Francisco
Fernandes Ladeira: Globo - sessenta anos de manipulações
No
último dia 26 de abril, a Rede Globo completou sessenta anos de existência. No
entanto, a história da maior emissora do país remete a 1957, quando o
empresário e jornalista Roberto Marinho obteve a aprovação para concessão de um
canal de televisão (requerida pela primeira vez seis anos antes).
Na
época, segundo a professora da UFMG, Ângela Carrato, era quase certo que a
concessão obtida por Marinho iria para a Rádio Nacional, o que só não foi
concretizado, principalmente, devido à pressão feita junto ao governo federal
pelo magnata das comunicações, Assis Chateaubriand, contrário à criação de
emissoras não comerciais no Brasil. Assim, teríamos uma grande rede de
televisão pública, possivelmente comprometida com os interesses nacionais.
Como o
“se” não existe, é importante lembramos os estragos causados pela Rede Globo.
Como é de amplo conhecimento do público, a emissora da família Marinho foi uma
espécie de canal oficial da ditadura militar, exaltando “feitos” e ocultados as
atrocidades do regime.
Já o
crescimento da Globo, em grande medida, pode ser creditado a um acordo com o
grupo estadunidense Time Life, considerado ilegal, pois burlava o artigo 160 da
Constituição Federal de 1946, segundo o qual uma empresa estrangeira não
poderia participar da orientação intelectual e administrativa de sociedade
concessionária de televisão. Não por acaso, parcela considerável da programação
da Vênus Platinada é ocupada por enlatados dos Estados Unidos e os noticiários
internacionais seguem de maneira fidedigna a agenda geopolítica imperialista.
Nessa linha editorial submissa, o que é bom para Washington, automaticamente é
bom para nós.
Historicamente,
a Globo se vende como a tela onde o Brasil se vê; a emissora da família
brasileira. Segundo Mario Sergio Conti, a clássica tríade noturna
“telenovela-telejornal-telenovela” é parte da estratégia para aproximar os
lares brasileiros da programação da Rede Globo, pensada tanto para as “donas de
casa”, quanto para os “chefes de família”. Às mulheres, as novelas; aos homens,
o Jornal Nacional.
Às
crianças e adolescentes, foram reservados os anteriormente citados enlatados
estadunidenses – com os desenhos animados e os filmes da Sessão da Tarde. É a
socialização para o American Way of Life; buscando inculcar nos
telespectadores, desde a mais tenra idade, padrões de comportamento e valores
culturais típicos dos Estados Unidos.
A Globo
também se orgulha de acompanhar todas as vitórias do esporte brasileiro. Mas
contribuiu para a gourmetização do futebol (expulsando o povão dos estádios,
agora rebatizados como arenas), não raro compactuou com erros grotescos de
arbitragem em favor de clubes do eixo Rio-São Paulo e condiciona a transmissão
de determinados eventos à adequação à grade de programação, fazendo, por
exemplo, com que a Maratona de São Silvestre perdesse a mística de ser
disputada quase na virada do ano, sendo deslocada para o inócuo horário da
manhã.
Do
mesmo modo, como bom representante dos interessantes ianques – e,
automaticamente, de sua nova face, a cultura woke – a Globo se vende como
adepta da representatividade. Mas é fato que, ao longo das décadas, suas
telenovelas foram importantes para replicar em larga escala estereótipos e
estigmas de minorias sociais que hoje cinicamente diz defender.
Como
aponta o título deste artigo, são sessenta anos de manipulações. As mais
clássicas, lembradas no documentário britânico “Muito Além do Cidadão Kane” (Beyond
Citizen Kane), são as coberturas das greves do ABC, no final dos anos 70,
que ouviram só patrões e ocultaram as reivindicações dos trabalhadores
(contrariando o direito ao contraditório), o chamado “Caso Proconsult” (quando
a Globo foi cúmplice de tentativa de fraudar as eleições para governador do Rio
de Janeiro, em 1982), o comício pelas Diretas Já! noticiado como se fosse
comemoração pelo aniversário da cidade de São Paulo e a manipulação do último
debate presidencial de 1989, em favor de Fernando Collor contra Lula.
