Como secas extremas podem redefinir o futuro
dos peixes na Amazônia
Em setembro de 2024, a paisagem no Médio
Solimões, no estado do Amazonas, contrastava com sua exuberância habitual.
“Quando estávamos chegando em Tefé, e o avião se preparava para pousar, fui
impactada ao ver tudo muito seco, com bancos de areia se multiplicando por
entre as águas”, descreve a bióloga Susana Braz-Mota.
O Lago Tefé fica próximo à Reserva de
Desenvolvimento Sustentável Mamirauá, uma área de 1,12 milhão de hectares
composta por florestas de várzea alagadas pelos rios Solimões e Japurá. Toda a
região é, normalmente, um mosaico de águas com grande importância ecológica.
Durante a cheia, o Rio Solimões traz consigo
sedimentos e nutrientes que fertilizam as terras alagáveis, sustentando toda a
fauna e a flora. A abundância de recursos nessas áreas reguladas pelos ciclos
naturais de inundação favorece a diversidade de peixes na reserva: 541 espécies
catalogadas, o que corresponde a 20% de toda a diversidade da bacia amazônica.
Mas a seca histórica de 2023, seguida por uma
enchente fraca em 2024, alterou drasticamente o ambiente, forçando os peixes a
sobreviver em águas rasas e mais quentes que o habitual.
Susana viajou de Manaus a Tefé com o também
biólogo Rafael Duarte para investigar os impactos da estiagem sobre os peixes
da Amazônia. Cientista amazonense, ela está habituada à imensidão dos rios, mas
ouviu dos pescadores frases que se tornaram comuns no período: “já havíamos
visto secas antes, mas nunca uma tão forte como essa”.
A baixa histórica dos rios expôs os peixes a
múltiplos riscos: desde os efeitos do calor em seus organismos até impactos na
reprodução e na cadeia alimentar dos habitats. Embora essas pressões afetem
todas as espécies, há a preocupação de que peixes de interesse pesqueiro para
as comunidades amazônicas estejam entre os mais sensíveis às mudanças nos
pulsos de inundação.
A Amazônia já está entre 0,6 ºC e 0,7 ºC mais
quente, segundo acompanhamento dos últimos 40 anos. Com o planeta caminhando
para um aquecimento de 2 °C em relação à era pré-industrial, as temperaturas na
região podem subir ainda mais neste século, chegando a aumentar entre 3 °C e 4
°C, segundo o Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC).
Temperaturas elevadas já alteram o ciclo de
chuvas na Amazônia. Em 2023, a bacia enfrentou uma combinação de seca intensa
com ondas de calor sem precedentes, resultando na perda de 3,33 milhões de
hectares de superfície de água – o equivalente a três vezes a área de Manaus ou
a 22 vezes a da cidade de São Paulo.
O Lago Tefé tornou-se um exemplo contundente
dessa transformação. Entre setembro e outubro de 2023, sua área encolheu em
75%, passando de 379 km2 para 95
km2, com apenas meio metro de profundidade nos pontos mais rasos. No mesmo
período, a temperatura da água atingiu a máxima de 41 ºC, permanecendo acima de
37 ºC por dias consecutivos — acima da média usual para a mesma época do ano,
entre 29 ºC e 30 ºC.
Nos últimos dois anos, os baixos níveis dos
rios dominaram a agenda de pesquisas e reuniões de Ayan Fleischmann,
especialista na dinâmica das águas do Instituto Mamirauá e residente de Tefé. Segundo ele, os ribeirinhos
costumam dizer que, após uma seca extrema, vem uma cheia igualmente extrema.
“De fato, quando chegamos em janeiro, o rio começou a subir muito. Mas, em
fevereiro, estagnou”, relata.
Em junho de 2024, período que costuma marcar
o auge da cheia, os rios estavam abaixo da média, deixando muitos igapós sem
alagamento no Lago Tefé. Como referência de comparação, o nível do Rio
Solimões, em Coari, chegou a 16,14 metros em 30 de junho, abaixo dos 17,83
metros registrados em 2023 e dos 18,8 metros de 2022, nas mesmas datas.
