Luta
antimanicomial: “Nada sobre nós sem nós!”
A saga
pelo protagonismo das pessoas usuárias e familiares de serviços de saúde mental
é constitutiva da própria luta antimanicomial e da reforma psiquiátrica
brasileira. No discurso é ponto pacífico: é preciso assegurar e ampliar a
participação e voz ativa de pessoas usuárias de serviços de saúde mental e de
seus familiares. Sem dúvida, muitas foram as conquistas até aqui. Mas é preciso
avançar ainda mais na redistribuição de poder e no fomento ao protagonismo das
pessoas – e a hora é agora.
• 18 de maio: “Por uma sociedade sem
manicômios”
Mês de
maio é mês de reafirmar a luta antimanicomial.
A luta
antimanicomial é um movimento social com papel central nos avanços da reforma
psiquiátrica brasileira e na transformação da relação da sociedade com a
loucura. Seu lema – “por uma sociedade
sem manicômios” – foi definido em 1987, durante o Encontro de Bauru (São
Paulo). De lá para cá, o movimento cresceu, e deste processo fazem
historicamente parte as pessoas com sofrimento psíquico e seus familiares.
A luta
antimanicomial foi central nas batalhas pela promulgação da Lei nº 10.216 de
abril de 2001, que garante os direitos das pessoas com sofrimento mental e
reorienta o modelo de atenção, de modo que instituições de características
asilares – os hospitais psiquiátricos e, agora, também as erroneamente chamadas
“comunidades terapêuticas” – sejam substituídas por serviços de saúde mental
abertos, de base comunitária e territorial.
E essa
luta segue sendo central na sustentação cotidiana da invenção do cuidado em
liberdade e nos territórios de vida, na construção de novos olhares e relações
com a experiência do sofrimento e da defesa radical da participação social e
cidadania das pessoas com sofrimento psíquico e com problemas relacionados ao
uso prejudicial de álcool e outras drogas. A luta antimanicomial é luta por
transformações sociais: luta que envolve incidir nos aparatos legislativos,
administrativos e técnicos, inventando novas instituições e práticas; que nos
convoca a construir com a sociedade outras ideias e outros afetos sobre o que é
a experiência de sofrimento e de uso prejudicial de álcool e outras drogas;
enfim, que envolve transformar um sistema de relações.
A luta
é organizada em coletivos, entidades e movimentos que mobilizam ações, e também
se expressa no agir prático e cotidiano de trabalhadores, pessoas usuárias de
serviços de saúde mental e seus familiares. Ela é reafirmada sempre no dia 18
de maio, com eventos que se expandem por todo o mês e são realizados em âmbito
nacional e por diversos atores sociais, incluindo universidades, outros
movimentos sociais da saúde e de outros setores que fazem a defesa de Direitos
Humanos.
Por
isso afirmamos: a luta antimanicomial, celebrada no 18 de maio de norte a sul
do país, se faz todo dia – e necessariamente acontece com participação social.
• “Nada sobre nós sem nós”
Se a
luta antimanicomial é brasileira, a afirmação da necessidade de escutar as
pessoas com sofrimento mental e expandir a participação social é,
definitivamente, internacional. O grande marco que temos hoje para defender,
promover e garantir o direito à participação social é a Convenção sobre Direitos das Pessoas com
Deficiência (CDPD) da ONU, que abarca as pessoas com sofrimento psíquico.
Trata-se de um direito tão essencial que a participação social é afirmada nos
preâmbulos, princípios e demais artigos desta Convenção. Mais: para assegurar
que os direitos afirmados na Convenção não se tornem letra morta, foi
constituído o Comitê dos Direitos das Pessoas com Deficiência, órgão composto
por experts independentes que monitoram a situação de implementação da CDPD nos
Estados-membros signatários – entre eles, o Brasil.
Outro
marco importante, este abrangendo toda a região das Américas, foi a realização,
em 2013 e com apoio da OMS/OPAS e do Ministério da Saúde, do Consenso de
Brasília, que é resultado de reunião realizada entre variadas associações e
pessoas com sofrimento mental e seus familiares. O Consenso de Brasília
apresenta com clareza direitos dessas pessoas que precisam ser promovidos e
garantidos. Se qualquer gestor de políticas e serviços quiser saber o que
precisa fazer para colocar em prática ações alinhadas aos direitos dessas
pessoas, basta consultar o documento resultante do encontro. Aliás, o mesmo
vale para formuladores de políticas e de legislação – bons e úteis projetos de
lei poderiam tomar como base o que as próprias pessoas que usam serviços de
saúde mental e seus familiares afirmam ser necessário.
Enquanto
instrumento prático de fomento e viabilização de participação social, no Brasil
contamos com a realização de Conferências de Saúde Mental em suas etapas
municipal, estadual e nacional. Até aqui foram realizadas cinco Conferências
Nacionais de Saúde Mental, sendo a 5ª.Conferência Nacional de Saúde Mental
finalizada em 2023; esta última também contou, de maneira inédita, com a
realização de 37 conferências nacionais livres. Trata-se de um instrumento de
direito à participação social que não está garantido, mas é sempre conquistado.
A quarta edição da Conferência Nacional de Saúde Mental, por exemplo, foi
realizada em 2010, tendo como um de seus principais impulsionadores de seu
chamado a histórica Marcha dos Usuários pela Reforma Psiquiátrica Antimanicomial
para Brasília, que aconteceu em 2009 e reuniu 1.800 pessoas usuárias e
familiares de serviços de saúde mental.
