História
do Capitalismo sem Capital
Não é
incomum historiadores do capitalismo narrar a história de sua emergência sem
apontar de onde vem a acumulação de capital-dinheiro prévia ao capitalismo. É
equivocado falar a respeito do sistema capitalista sem falar de dinheiro e/ou
da monetização dos negócios burgueses.
Talvez
essa investigação parcial tenha dado margem ao anacronismo da literatura
crítica à “financeirização”. Vou contrapor aqui a crítica à narrativa linear do
surgimento do capitalismo: a acumulação primitiva de capital-dinheiro (antes da
consolidação do modo de produção capitalista) é negligenciada ou tratada como
mera precondição, gerada pelo comércio monetizado, quando, na verdade, ela é
parte constitutiva do processo histórico.
O
capital-dinheiro antecede o capitalismo como modo de produção, em vários
séculos antes da revolução industrial do XVIII para o XIX, e emerge em
formações sociais onde a produção não é ainda capitalista, mas onde já operam
formas mercantis com moedas pré-capitalistas. A acumulação de capital-dinheiro
tem origens múltiplas.
Uma foi
através do comércio de longa distância. Desde a Antiguidade e, mais
intensamente, na Baixa Idade Média, comerciantes italianos, muçulmanos e
bizantinos acumulavam grandes somas em dinheiro a partir da mediação entre
zonas econômicas desconectadas. Gênova, Veneza, Florença, Bruges e outras
cidades eram centros de acumulação mercantil e financeira desvinculada da
produção direta.
Outra
foi a exploração colonial e pilhagem. A conquista das Américas inaugurou uma
forma não-produtiva de acumulação, centrada na violência sistêmica. Houve a
expropriação de terras dos nativos, com os indígenas colocados em trabalho
forçado, a escravização de africanos e o saque de metais preciosos.
Essa
acumulação violenta se deu por meio de Estados fiscal-militares. Também
fortaleceu o aparecimento de mercados financeiros na Europa.
Quanto
ao sistema bancário e à dívida pública, os Estados europeus recorreram a
mecanismos de crédito e emissão de títulos, para financiar guerras, navegações
e administrações. A consolidação de centros bancários (como Gênova e Antuérpia)
permitiu a transformação de riqueza mercantil em capital-dinheiro a ser
investido.
Os
arrendamentos tinham obrigações de pagar impostos e a usura acabou por ser
institucionalizada. A prática de arrendamento tributado e a cobrança de juros
sobre empréstimos aos reis e à nobreza criaram fluxos contínuos de dinheiro
dissociados da produção material.
Falar
em capitalismo sem falar em dinheiro (e sua forma capital) é um equívoco,
derivado de leituras de autores sem destacar essa relação estrutural. Abstraem
o capital como “produção” isolada, sem sua mediação monetária ou adotam uma
perspectiva smithiana, na qual a moeda surge apenas como facilitadora do
“troca-troca” mercantil como unidade de conta e meio de pagamento.
Na
verdade, o dinheiro como capital-dinheiro, isto é, reserva de valor da riqueza
financeira, é central no capitalismo. Atua não apenas como meio de circulação,
mas como valor a ser valorizado em mercados (D–M–D’ em Marx).
O
capitalismo só se torna dominante quando o dinheiro assume a forma de capital
sistematicamente investido para obter mais dinheiro. Deixa de ser apenas como
meio de troca e unidade-de-conta e atua como reserva de valor, ou seja,
riqueza.
Marx,
em O Capital (Livro I, capítulo sobre a Acumulação Primitiva, 1867), rejeita a
ideia de o capitalismo emergir da frugalidade dos empreendedores, tal como veio
a ser defendido por Max Weber em A Ética Protestante e o Espírito do
Capitalismo (1905). Em vez disso, identifica processos violentos e
expropriadores como fundadores.
Destaca
os cercamentos de terras (enclosures) na Inglaterra, a expropriação camponesa e
proletarização forçada, a escravidão transatlântica e a exploração colonial, o
endividamento dos Estados e a “financeirização” embrionária. Esses processos
constituem a base histórica da acumulação inicial de capital-dinheiro, sem a
qual o modo capitalista de produção não poderia se generalizar.