Claro
que, nem sempre, tudo sai como previsto na programação da Rede Globo. No dia do
segundo turno da citada eleição presidencial de 1989, Lobão, quando ainda não
havia sido abduzido pela extrema direita, fez propaganda eleitoral para Lula no
Domingão do Faustão. Cinco anos depois, em pleno Jornal Nacional, Cid Moreira
teve que ler um direito de resposta de Leonel Brizola a um editorial calunioso
do jornal O Globo, com palavras que escancaravam os históricos
conchavos e artimanhas do empreendimento televisivo da família Marinho. Em
2018, a tela da Globo teve que transmitir, “ao vivo e a cores”, o desfile da
Escola de Samba Paraíso do Tuiuti, que denunciou para o mundo o golpe contra
Dilma Rousseff.
Por
falar em Brizola, o político gaúcho talvez tenha sido o principal desafeto da
Rede Globo. Em 1983, o então governo do Rio de Janeiro, comandado por Brizola,
deu início à construção do sambódromo, objetivando que fosse utilizado já para
o carnaval seguinte. Como sempre age contra os interesses nacionais e
populares, a Globo boicotou a iniciativa do governo fluminense, noticiando
sistematicamente que a obra não ficaria pronta para o carnaval ou teria
problemas em sua estrutura. Mas o velho Brizola deu o troco. Com o
sambódromo pronto, faltando poucos dias para o início dos desfiles, o
governador cancelou os direitos de transmissão da Rede Globo, cedendo-os, com
exclusividade, para a (hoje extinta) TV Manchete.
Também
é de Brizola a frase-síntese sobre como devemos nos portar frente aos
noticiários da Globo: “Quando vocês tiverem dúvidas quanto a que posição tomar
diante de qualquer situação, atentem: Se a Rede Globo for a favor, somos
contra. Se for contra, somos a favor”.
Brizola
já chegou a declarar que, caso eleito presidente da República, seu primeiro ato
seria suspender a concessão da Rede Globo – que lhe foi dada de maneira
inconstitucional, com capital privado internacional.
Como eu
disse, o “se” não existe. Mas não custa nada imaginar como seria o Brasil sem a
Rede Globo…
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Comunicação, golpes e genocídios: do rádio de Ruanda aos algoritmos do capital.
Por Richardson Pontone
Ao
longo do século XX – e adentrando este XXI marcado por colapsos múltiplos – a
comunicação tem sido mais do que uma arena de disputa: é um dispositivo central
na construção de hegemonias, golpes e genocídios. Se a modernidade nos prometeu
esclarecimento por meio dos meios de massa, o que testemunhamos foram formas
cada vez mais sofisticadas de manipulação, silenciamento, doutrinação e morte.
A palavra, antes abrigo, tornou-se arma; a escuta, território colonizado; a
imagem, fábrica de consenso.
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Ruanda, 1994: o microfone como facão
Em
Ruanda, entre abril e julho de 1994, cerca de 800 mil pessoas foram mortas em
um genocídio que teve como uma de suas principais armas a Radio Télévision
Libre des Mille Collines (RTLM). Era um veículo privado, mas articulado com o
poder estatal hutu. Os locutores zombavam dos tutsis, incitavam o ódio étnico,
liam listas de nomes ao vivo e davam ordens — veladas ou explícitas — para
matar. “Cortem as árvores!” era o chamado. Árvores eram pessoas. O rádio não
apenas informava — ele organizava o extermínio.
Num
país com baixa taxa de alfabetização e uma forte tradição oral, o rádio era o
meio mais penetrante, cotidiano e confiável. Estava nos bares, nas casas, nas
feiras, nos vilarejos. Sua linguagem coloquial e envolvente fazia da mensagem
algo íntimo, quase doméstico. A RTLM falava como o povo e ao povo, tornando o
discurso de ódio parte da rotina. Ali, o microfone era uma metralhadora de
ondas. A machete era empunhada, mas guiada pela voz. O caso de Ruanda escancara
a potência perversa da comunicação quando capturada por projetos genocidas — e
revela como um meio popular pode ser apropriado para instaurar o terror com
aparência de normalidade.
