando como policiais, seja por meio de representantes da
corporação que ocupam espaços nas instituições de Estado. E nos dois casos o
olhar é disciplinador, pois esse é o olhar da polícia. O objetivo é estabelecer
a ordem diante das reclamações de parte da população e da inação do poder
público, o que aumenta o poder da polícia no território na medida em que um
poder foi repassado à ela por projeto de lei que regula a emissão de ruídos
sonoros por veículo: o de fazer esse tipo de fiscalização à sua maneira. E bem,
bailes funk de rua são basicamente feitos por sons automotivos. Paraisópolis é uma favela que tem certa centralidade
periférica, é um tipo de “centro da periferia” pois oferece uma série de
serviços para as pessoas da região que muitas vezes não existem em outras
favelas. As pessoas vão à Paraisópolis para acessar esses serviços, então tem
muito comércio, muita ONG, muita atuação do poder público. Também tem muita
disputa pelo solo, pelo território, pois é uma favela que não vai ser deslocada
e vem sendo urbanizada ao longo dos últimos 20 anos. Então há toda uma disputa
em torno do bairro que é mercantil e diz respeito a economia, a ganhos, a quem
vai ocupar aquele lugar, e a polícia participa. Militariza essa disputa atuando
em favor de determinados interesses, como por exemplo, quando tentam fechar os
bailes funk na favela de um jeito e, no Morumbi, ali do lado, se tem algo
semelhante na rua vão atuar de uma outra forma.
• Em 2 de dezembro de 2019, horas depois
do massacre, os corpos dos nove jovens assassinados ainda estavam quentes
quando o então governador João Doria deu uma coletiva de imprensa ao lado do
seu secretário de segurança pública e do comandante-geral da PM reiterando a
versão dos policiais que depois foi refutada pela investigação defensiva
conduzida pelo CAAF e pela Defensoria. Acredita que no final das contas as
operações contra os bailes transformam-se numa espécie de showbizz
policial-eleitoral?
Você
comentou dessa coletiva de imprensa e nós a citamos diversas vezes e em
diversos materiais que produzimos porque ela é muito chocante e repete diversos
padrões. Mas é bom falarmos sobre ela porque não podemos perder a capacidade de
nos indignar com isso. Foi horas depois
do massacre. A investigação apenas começava e ainda ia demorar até que desse um
retorno. A única coisa que se tinha naquele momento era a narrativa dos
policiais envolvidos. Considerando o resultado, ou seja, as nove pessoas mortas
naquela ação, é inadmissível que a cadeia de comando daqueles policiais vá para
a televisão repetir a narrativa oferecida pelos agentes que começavam a ser
investigados naquele mesmo dia. O que compete a essas autoridades, nesses
casos, é dizer que o ocorrido está sob investigação e o que os policiais
envolvidos alegaram que não devia sequer ter sido vocalizado por essas
autoridades, que não sabiam o que de fato aconteceu. Ao repetir a narrativa, estão de certa maneira
confirmando e passando a ideia de que foi o que aconteceu de fato. Mas é
preciso relativizar, pois trata-se dos agentes envolvidos no episódio de
letalidade. Obviamente há situações de letalidade em que os policiais exercem
seu direito à defesa, quando há trocas de tiro por exemplo. Mas esse não foi o
caso, então antes de colocar qualquer narrativa era necessário que primeiro
houvesse a investigação. Não dá para partir do pressuposto de que um policial
envolvido num caso de letalidade esteja dizendo toda a verdade sobre o caso em
que participa. Isso precisa ser o ponto de partida de uma investigação, não o
seu fim. Especialmente quando há vidas perdidas. Me parece que ao fazer isso há uma espécie de
estímulo à letalidade que passa pela perspectiva da impunidade. A cadeia de
comando, no fim das contas, termina no governador e no secretário, que também
são chefes dos investigadores. Quando há um respaldo desse, que tipo de recado
chega para outros PMs e mesmo para policiais civis incumbidos de investigar a letalidade?
