Janja:
de Musk a Xi Jinping, por que primeira-dama acumula polêmicas?
Novembro
de 2024. No Rio de Janeiro, a primeira-dama, Rosângela Lula da
Silva, discursa
em um evento do G20 e xinga, em inglês, o homem mais rico
do mundo, Elon Musk. A plateia, composta na maioria por jovens, aplaude. Dois
dias antes, ele havia acabado de ser anunciado como membro do futuro governo do
presidente norte-americano, Donald Trump.
Maio de
2025. Em Pequim, segundo relatos dos jornalistas Andreia Sadi e Valdo Cruz, da
Rede Globo, Janja, como é conhecida, interpelou o presidente da China, Xi Jinping, sobre a atuação do aplicativo chinês TikTok ao redor do
mundo. Desta vez, a plateia composta por políticos brasileiros e chineses teria
reagido com embaraço por conta da quebra de protocolo e porque o tema é
considerado extremamente sensível para as autoridades chinesas.
Os dois
casos são apenas alguns dos episódios em que a primeira-dama esteve envolvida
que chamaram atenção da opinião pública e ensejaram críticas de analistas
políticos e de membros da oposição.
Diferentemente
de outras mulheres que estiveram em sua posição na história recente do Brasil,
Janja se manifesta sobre temas polêmicos e é vista no Palácio do Planalto como
alguém com relativa influência política no governo.
Os
episódios protagonizados por Janja envolvendo Elon Musk e Xi Jinping, no
entanto, levantaram diferentes questões.
Até que
ponto Janja representa o governo brasileiro, à medida em que não foi eleita e
nem tem cargo público? Além disso: quais os riscos (e as vantagens) de o Brasil
ter uma primeira-dama tão vocal quanto ela?
A BBC
News Brasil conversou com cientistas políticas que avaliaram a atuação de Janja
nos últimos dois anos e meio de governo. Em comum, elas concordam que parte das
críticas feitas a ela são resultado da ambiguidade em torno da condição de
"primeira-dama", uma vez que isto não é um cargo formal previsto na
Constituição Federal.
Elas
também afirmam que, à medida em que Janja se expõe opinando sobre diferentes
temas, ao contrário de outras primeiras-damas na história recente do Brasil,
ela fica passível às críticas em torno de sua atuação.
Por
outro lado, as especialistas também afirmam que uma parte considerável das
críticas sobre Janja seria resultado de uma mistura de machismo e misoginia que
perseguiria mulheres com engajamento político no Brasil e no mundo.
Procurada,
a Secretaria de Comunicação da Presidência da República enviou uma nota
afirmando que, como primeira-dama, Janja não ocupa cargo na administração
pública.
A nota
diz ainda que "ao longo da história, o cônjuge chefe do Executivo sempre
assumiu um papel representativo simbólico" e que "a atual
primeira-dama brasileira recebe tratamento idêntico ao conferido às que a
precederam, sendo reconhecida como figura pública de liderança social".
·
Quem é Janja?
Rosângela
Lula da Silva tem 58 anos, é cientista social e trabalhou na coordenação de
programas voltados ao desenvolvimento sustentável da estatal Itaipu Binacional,
no Paraná. Ela é a terceira mulher de Lula.
O
relacionamento dos dois veio à tona em 2019, quando o petista ainda estava
preso na Superintendência da Polícia Federal no Paraná, em Curitiba. Em 2022,
já depois de ser solto, Lula se casou com Janja, em uma cerimônia realizada em
São Paulo.
Ela
acompanhou Lula durante toda a campanha presidencial que resultou na vitória do
petista sobre Bolsonaro.
Os
primeiros meses na condição de primeira-dama foram marcados por uma polêmica.
No início do ano, Janja deu entrevistas afirmando que dezenas de móveis do
Palácio da Alvorada (residência oficial da Presidência da República) haviam
desaparecido durante a passagem da família do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL)
pelo imóvel.