Portanto,
é sim um erro teórico e histórico falar de capitalismo sem considerar a
centralidade do dinheiro como forma social, especialmente, do capital-dinheiro
como peça fundamental. A monetização das relações, o crédito, a dívida pública,
os bancos e a pilhagem colonial não são antecedentes exógenos, mas condições
constitutivas da gênese e reprodução do capitalismo.
As
monarquias absolutistas dos séculos XVI a XVIII se financiavam por meio de uma
combinação complexa de receitas fiscais, monopólios reais, dívidas públicas e
arranjos com grupos privados. Era um contexto no qual o Estado moderno ainda
estava em formação e a separação entre finanças públicas e privadas era
ambígua.
Entre
as fontes de financiamento das Monarquias Absolutistas já eram estabelecidas as
receitas fiscais por meio de tributos diretos: incidiam, em teoria, sobre toda
a população, mas na prática eram fortemente regressivos. Os camponeses e a
plebe urbana pagavam o grosso da carga tributária. A nobreza e o clero
costumavam ser isentos ou negociavam o pagamento de quantias fixas.
Os tributos indiretos, como impostos sobre o
sal, vinho, pão, ou pedágios, eram amplamente utilizados. Desde então, incidiam
sobre o consumo popular.
Apenas
impostos extraordinários sobre os nobres ricos, como a taille na França ou a
alcabala na Espanha, podiam ser aumentados em tempos de guerra.
As
coroas detinham monopólios sobre atividades como sal, tabaco, metais preciosos,
mineração, alfândegas etc. Como concessões, esses monopólios eram arrendados a
particulares. Pagavam adiantado ao rei em troca do direito de explorar a
atividade em princípio pública. O arrendamento fiscal não vem de hoje…
A
dívida pública primitiva, conhecida como “empréstimos obrigatórios” ou dívida
perpétua (juros vitalícios), acontecia por meio da emissão de títulos como os
juros compostos espanhóis (juros sobre juros) ou os rentes franceses (rendas
vitalícias pagas pelo Estado). Tais títulos eram vendidos a nobres
endinheirados, banqueiros e burgueses mercantis, que assim financiavam a Coroa
em troca de uma renda estável e prestígio.
As
monarquias frequentemente se financiavam por meio de empréstimos de grandes
casas bancárias europeias, sobretudo italianas e alemãs. Ficaram famosos os
banqueiros genoveses na Espanha (século XVI) como também os Fugger e Welser do Império Alemão ao
financiarem Carlos V. Esses bancos antecipavam recursos com garantia em
impostos futuros, minas de prata ou direitos de exploração colonial.
A
monarquia absolutista recorria à venda de cargos públicos (e seus e
privilégios) como forma de levantar fundos sem recorrer ao Parlamento. Na
França, isso foi institucionalizado sob Richelieu e depois Colbert). Criava uma
nobreza de toga (noblesse de robe), composta por burgueses enriquecidos.
Quem
pagava os tributos eram principalmente os camponeses, especialmente, na França
e na Europa Central, porque arcavam com o maior peso fiscal, tanto em trabalho
compulsório quanto em dinheiro. A burguesia urbana pagava impostos comerciais,
taxas sobre atividades produtivas e consumo. A nobreza e o clero costumavam ser
isentos, mas podiam fazer “contribuições voluntárias” ou empréstimos ao rei,
especialmente em tempos de crise bélica.
Nesses
tempos, quem comprava os títulos de dívida pública era a nobreza rica, porque
desejava manter rendimentos estáveis sem depender de terras. O burgueses
mercantis viam nos títulos uma forma de segurança e status, além de reforçar
sua proximidade com a corte.
As
instituições religiosas e as fundações de caridade investiam suas rendas em
títulos da dívida pública para garantir fluxos regulares.