É uma forma de anuir com esse comportamento e dizer que não há necessidade de
rigor na investigação.
Isso me
faz pensar que existe um papel que a polícia cumpre na contenção e controle
social, na militarização desses conflitos entre diferentes grupos sociais. E se
ela atua nessa contenção, há uma anuência com a atuação desses policiais que
irá reverberar no sistema de Justiça de muitas formas. Encontramos, no fim das
contas, uma estrutura que garante essa impunidade. Recentemente vimos numa
pesquisa que só 2% dos policiais que cometem crimes são condenados. E nesse aspecto há ainda o possível medo do
Tribunal do Júri de decidir sobre a vida de um policial. Há uma percepção
generalizada da sociedade do tamanho do poder que esses policiais têm nas ruas
a partir dos abusos e excessos que cometem. E isso é ignorado pelo sistema de
Justiça. E o direito penal não dá conta, porque falamos de uma violação de
direitos humanos, não apenas de crimes individuais. No caso de Paraisópolis falamos de uma
comunidade que convivia com operações fazia um mês, que tinha toque de recolher
apesar desse conceito não existir na legislação. Então não há como explicar a
motivação do crime senão por essa disputa territorial e o papel que a polícia
exerce nele. Os nove jovens foram mortos nesse contexto, sem dúvida não foram
pessoalmente tornados alvos, mas estavam no território-alvo.
• Voltando à investigação defensiva, qual
a importância da presença de familiares das vítimas ao longo desse processo?
Falamos
de um caso de violação de direitos humanos em que as pessoas estão
profundamente chocadas, tristes, revoltadas, indignadas. Essa foi uma situação
na qual não foi um civil ou um indivíduo qualquer que provocou a morte, mas um
agente do Estado, que em tese, deveria proteger essas pessoas. Esse é um fator
que coloca a inaceitabilidade do caso e dificulta o luto porque a pessoa se
sente desprotegida nessa situação. A
Fernanda, irmã do Dennys Guilherme, é de uma família negra. O filho dela é um
rapaz negro, o irmão dela mais novo também, e a morte do Denis não se encerra
nela mesma porque se desdobra em várias coisas, inclusive na desconfiança em
relação aos agentes policiais e no medo de que algo parecido ocorra com outro
ente querido – o filho. Nesses casos as
pessoas precisam muito de ações de reparação dessa violência e dessa dor. Eu
acredito que a participação dos familiares nesses casos tem muitas dimensões.
Uma das mais importantes é a reparação e a própria tentativa de conduzir um
processo no qual os direitos à verdade, à memória e à justiça sejam
respeitados. Nesse sentido, nosso trabalho tinha como objetivo, de alguma
maneira, auxiliar os familiares na garantia desses direitos. Não tem como a pessoa se sentir tranquila e
realizar o seu luto pacificamente se ela não sabe o que aconteceu com o seu
parente. Nesse caso era inescapável o fato de que os familiares se envolveriam.
Eles estavam absolutamente em dúvida sobre o que tinha acontecido. Afinal de contas,
naquela madrugada eles foram chamados para ir em busca dos seus entes queridos
que saíram para uma festa e não voltaram. Os familiares então vão buscar seus
corpos mortos e esses corpos, o que eles veem ali, não bate e não combina com o
que os policiais estão dizendo que aconteceu. Eles vão à comunidade, ouvem as
pessoas e, novamente, aquilo não combina com o que os policiais estão dizendo
que aconteceu. Foi a partir de uma
necessidade visceral que esses familiares passam a fazer perguntas, todas muito
claras, objetivas, coerentes. E nós, para além das perguntas que elaboramos, ao
trabalharmos com eles nesse caso, buscamos responder as suas questões. Era
muito importante responder àquilo que eles colocavam na tentativa de contribuir
com a resolução do caso e o direito à verdade dessas pessoas.