E para
não esquecermos: tal como a luta antimanicomial, a participação social se faz
no dia a dia. A participação e o controle social são diretrizes da Rede de
Atenção Psicossocial e devem ser promovidos – ou assim se espera – no dia a dia
pelos serviços de saúde mental substitutivos ao modelo asilar, como os Centros
de Atenção Psicossocial. Um exemplo disso é a realização de assembleias nos
serviços, constituídas como espaços de participação em igualdade de poder para
tomada de decisões coletivas sobre o serviço. Outro exemplo são os conselhos
gestores, que são órgãos colegiados compostos por representantes de segmentos –
incluindo as pessoas usuárias e familiares do serviço –, que exercem o papel de
controle social no Sistema Único de Saúde.
Para
além disso, poderíamos citar numerosos exemplos de esforços e experiências
inovadoras em serviços para promover direitos, protagonismo e participação
social de pessoas com sofrimento mental em variados lugares – muitas delas
aprovadas na 5ª. CNSM –, além das estratégias de audiências públicas, eventos e
comitês de pesquisas. Todas essas experiências envolvem redistribuir o poder,
construindo novas relações entre nós.
Ou
seja, de normativas e marcos institucionais a instrumentos formais e informais,
há iniciativas inventadas para promover novos direitos, ampliar a participação
social e fazer ecoar a voz das pessoas que usam serviços de saúde mental. O
avanço necessário é que isso se dê em todos os níveis do sistema.
• Redistribuir poder com coragem
Na 5ª.
Conferência Nacional de Saúde Mental foi apresentada e aprovada a proposta no
12, de criação de um comitê interministerial com participação de representantes
de associações, coletivos e movimentos sociais para discussão e criação de
programas que fomentem os direitos das pessoas usuárias e familiares a tomarem
decisões. Essa proposta tem alinhamento com o estabelecido no Artigo 12 da
CDPD, que afirma o direito à capacidade legal, e, principalmente, com os
Artigos 29 e 33 da CDPD, que requerem dos países signatários a participação
direta das pessoas com deficiência na vida política, bem como na implementação
e monitoramento das políticas e programas da área. Portanto, esse comitê é uma
proposta prática para realizar o que já está determinado como direito e que
precisa ser assegurado, já que a Convenção tem, no Brasil, caráter de emenda
constitucional, tendo sido promulgada pelo Decreto nº 6949 de agosto de 2009.
O país
já possui experiência de proposição de comitês com participação das pessoas
interessadas na agenda, como é o caso do Comitê Intersetorial de Acompanhamento
e Monitoramento da Política Nacional para a População em Situação de Rua
(CIAMP-Rua).
O
CIAMP-Rua conta com a participação de representantes de movimentos sociais e
organizações que atuam na agenda dos direitos da população em situação de rua e
é papel desse comitê acompanhar, debater e fiscalizar os rumos da Política
Nacional para a População em Situação de Rua.
Ora, se
a participação social é diretriz para a saúde mental, faz sentido a criação de
um comitê com representantes de movimentos, entidades e organizações para
participar da Política Nacional de Saúde Mental, Álcool e outras Drogas. Essa é
a proposta apresentada pela articulação da 1a e da 2a Conferência Nacional
Livre de Coletivos, Associações e Movimentos Sociais de Pessoas Usuárias e
Familiares da Luta Antimanicomial (CONALIVRE USUFAM) e aprovada integralmente
na 5ª CNSM: a criação de um Comitê Interministerial para os Direitos e
Protagonismo de Pessoas Usuárias e Familiares do Campo da Saúde Mental.
• Com a palavra, o CONALIVRE USUFAM:
Essa
proposta aprovada na 5ª CNSM foi apresentada depois em um manifesto ao conjunto
dos movimentos sanitário e antimanicomial em 2024, o Manifesto da Articulação
CONALIVRE USUFAM – Pela criação do Comitê Interministerial para os Direitos e
Protagonismo de Pessoas Usuárias e Familiares do Campo da Saúde Mental, tendo
recebido amplo apoio e assinaturas da maioria de seus principais atores sociais
e políticos. Em março de 2025, o manifesto foi apresentado ao novo Ministro da
Saúde, Alexandre Padilha, que aceitou receber os representantes da Articulação
CONALIVRE USUFAM, com apoio do Monula Oficial (Movimento Nacional de Usuárias e
Usuários da Luta Antimanicomial), em reunião virtual realizada em 10 de abril
de 2025; na ocasião, houve resposta positiva da assessora direta do Ministro,
que propôs a montagem imediata de um GT paritário para a montagem do texto
formal para aprovação nas respectivas instâncias do governo. Esse é o estágio
atual dessa luta.
A
implementação deste comitê representará, sem dúvida alguma, um novo alento e
uma profunda mudança qualitativa nas conquistas da reforma psiquiátrica
antimanicomial efetivamente participativa, coerente com os principais avanços
legais e normativos internacionais e nacionais, e condensadas na bandeira:
“Nada sobre nós sem nós”. A hora é agora!
Fonte:
Por Cláudia Braga e Articulação CONALIVRE USUFAM, para a coluna Cuidar das
pessoas. Cuidar das cidades, em Outra Saúde

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