Maria
Betânia Silva: Crises, circo, cerco e ciclos continuam tomando conta do Brasil
Em 2021
publiquei um artigo intitulado “Crises, Circo, Cerco e Ciclos”. E as crises, o
circo, o cerco e os ciclos persistem!
O
título ainda que alterado preserva a essência, apesar de todos os novos
acontecimentos que nos trazem angústia. É que eles trazem à tona o padrão
histórico de funcionamento das instituições brasileiras. E tudo acontece sob o
olhar da população que se divide entre consciência e alienação;
paralisia e ação; protesto e silêncio; conivência e
enfrentamento. Posturas, enfim, que não aplacam a tensão social e
política que nos últimos anos vêm afetando muito intensamente o país.
Continuamos
num ciclo do qual emergem e ainda predominam vozes e ações tresloucadas dos
mesmos atores/ detratores da paz: pessoas detentoras de uma riqueza material
excessiva ou aspirantes a isso; pessoas aproveitadoras do espaço da política
para garantir os seus ganhos drenando o orçamento do Estado; pessoas obtusas no
que se refere à necessidade de criar um estado de bem-estar social: ignorantes
sobre os princípios de uma vida pública regida pelo princípio da igualdade e do
respeito; pessoas conservadoras e cameleônicas no que tange aos valores morais;
pessoas enfim perversas em tudo na vida.
Até
quando viveremos esse ciclo? Que História é essa em que tudo sucede “…se
demorando em ser tão ruim”?
Trata-se
de uma História bem capturada pelo samba, que representa a “lágrima clara sobre
a pele escura”, como magistralmente cantam Gilberto Gil e Caetano Veloso. Na
voz doce de ambos e para quem tem escuta atenta, soa a denúncia e também
os versos de alento de que “alguma coisa acontece/no quando agora em
mim/cantando eu mando a tristeza embora”.
Aprendemos
há muito que “o samba é o pai do prazer/o samba é o filho da dor/o grande poder
transformador”. Ele é verdadeiramente isso! Vivemos tempos de tristeza, de
raiva e receios no Brasil e o samba nos manteve dominando os nossos pés. Que
venham os sambas, apesar da dor, e que também por causa dela nos oferece a
noção de coletividade. Uma coletividade que vivo o risco de esfacelamento
diante das ignomínias políticas que pululam no país. Para barrar esse
processo, o samba nos convoca a fazer uma roda, uma reunião barulhenta,
sim, atravessada pela alegria de viver em que o ritmo balança os nossos corpos,
nos dá o molejo atrevido e nos desafia a varar a noite para ver o
sol nascer. A nossa História tem, sim, que dar em samba, sem desdém!
Sambar
sobre a dor é o nosso jeito de fazer política e talvez seja um jeito único no
mundo.
No
artigo anteriormente publicado, afirmei que a História do Direito transposta em
códigos, leis esparsas, instituições e, sobretudo, no texto constitucional,
embora diga muito sobre a nossa evolução política e involuções está longe de
contar toda a História. De fato, no caso brasileiro, essas normas não dizem
nada sobre as forças violentas que nos sacudiram e, eventualmente, nos sacodem.
Tomadas como expressão da vitória fundadora de uma ordem, essas normas são
vistas na perspectiva de progresso mas as forças continuam amassando os papéis,
jogando-os sob botas que passam por cima de qualquer linha, que, de longe,
represente um limite civilizatório a ser respeitado.
No
Brasil, as botas apoiadas por setores econômicos poderosos da sociedade,
escreveram uma parte significativa da nossa História, pelo menos, desde
1889; levantaram-se da poeira depois da ditadura de 1964-1988 e, mais do
que nunca, com apoios similares aos do passado, voltaram à sujeira do despudor.
Apostaram num ex-militar desqualificado que agitou parcelas variadas da
população para, exaltando a história mal contada ao longo da ditadura militar,
negar a ocorrência desse período e eleger a desordem como ordem
estabelecida sem nada propor de duradouro e razoável, nenhum interesse em
alcançar uma convivência social pacífica. Só ideias disruptivas! Desse modo,
caminhamos para além de qualquer limite e, para o fundo de um poço com
alçapão, como se tem dito nas redes sociais.