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Joseph Goebbels: o arquiteto da mentira em massa
Três
décadas antes, na Alemanha nazista, Joseph Goebbels já havia elaborado uma
sofisticada máquina de propaganda que dominava todos os meios à disposição:
rádio, imprensa, cinema, artes visuais. Goebbels compreendia, com frieza
instrumental, o poder da repetição, da emoção e da simplificação para manipular
massas. “Uma mentira repetida mil vezes torna-se verdade”, dizia.
Sob o
regime nazista, o rádio foi popularizado e barateado pelo governo. As mensagens
de Hitler ecoavam nas casas, nos cafés, nas praças. As multidões eram formadas
por palavras. O ódio era coreografado pela narrativa oficial. A comunicação era
vertical, uníssona, esmagadora. Ela não apenas sustentava o regime: ela o
constituía.
Walter
Benjamin já advertia, em sua célebre análise sobre a reprodutibilidade técnica,
que os meios de massa, ao invés de promoverem a emancipação, poderiam servir à
estetização da política e à naturalização da guerra: “O fascismo estetiza a
política. A resposta do comunismo deve ser a politização da arte.”
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Getúlio Vargas e o DIP: a voz do Estado Novo
Inspirado
no fascismo europeu, o Estado Novo brasileiro (1937–1945) criou o Departamento
de Imprensa e Propaganda (DIP), responsável por censurar, controlar e produzir
conteúdos para os meios de comunicação. O rádio foi nacionalizado como
instrumento de doutrinação. Vargas construiu uma imagem de “pai dos pobres”,
cultivada por programas, canções e discursos cuidadosamente roteirizados.
O DIP
não apenas calava vozes dissidentes, como também moldava uma memória oficial,
um imaginário de país. Era um laboratório de subjetividades. A comunicação
estatal varguista produzia consenso por sedução e imposição, ocultando
perseguições, torturas e autoritarismos sob a máscara da modernização nacional.
Foucault
diria que não há poder sem saber, nem saber que não seja atravessado por
relações de poder. O DIP produzia saberes que organizavam a vida — e a morte —
dos sujeitos políticos no Brasil do século XX.
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Das ondas ao código: algoritmos da dominação
No
presente, vivemos uma mutação tecnológica que desloca, mas não rompe, a lógica
de controle comunicacional. Plataformas como Facebook, X (antigo Twitter),
YouTube e TikTok tornaram-se os novos aparelhos ideológicos do capital. A
lógica algorítmica prioriza engajamento, não verdade; polarização, não diálogo;
emoção, não razão.
Essa
arquitetura de vigilância e manipulação tem sido instrumentalizada por governos
autoritários, milícias digitais e grandes corporações. Casos como o genocídio
dos rohingyas em Mianmar via Facebook, a ascensão do bolsonarismo no Brasil e a
invasão do Capitólio nos EUA mostram como as redes digitais são arenas de
guerra híbrida e desinformação em massa.
Achille
Mbembe, ao refletir sobre o necropoder, nos ajuda a compreender como o controle
da tecnologia e da comunicação está hoje ligado diretamente à produção de
mortes em massa — sejam elas físicas ou simbólicas. Os algoritmos, como
extensões do poder colonial, decidem quem deve viver, quem deve morrer e quem
deve ser silenciado.
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Globo
Em
2025, as Organizações Globo completam 100 anos de existência. A televisão, seu
principal veículo, faz 60. Poucas empresas de comunicação no mundo mantiveram,
por tanto tempo, uma relação tão estreita com os centros de poder político e
econômico. Desde o apoio entusiástico ao Golpe de 1964 — omitindo, manipulando
e legitimando a repressão — até o silêncio deliberado sobre as Diretas Já em
seus momentos iniciais, a Globo operou como parceira estratégica das elites
conservadoras. Em 1989, fabricou Collor como o “caçador de marajás” e escondeu
o escândalo que o derrubaria. Nas décadas seguintes, seu jornalismo oscilou
entre o moralismo seletivo e a defesa dos interesses de mercado.