Em
síntese, as monarquias absolutistas operavam em um regime fiscal predatório e
regressivo. Extraía recursos principalmente das camadas populares, enquanto se
financiava por meio de alianças estratégicas com elites mercantis e nobres
credoras. A dívida pública embrionária funcionava tanto como instrumento de
financiamento do Estado quanto como mecanismo de integração das elites
financeiras ao poder régio, antecipando a lógica capitalista de “Estado
fiscal-militar”. Aqui, até hoje,
militares querem intervir no poder civil e ditar regras…
• Efeitos Sistêmicos da Desvalorização do
Dólar
Quando
o dólar se deprecia diante outras moedas nacionais, os habitantes de seus
países se tornam mais ricos mesmo caso não exerçam o poder de compra
internacional? Essa é uma pergunta exigente de análise sob diferentes níveis de
decisões no sistema monetário internacional e decompor a resposta com cuidado,
dentro de uma abordagem sistêmica da complexidade.
Quando
o dólar se deprecia em relação a outras moedas nacionais, isso significa cada
unidade de dólar comprar menos das moedas estrangeiras. Consequentemente, bens
e serviços importados se tornam mais caros, para os norte-americanos, e para os
habitantes dos demais países, seus bens ficam mais baratos em dólar, possível
de estimular exportações.
Ao
considerar os habitantes de países cujas moedas se valorizaram frente ao dólar,
se eles não exercem o poder de compra internacional, ou seja, não compram em
dólar ou fora de seu país, o efeito imediato não é um enriquecimento real.
Afinal, os preços internos em sua moeda local seguem regidos por sua própria
estrutura produtiva e de preços.
Mas há
efeitos sistêmicos importantes, porque as importações se tornam mais baratas.
Um real mais forte, por exemplo, torna importações em dólar mais acessíveis e
isso pode reduzir preços internos de bens importados ou influenciados por
commodities (combustíveis, eletrônicos etc.). Ocorre uma redução do custo de
vida e assim aumenta o poder de compra interno real mesmo sem gasto externo.
Com
menor pressão inflacionária, uma moeda mais valorizada tende a conter a
inflação de custos importados. Isso melhorara renda real das famílias, mesmo
caso seus salários nominais não mudem.
Acontece
valorização patrimonial relativa. Se um indivíduo tem patrimônio em moeda local
valorizada (ações, imóveis), sua conversão em dólar aumenta, ainda se ele nunca
realizar essa conversão. Isso altera a posição relativa internacional de
riqueza, especialmente em rankings globais de milionários.
Discute-se
se há um “efeito riqueza” psicológico e político. Mesmo sem consumir
internacionalmente, o fortalecimento da moeda nacional cria a sensação de
enriquecimento relativo, especialmente entre as classes altas com acesso à
informação financeira global.
Aumenta
o prestígio internacional da moeda e da economia local e talvez influencie o
comportamento de consumo e investimento internamente. Em sistemas periféricos,
essa valorização reforça o consumo de bens simbólicos internacionais, mesmo
ainda sendo eles produzidos localmente.
Esta é
uma vantagem frágil e potencialmente instável. A valorização cambial prejudica
exportadores, minara indústria e aumenta o desemprego a médio prazo.
Em
países com alta dependência de commodities, essa valorização costuma ser
temporária e reverter rapidamente. Portanto, o “enriquecimento” é relativo e
conjuntural, não necessariamente sustentável.
A
conclusão sistêmica é os habitantes de países cujas moedas se valorizam em
relação ao dólar tenderem a ficar relativamente mais ricos — mesmo sem comprar
internacionalmente —, devido ao aumento do poder de compra doméstico, à
desinflação e à revalorização patrimonial. Porém, trata-se de um efeito
sistêmico e dinâmico, quase sempre transitório e dependente de como essa
valorização se encaixa na estrutura produtiva e nas vulnerabilidades externas
do país.
Outra
dimensão ocorre quando os proprietários estrangeiros de ações nos EUA perderem
capital com a perda de valores de mercado e eles poderem compensar se o dólar
estiver apreciado diante a sua moeda nacional. Se não for o caso, ao contrário,
haverá uma retroalimentação com profecia autorrealizável com a venda de ações e
o repatriamento de capital.