A
informação, no entanto, foi desmentida pela ex-primeira-dama, Michelle
Bolsonaro e, em seguida, o próprio governo teve que admitir que os móveis
supostamente desaparecidos estavam em um depósito do Palácio.
Em
setembro de 2024, a Justiça Federal do Distrito Federal condenou Lula e Janja a
pagar R$ 15 mil à família Bolsonaro por danos morais relacionados às
declarações sobre o mobiliário.
Nos
meses que se seguiram, sua atuação voltou a chamar atenção por seus
posicionamentos em momentos considerados delicados do atual governo.
Em meio
à crise em torno das denúncias de assédio sexual supostamente praticado pelo
ex-ministro dos Direitos Humanos Silvio Almeida, Janja se manifestou à favor da
ministra da Igualdade Racial, Anielle Franco, ao postar uma foto em suas redes
sociais em que aparece beijando a testa de Franco.
·
"Sui generis"
O termo
"primeira-dama" vem sendo usado no Brasil nos mesmos moldes do
adotado pelos Estados Unidos, desde as primeiras décadas da república
norte-americana. Mas apesar de o termo ser de amplo uso no Brasil, o posto de
primeira-dama presidencial, suas limitações e atribuições, não estão previstos
na Constituição Federal.
Em meio
às polêmicas em torno da atuação de Janja nesta posição e à pressão da opinião
pública sobre suas viagens e sua agenda, a Advocacia-Geral da União (AGU)
divulgou uma orientação normativa sobre a atuação do "cônjuge do
presidente da República". O documento não cita o termo
"primeira-dama".
No
documento, a AGU diz que o "cônjuge" do presidente da República
exerce "um papel representativo simbólico em nome do Presidente da
República de caráter social, cultural, cerimonial, político e/ou
diplomático".
O
documento também indica o que especialistas apontam como uma
"ambiguidade" em torno desta posição.
Segundo
ele, o cônjuge do presidente da República não estaria autorizado a assumir
compromissos formais em nome do Estado brasileiro, mas permite que ele,
"em certa medida", represente o presidente de forma simbólica.
Ele
classifica a atuação do cônjuge como "sui generis" (única em seu
gênero).
"Esta
função sui generis é voluntária, não remunerada e não autoriza a assunção de
compromissos formais em nome do Estado brasileiro, mas lhe atribui a capacidade
de exercer, em certa medida, a representação do Presidente da República, no
âmbito de uma linguagem simbólica que detém significação reconhecida à luz do
costume", diz o documento.
A
ambiguidade continua à medida em que não há uma definição específica sobre qual
deve ser a estrutura de governo em torno da primeira-dama. Um levantamento
feito pelo portal Poder 360 em 2024 indicou que o custo das atividades de
Janja, incluindo salários e despesas com viagens e assessores era de R$ 2
milhões por ano.
Segundo
o levantamento, Janja teria o auxílio de oito servidores, entre assessores,
seguranças e jornalistas.
Para a
doutora em Sociologia e Filosofia Política pela Universidade de São Paulo (USP)
e pela Universidade de Granada, na Espanha, Jéssica Rivetti Melo, a falta de
uma definição mais específica sobre o papel da primeira-dama é um problema.
"O
que eu reivindico é que essa posição seja formalizada, porque a partir do
momento em que existe uma certa formalização, você tem protocolos efetivos de
como a mulher ou o acompanhante nessa posição tenha ou não que se posicionar
[...] Uma vez em que este é um papel protocolar simbólico, você não tem muito
como fazer cobranças", afirma à BBC News Brasil.
A
professora de Ciência Política da Universidade Federal de Alagoas (UFAL)
Luciana Santana lembra que o Brasil já teve primeiras-damas com perfis
protagonistas, como Ruth Cardoso, durante o governo de Fernando Henrique
Cardoso (1995 a 2002), e Michelle Bolsonaro, durante o governo de Jair
Bolsonaro (2019 a 2022).
"Ruth
Cardoso fazia isso muito bem porque ela tinha um papel muito delimitado por
Fernando Henrique, que era a atuação em projetos sociais [...]No caso da Janja,
esse papel não foi dado claramente e a vemos perpassando vários assuntos [...]