CRISE
Eis a
sensação que se vivencia no Brasil desde 2016, pelo menos, quando se tirou do
poder a Presidente Dilma, acenando-lhe um perverso “Tchau, querida!”. Situação,
aliás, que foi muitíssimo agravada senão provocada pela Lava Jato, a qual, com
os seus homens engravatados, vaidosos da imagem de Harvard, entusiastas de
um power point de fins messiânicos para combater a corrupção
sem nunca combatê-la efetivamente; todos eles, seres pobres de espírito
democrático, forçaram e arrebentaram as linhas de interpretação constitucional
para liberar endinheirados delatores (inventores de informação útil) em troca
da prisão de Lula, baseada apenas em convicção. Finalmente, a convicção revelou
-se farsa, foi desfeita por decisão do STF que constatou a inexistência de provas,
tornando insustentável a prisão de Lula.
Fraturou-se
o sistema judicial brasileiro com a Lava Jato e por causa disso, hoje, a
temperatura da crise ainda sobe alguns graus.
Para
reparar a fratura há uma corrida frenética, exaustiva e desafiadora para que o
STF não deixe a “corda se partir” e para fazer valer as instituições
burocráticas e institutos da doutrina jurídica brasileira que mais do que nunca
representam um sopro de uma ordem minimamente estabilizadora da vida
institucional e social do país. O Judiciário, o Ministério Público que são,
dentre outras instituições, uma garantia do ideal democrático, abrigam em seus
gabinetes pessoas com opiniões divergentes e até opostas e, em certa medida,
nutridas por embates cotidianos. Isso por si só constituiria uma realidade
democrática, não fossem os delírios de alguns que ainda se sentem inspirados
pela Lava Jato e se excedem no seu ofício, impondo aos demais a necessidade de
fazer um esforço hercúleo para alcançar uma eficácia mínima de direitos humanos
e de cidadania no país, combatendo o lawfare.
Além do
ambiente febril no sistema de justiça, no campo da representação política
partidária, se tem uma Câmara de Deputados, em boa parte, muito simpática à
engorda de bois e não exatamente preocupada com a fome do povo que grassa nas
esquinas dos centros urbanos, no interior rural do país e até nas regiões mais
verdes.
Foi
justamente uma parte significativa dessa Câmara que votou na noite da
quinta-feira da semana passada (entre 08 e 09 de maio) uma resolução para
barrar uma Ação Penal em curso no STF relativa à tentativa de golpe, em 2023,
para salvar um deputado e a partir dele uma penca de gente. Nessa ação o chefe
do governo anterior (2018-2022) figura como réu juntamente com os generais
cheio de estrelas obscurecidas. A resolução é mais um ato, dentre tantos,
tresloucados. Mais um que não se rege pela lógica jurídica existente no país e,
desse ponto de vista, não se sustenta. Mais uma ação tresloucada que parece uma
metralhadora giratória para transformar a vida institucional do país num campo
de ensanguentados à beira da morte. Vive-se, assim, mais uma vez e, com intensidade,
uma situação que ameaça a nossa integridade em todos os sentidos: física,
social, política, territorial e institucional.
Paira
sobre a cabeça dos membros do STF, nesse momento, o temor de que o absurdo
desse trancamento da Ação Penal se converta num redemoinho institucional,
levando-nos do “Caos à Lama”. Há uma crise profunda dentro de todas as
instituições. Tudo é Guerra sem perspectiva de paz e a Câmara intoxicada pela
estupidez, na votação recente, cria empecilhos para uma Ação Penal necessária,
visando desestabilizar o Poder Judiciário e desacreditá-lo em tudo.
CIRCO
Que
ninguém se esqueça, mas temos um ex-Presidente do Brasil egresso das Forças
Militares e que tem na cabeça a ideia de ser um “Imperador absoluto”,
anunciando de forma tosca: “Constituição sou eu”, “eu sou o Partido X” mesmo
sem, à época, ter um.
Os
tempos do Imperador, que fique bem claro, nunca foram dourados para o povo
brasileiro. Foi nessa época que pessoas foram escravizadas e o Imperador se
fazia por bajuladores. Algo muito semelhante às imagens de um paciente no
hospital, supostamente recém-cirurgiado em virtude de um problema abdominal
grave. Num paralelo com os tempos do Imperador, seus congêneres atuais
encontram nas milícias (réplica na contemporaneidade brasileira dos capitães do
mato) a proteção dos seus interesses e a realização das suas vontades. Em
torno desse “Imperador” sem coroa, mas coberto da arrogância despótica,
gravitam muitos serviçais para compor o quadro adoecido e farsa da força de
superação.
É
“espetáculo” de degradação contínuo o que ocorre no centro da “Corte Imperial”.