Entre
as perguntas elaboradas pelos familiares que foram centrais para a investigação
está a questão do pisoteamento. Isso partiu deles desde o primeiro momento, e
de vários deles antes mesmo de se conhecerem. Se olharmos vídeos das famílias
na saída do IML, diversas delas estão questionamento a versão do pisoteamento.
A Fernanda diz isso ao profissão repórter. O Danylo (irmão do Denys Henrique)
mostra ao vivo para os Jornalistas Livres a roupa do irmão sem marcas de
pisoteamento. Eles que foram trazendo essa dúvida. Também partiu deles o
questionamento em relação ao porquê disso tudo. Especialmente depois que se
descobriu que não houve agressão por parte do público, nem socorro às vítimas.
As famílias querem entender por que a polícia fez isso.
• Há uma real expectativa de que o caso vá
para o júri ao final da fase instrução que ainda se arrasta ao longo desse ano?
O que está em jogo com uma possível punição aos agentes envolvidos e que
mensagem enviaria ao restante da sociedade?
Não sou
uma pessoa exatamente otimista, mas tenho muita convicção de que esse caso vai
a júri. É um caso que gerou muita repercussão e gera uma mobilização social e
uma produção de conhecimento muito grande a seu respeito. Tem muita prova,
muita prova. Não tem tanta testemunha
por conta de uma situação recorrente em casos de letalidade policial: as
pessoas temem. Boa parte das testemunhas que deram depoimento num primeiro
momento na delegacia já não apareceram em juízo. Mas têm algumas testemunhas e
muitas provas. Como há muitos elementos que indicam a participação dos
policiais, acho muito difícil que o juiz assuma para si a tarefa de decidir
sobre o caso. Acho mais provável que queira deixar que a sociedade, por meio do
júri, tome a decisão. Já foram ouvidas
as famílias e as testemunhas de acusação. Agora estão terminando de ser ouvidas
as testemunhas de defesa e não são muitas que têm algo para dizer dos fatos.
Boa parte delas são testemunhas de contexto, ou seja, pessoas da própria
polícia que vão falar sobre o contexto de Paraisópolis e uma série de outros
elementos. Como testemunhas do fato estão apenas policiais que participaram da
ação, mas não foram acusados. Policiais que, a meu juízo, poderiam ser réus
nesse processo. Tiveram ainda duas testemunhas periciais da própria PM. Mas não
tiveram testemunhas do DHPP, que concluiu a investigação como homicídio culposo
(quando não há intenção de matar) com dolo eventual (quando os policiais sabiam
da possibilidade de resultado morte e mesmo assim continuaram a ação). Além
disso, o MP discordou do delegado, oferecendo a denúncia por homicídio doloso,
compreendendo que foi dolo eventual.
Agora devem ter mais algumas audiências de instrução ao longo do ano.
Depois disso o juiz tem três decisões para tomar. A primeira seria considerar
que não houve crime e arquivar o caso: acho pouco provável. Também pode dizer que houve um crime culposo,
por exemplo com descumprimento de protocolos, mas que não queriam ter matado
ninguém. Acho pouco provável pois sobram elementos que comprovam que eles
progrediram na sua ação, mas o juiz pode decidir assim e então o caso voltaria
para o Tribunal Militar. A terceira
opção seria concluir que há muitas provas para dar sequência ao processo e
enviá-lo ao Tribunal do Júri. Acho que ele fará isso. Seria temerário diante de
tantas provas que ele enviasse o caso para o Tribunal Militar, onde se sabe que
o caso logo seria arquivado, uma vez que a própria Corregedoria já disse que
agiram em legítima defesa. Nem todo
mundo se arrisca a dizer, mas tenho convicção de que vai a júri. O juiz me
parece uma pessoa ponderada. Mas uma vez no júri, o desfecho é imprevisível.
Não há como antecipar nada. O que sabemos é que as estatísticas não são
favoráveis à condenação dos PMs, mas esse é um caso diferente – o que faz as
chances existirem.
Fonte:
Por Raphael Sanz, no Le Monde

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