Michelle Bolsonaro tinha clareza sobre sua pauta, que era a das pessoas com
deficiência. Talvez, a ausência de uma pauta mais clara cause esses
ruídos".
Luciana
Santana diz, no entanto, que o atual momento do país também ajuda a explicar as
críticas a Janja. Enquanto Ruth Cardoso e Michelle Bolsonaro teriam tido uma
atuação mais discretas, Janja, por sua vez, teria um perfil mais altivo.
"A
atuação dela é questionada bastante porque o presidente Lula foi eleito num
momento de muita polarização política. Tem uma parcela da população que é muito
crítica a ela", diz a professora à BBC News Brasil.
Um
exemplo dessa polarização foi a atuação do ex-deputado federal Deltan Dallagnol
(Podemos-PR), ex-coordenador da Operação Lava Jato que prendeu Lula. Por meio
de advogados, ele fez diversos pedidos de acesso à informação sobre a agenda de
Janja enquanto exerceu seu mandato de deputado.
Em maio
de 2023, no entanto, ele foi cassado pelo Tribunal Superior Eleitoral (TSE) por
crimes eleitorais.
·
Excessos?
Na
avaliação de Luciana Santana, o episódio envolvendo Xi Jinping não deveria ser
considerado um erro grave na conduta de Janja. Já as ofensas dirigidas pela
primeira-dama a Elon Musk, sim.
"Ela
não poderia ofendê-lo. Tanto que coube ao presidente Lula tentar remediar [...]
ali houve, claramente, um excesso. Uma fala que ela, talvez, pudesse ter uma
mesa de bar, de forma mais livre, mas não no exercício da figura de
primeira-dama".
A
menção a Lula feita por Santana é relativa à declaração do presidente após as
falas de Janja sobre Elon Musk.
"Eu
queria dizer para vocês que essa é uma campanha em que a gente não tem que
ofender ninguém, não temos que xingar ninguém", disse Lula em um evento
naquela mesma semana.
O
comportamento do presidente foi semelhante agora. Após o episódio na China, ele
saiu, novamente, em defesa de Janja.
Em
entrevista coletiva em Pequim, Lula disse que teria sido ele que iniciou a
conversa sobre o TikTok com Xi Jinping e que Janja poderia falar sobre o
assunto porque entende mais do que ele sobre o tema.
"O
fato da minha mulher pedir a palavra é porque ela não é cidadã de segunda
classe. Ela entende mais de direito digital do que eu e resolveu falar",
disse o presidente.
"Eu
perguntei ao companheiro Xi Jinping se era possível ele enviar para o Brasil
uma pessoa da confiança para a gente discutir a questão digital - sobretudo o
TikTok", declarou o presidente. "E aí a Janja pediu a palavra para
explicar o que está acontecendo no Brasil, sobretudo contra as mulheres e as
crianças. Foi só isso."
Segundo
o presidente brasileiro, a resposta de Xi Jinping foi a de que o Brasil tem o
direito e o poder de fazer a regulamentação das redes sociais e até banir a
plataforma do país.
Para a
professora de Relações Internacionais da ESPM Denilde Holzhacker, parte das
críticas a Janja decorrem do que ela chama de confusão entre seu papel de
primeira-dama e de militante política.
"Há
uma confusão entre a pessoa que tem uma militância política histórica e o seu
papel como esposa de um presidente. Esse é que é o grande problema que gera as
críticas com relação a ela".
Para
Luciana Santana, não há dúvidas de que Janja, assim como outras
primeiras-damas, é uma agente política e, como tal, vai atrair críticas.
"Queira
ou não queira, ela (Janja) tem uma representatividade política. Ela assume esse
papel e acaba recebendo os bônus e o ônus da função política que ela
exerce."
·
Machismo e misoginia
Todas
as especialistas ouvidas pela BBC News Brasil disseram avaliar que um dos
elementos que também ajuda a explicar o escrutínio sobre Janja é o machismo.