É como se ela fosse um picadeiro onde tudo que parece absurdo e, efetivamente,
o é acontece diante de uma plateia atônita. É como um circo sem magia, um circo
mambembe no qual o espetáculo derrapa num figurino esfarrapado. A imaginação
seca diante do que se vê. É circo repleto de palhaços sem profissionalismo e
sem a inteligência que é habitual nesse personagem circense. São palhaços que
se movem na fronteira entre o cômico e o trágico sem saber interpretar nenhum
desses estados. É circo cuja plateia se divide entre gente boquiaberta, que vê
o fogo consumir a lona e se coloca na saída de emergência e gente que, ainda,
se acha absorta nos aplausos.
CERCO
O
trabalho normal e necessário que está sendo realizado agora pelo STF, por
exemplo, vem provocando muito mal-estar na soberba do “Imperador”.
Como
sói ocorrer com todo procedimento de natureza investigatória, ao final do
Inquérito sobre a tentativa de golpe no dia 08 de janeiro de 2023, o Procurador
Geral de República (PGR), após exame minucioso, fez o seu trabalho: ofereceu a
denúncia, assegurando a todos os denunciados o direito de defesa. Nada que
esteja fora da Constituição de 1988. Tudo nos conformes. Isso, porém, é visto
como um cerco pelo mais espetaculoso dos réus, ávido em agitar os outros para
se evadir e não responder pelos atos que cometeu. Ele fez agonizar a jovem
democracia brasileira quando estava na cadeira do poder e, agora, se diz
adoecido, justo quando a democracia reage dentro das “quatro linhas da
Constituição”.
Os
contornos institucionais do país, construídos ao longo de décadas da História
do Direito vão pouco a pouco se restaurando, enquanto resiste às ameaças
delirantes de bestas-fera que pretendem avançar sobre o Estado brasileiro para
estraçalhá-lo, tirar-lhe um pedaço e entregar os restos às hienas globais.
CICLOS
O
Brasil oscila assim entre o passado e o futuro, às vezes, parecendo se situar
nos primórdios da República, sempre que se abre um espaço na imprensa nacional
para ouvir gente desqualificada vociferar a favor da tradição, da família e da
propriedade. A tradição que consiste em manter nesse território os homens, os
machos brancos, de peito estufado contra negros, índios e mulheres, exatamente
como fizeram os colonizadores, desta feita, porém, sem caravelas. Eles
transitam montados em motocicletas, ou em carros de som para cumprir o suposto
papel de macho: demarcar território. Animalesco, aliás! Nessa demarcação,
ironicamente, nem o xixi, nem o peito estufado, nem as patas estão se revelando
suficientes; as armas lhe são providenciais mas elas estão com pouca munição no
momento. Tirem-lhe as armas e não se ouvirá um pio.
Como se
fosse uma série, “Enquanto isso na sala de Justiça”, alguns membros do
Ministério Público enfrentam dificuldades para agir, outros se acomodam em
fazer um pouco e, de mão em mão, canetadas consignam despachos salutares,
brilhantes, corajosos e alguns outros tresloucados e determinantes do pior; os
magistrados vão tomando as decisões nos casos para os quais são
demandados ou diante das situações em que precisem defender a existência e o
exercício de suas funções, produzindo juízos ora acertados, ora equivocados. Lá
vai o Brasil cumprindo um ciclo que é quase um eterno retorno!
Eterno
retorno, aliás, é uma noção trazida por Nietzsche e compreendida por vezes
apenas numa dimensão cosmológica como se fosse um destino fatídico. Em uma
linguagem didática e acessível a todos, essa noção talvez possa ser explicada
através da metáfora de cartas de um baralho. Imagine que essas cartas sejam
contínua e perpetuamente embaralhadas… em virtude disso, sucede que as
combinações entre elas, dentro de um tempo que é infinito, vão se repetir e
podem mesmo indicar uma sequência de repetição porque as combinações das cartas
são finitas. Ao mesmo tempo, esse processo pode abrir a possibilidade de “um
novo referencial cosmológico” diverso daquele que vem sustentando a moral do
Ocidente. Um dos pilares dessa moral, que repousa no Cristianismo, é a do
juízo final. Acredita-se no apocalipse e que ele deve ser o fim de tudo,
contraposto, aliás, ao começo de tudo: o Big-Bang!
Esquece-se
aí da ciência, segundo a qual o Universo continua se expandindo e também da
teoria quântica que enxerga uma partícula cuja trajetória no espaço é incerta.
Esquece-se o saber ancestral vindo da África que se move de modo circular e não
linear; esquece-se a argúcia dos povos indígenas que protegem a natureza para
que os ciclos que lhe favorecem a existência e a sobrevivência não tenham fim.
Há
incertezas dentro do ciclo! Que alívio! E que o samba persista como o grande
poder transformador.
Fonte:
Jornal GGN

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