No
ciclo mais recente, protagonizou uma cobertura alucinada da Operação Lava Jato,
elevando Sergio Moro à condição de herói nacional e naturalizando os métodos de
lawfare — judicialização seletiva da política, ataques à soberania e desmonte
de direitos sociais. Ao dar palco privilegiado a promotores, juízes e
vazamentos, a emissora foi cúmplice ativa da desestabilização democrática que
culminou no impeachment de Dilma Rousseff e na ascensão da extrema direita.
Hoje,
sob pressão dos movimentos sociais, feministas, negros, indígenas, LGBTQIA+ e
periféricos, a Globo tenta ressignificar sua imagem pública. Veste um verniz
progressista: fala de diversidade, inclusão, antirracismo. Mas o faz com o
cálculo frio de quem conhece o mercado e sabe que a audiência cobra
posicionamento. A diversidade, nesse caso, é estética, mas não estrutural. É
agenda, mas não transformação. A Globo continua a mesma: uma máquina de poder,
sustentada por privilégios históricos, que se adapta ao clima do tempo apenas
para manter seus lucros e sua influência. Um império de vidro com alma de
chumbo.
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A disputa pela palavra
A
comunicação nunca foi neutra. É território de conflito, campo de batalha
simbólica. Contra a hegemonia do discurso dominante — estatal, corporativo,
colonial — insurgem vozes dissonantes: rádios livres, mídias populares,
documentários, podcasts como trincheiras de denúncia. Esses experimentos não
apenas informam, mas desorganizam o silêncio imposto, desconstroem as versões
oficiais, reencenam a história sob outro ponto de vista.
Comunicar,
aqui, é um gesto político. É disputar o sentido, desafiar a norma, reocupar os
códigos com a linguagem dos vencidos. Não se trata de idealizar os meios
alternativos, mas de reconhecer sua potência como forma de insubordinação
estética e ética.
Podemos
— e devemos — ir além: criar nossas próprias redes, plataformas abertas e
livres, que não apenas furem a bolha, mas recusem a lógica da vigilância e do
capital. Tecnologias a serviço do comum, com acesso real, usabilidade
inclusiva, autonomia e horizontalidade como princípios fundantes. Comunicação
como espaço de reinvenção coletiva — e não mais como arma de dominação.
É
preciso lembrar, ainda, que os espaços informacionais não se esgotam nas redes
sociais. Estas, muitas vezes colonizadas por dinâmicas hedonistas,
individualistas e neoliberais, reforçam o espetáculo da aparência e não a
substância da partilha. Nossos territórios comunicacionais precisam ir além do
feed e do like — precisam encarnar o corpo a corpo das praças, das assembleias,
das rádios comunitárias, dos muros, das rodas de conversa, dos becos e vielas
onde ainda pulsa o verbo insurgente.
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Epílogo: o que ainda pode a palavra
Nada
está garantido. O mesmo microfone que espalha morte pode convocar a vida. A
mesma rede que vigia pode ser ocupada. O mesmo algoritmo que segrega pode ser
hackeado. Ainda que os grandes meios se esforcem para manter o mundo como está,
moldado ao gosto do lucro e do privilégio, seguem emergindo vozes que recusam o
silêncio, fissuras por onde escapa o grito, redes subterrâneas de solidariedade
que insistem em reinventar a linguagem e o futuro.
A
comunicação que queremos não será dada: será construída no conflito. Ela não
virá das torres, mas dos barracos, dos quilombolas, dos acampamentos, das
aldeias, das escolas ocupadas, dos coletivos periféricos, das assembleias
estudantis, das comunidades em luta. Será uma comunicação com cheiro de terra,
feita de corpo presente e palavra partilhada, de escuta radical e invenção
cotidiana.
Entre o
ruído das armas e o ruído dos mercados, ainda pode haver voz. Voz que não
negocia com a mentira nem com a indiferença. Voz que se faz ponte, abrigo,
afeto e levante. Talvez não saibamos o que virá. Mas sabemos de onde viemos.
Que o futuro nos encontre em redes não de controle, mas de cuidado. Em vez de
algoritmos da morte, que inventemos linguagens para a vida. Enquanto houver
palavra, haverá esperança. E enquanto houver escuta, a história não estará
perdida.
Fonte:
Observatório da Imprensa

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