Essa
questão toca o cerne das interações entre os mercados financeiros globais, o
sistema monetário internacional e os mecanismos de retroalimentação (feedback
loops). Eles tornam os sistemas complexos tão sensíveis e, por vezes,
instáveis.
Vou
desconstruir a questão por partes e, em seguida, reconstruir a lógica sistêmica
proposta na troca compensatória: perda de capital em ações ou títulos de dívida
pública norte-americanos versus valorização cambial do dólar.
Imagine
um investidor estrangeiro, por exemplo, europeu, com ações nos EUA: suas ações
caem 10% em valor em dólares, mas, ao mesmo tempo, o dólar se valoriza 10%
frente ao euro. O resultado líquido será nenhuma perda (ou mesmo um pequeno
ganho) quando o investidor converter os dólares de volta para sua moeda. Logo,
em termos de moeda doméstica, a perda pode ser compensada (total ou
parcialmente) pela valorização do dólar.
Contudo,
isso depende de quando o investidor realiza a conversão – se mantém dólares,
ainda incorre risco cambial – se a valorização do dólar é suficiente para
cobrir a perda, além da confiança futura no dólar e na bolsa de valores
americana.
Quando
essa compensação não acontece (ou é incerta), se o dólar não se valoriza o
suficiente, ou o investidor acredita em o dólar se desvalorizar no futuro, a
perda em ações se soma a uma possível perda cambial futura. Isso cria um
incentivo a vender ações imediatamente para preservar valor.
A venda
gera pressão baixista adicional nos ativos financeiros. O capital é repatriado
e implica na maior venda de dólares no mercado cambial.
A
retroalimentação (feedback loop) refere-se à profecia autorrealizável como
fosse o seguinte mecanismo: queda de preços de ações → vendas por
estrangeiros → repatriação
→ pressão
sobre o dólar (venda) → queda do dólar → mais vendas para
evitar perda cambial.
Este
ciclo retroalimenta a crise, e os agentes, ao tentarem se proteger, antecipam
os efeitos e os intensificam. Isso é um exemplo típico de profecia
autorrealizável. O sistema entra em estado de instabilidade dinâmica, onde
pequenos choques se amplificam.
É
possível ocorrer o efeito contrário: valorização do dólar como refúgio.
Tradicionalmente, desde o pós-guerra, em contextos de pânico global, o dólar
(ou os Treasuries) é visto como “porto seguro”. Mesmo com perdas em ações, os
estrangeiros costumavam manter seus ativos em dólar, apostando em nova
valorização da moeda americana.
Isso
sustentava o dólar e, temporariamente, até o valor dos ativos em dólar.
Provocava o chamado “flight to quality”: fuga para ativos líquidos, seguros e
denominados em dólar ou títulos de dívida pública do Federal Reserve (Banco
Central dos Estados Unidos).
A
anterior hierarquia monetária internacional como estabilizadora ou
amplificadora está sendo questionada pelas retaliações econômicas e/ou
tarifárias do governo de extrema-direita norte-americano. Os EUA, por emitirem
a moeda de reserva global, atraem capitais em momentos de crise, mesmo quando
sua economia estava em turbulência;
Isso
permitia os EUA financiem déficits com facilidade e mantinham a centralidade do
dólar. Já países fora do centro, no chamado Sul Global, sofriam mais
intensamente com os ciclos de repatriação e desvalorização cambial.
A
segunda conclusão sistêmica é a valorização cambial do dólar ter o potencial
de, transitoriamente, compensar as perdas de capital em ações para investidores
estrangeiros. Mas, se essa compensação não for crível ou suficiente, inicia-se
um processo de vendas em massa, repatriação de capital e desvalorização do
dólar.
Ele se
realimenta e amplifica. Configura uma dinâmica típica de profecia
autorrealizável em sistemas financeiros complexos. Esse mecanismo é central
para entender crises financeiras globais e os fluxos de capital entre centro e
periferia.
Fonte:
Por Fernando Nogueira da Costa, no Jornal GGN

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