"Todas
as mulheres sofrem misoginia no ambiente político", diz Denilde
Holzhacker, da ESPM.
Para
Jéssica Rivetti Melo, Janja receberia tantas críticas por, em tese, romper com
um padrão de atuação de primeiras-damas que ficou conhecido após uma reportagem
descrevendo a ex-primeira-dama Marcela Temer, mulher do ex-presidente Michel
Temer (MDB): "bela, recatada e do lar".
Segundo
esse padrão, caberia à primeira-dama brasileira uma atuação discreta e quase
figurativa, a exemplo do que também teria ocorrido durante os dois primeiros
mandatos de Lula, quando ele era casado com Marisa Letícia, sua segunda esposa,
que faleceu em 2017.
"Janja
recebe diversos comentários misóginos e machistas porque ela rompe com as
expectativas de que ela fosse agir como Marisa Letícia, que era uma agente
política muito mais discreta e que atuava mais nos bastidores políticos."
Para a
socióloga, esse machismo não afetaria apenas Janja, mas todas as mulheres que
fazem parte do que ela classifica como "elite política".
"Quando
as mulheres estão em posição de destaque, elas são alvos mais fáceis de
críticas, de discursos odiosos", diz.
Para
Luciana Santana, apesar de reconhecer que Janja está sujeita à crítica por
assumir um papel de agente política, ela diz acreditar que, por ser mulher, a
primeira-dama tem um tratamento diferente do que teria se fosse homem.
"Todos
os agentes que se colocam nessa posição de representantes do Estado estão
sujeitos a erros e acertos. O que eu vejo é que o fato de ela ser mulher tem um
peso que a gente não pode desconsiderar", diz.
Jéssica
Rivetti Melo diz que o machismo não afetaria apenas a atuação de Janja.
"Temos
visto recentemente que as mulheres que ocupam o governo do Lula têm sido as
mais afetadas, principalmente nesse terceiro governo dele. São elas que são
depostas dos espaços ministeriais e dos cargos de chefia", afirma.
·
Vantagens e desvantagens
Para
Luciana Santana, a forma como Janja ocupa o cargo de primeira-dama pode trazer
vantagens e desvantagens para o governo.
"Um
dos lados positivos é que, a depender da formação e da experiência prévia da
primeira-dama, ela pode catalisar determinadas pautas e contribuir na ampliação
do diálogo com diversos setores da sociedade", diz.
Por
outro lado, diz a professora, a proximidade de Janja com os movimentos sociais
pode acabar criando problemas para o governo.
"Justamente
por estar muito próxima a movimentos sociais, talvez ela não consiga encontrar
o limite entre ser ativista e ser primeira-dama. Ela precisa entender que o
govenro é heterogêneo e com interesses que, muitas vezes, precisam ser
acomodados", complementa.
Para
Denilde Holzhacker, o principal risco à forma como Janja vem ocupando o cargo
de primeira-dama é o impacto negativo doméstico.
"Nos
casos de Elon Musk e Xi Jinping, os impactos são muito mais internos que
externos. Ela é foco porque tem essa posição e assumiu o papel de porta-voz sem
as amarras institucionais que Lula tem. Ela assumiu esse papel e por isso gera
as críticas pelo lado da direita e de outros opositores", diz.
Por
outro lado, Denilde também vê possíveis vantagens na forma como Janja se
comporta.
"De
outro lado, ela cria cria na militância a ideia de que tem alguém preocupado e
voltado para defender a população de situações consideradas prejudiciais."
Para
Jéssica Melo, Janja acaba se convertendo em um alvo no governo Lula.
"Estamos
vivendo um momento de neoconservadorismo e avanço do autoritarismo. Quando a
gente vê uma mulher com uma posição mais forte [...] obviamente, ela vai ser o
caminho mais fácil para se atingir e criticar o governo Lula. As mulheres
sempre vão ser a ponta mais fraca".
Fonte:
BBC News Brasil

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