Tefé, a maior cidade do Médio Solimões, tem
73.669 habitantes, segundo o censo de 2022. Assim como a fauna e a flora, as
comunidades locais dependem dos pulsos de inundação dos rios para pesca e
transporte. Com a seca, esse equilíbrio foi rompido, revelando um cenário de
insegurança alimentar e dificuldade de acesso a serviços básicos.
• A
temperatura da água ameaça a biodiversidade dos peixes?
“Compreender o limite térmico dos peixes é
essencial para prever quais espécies são mais resistentes ao aumento da
temperatura”, explica Rafael, que há mais de 20 anos estuda os peixes
amazônicos.
Diferentemente de nós, humanos, os peixes
dependem de fontes externas de calor para regular a temperatura corporal. Por
isso, quando a temperatura do ambiente muda, seu organismo precisa se ajustar
para sobreviver a condições mais adversas.
“Em águas mais quentes, os peixes gastam mais
energia para manter funções básicas, como se alimentar, reproduzir e nadar”,
explica Susana. “Esse esforço extra os torna mais vulneráveis a problemas como
parasitas e até danos ao material genético.”
As mudanças climáticas podem tornar as
condições da bacia amazônica ainda mais extremas. Temperaturas elevadas reduzem
a quantidade de oxigênio dissolvido na água, ao mesmo tempo que aumentam a
necessidade de mais oxigênio para os peixes, dificultando a respiração e
comprometendo seu metabolismo. Isso pode desacelerar o crescimento dos juvenis
e aumentar o estresse fisiológico.
No auge da estiagem de 2023, Susana esteve no
Lago Janauacá, na região metropolitana de Manaus, onde registrou níveis de
oxigênio de apenas 0,5 mg por litro — perigosamente próximos de zero. Em
condições como essa, o calor extremo e a baixa oxigenação tornam-se letais,
como ocorreu em Tefé e Janauacá, onde comunidades relataram alta mortalidade de
peixes.
Espécies diferentes de peixes reagem de
formas distintas às variações de temperatura no ambiente. Estudos conduzidos
por Susana e Rafael em Tefé mostraram que o aracu (Schizodon fasciatus), com
potencial de produção pesqueira de 4.660 toneladas, é particularmente
vulnerável. Quando exposto a temperaturas próximas ao seu limite, a espécie
sofre um estresse que altera a estrutura celular, podendo danificar o DNA e
causar mutações.
Já o tambaqui (Colossoma Macropomum), cujo
consumo no Amazonas chega a 60 mil toneladas por ano, demonstrou tolerar
temperaturas acima de 40°C em testes experimentais. No entanto, essa
resistência não representa uma margem de segurança: exposições prolongadas ao
calor podem causar efeitos deletérios antes mesmo de provocar a morte.
Expostos a temperaturas entre 29 °C e 30 °C,
tambaquis juvenis apresentam menor crescimento devido à dificuldade de
converter alimento em energia. Em testes até 38°C, os peixes exigiram mais
oxigênio para manter funções básicas – um fator preocupante durante secas
extremas, quando o oxigênio na água também é mais escasso.
Diante dessas evidências, a pesquisa sobre a
tolerância térmica dos peixes tem um potencial preditivo: em um futuro mais
quente, ou com mais secas, é possível presumir que as espécies mais sedentárias
terão mais chances de sobreviver, pois gastam menos energia para manter suas
funções básicas em meio à adversidade.
Mas ainda que essa previsão se confirme,
restaria a dúvida: sobreviver em que condições? Tendo em vista os efeitos que a
temperatura acarreta nos animais, ainda assim estaríamos diante de um cenário
de peixes menores e vulneráveis a doenças.
Secas recorrentes como a de 2023 representam
um grave risco à biodiversidade dos peixes da Amazônia. Essas espécies
evoluíram ao longo de milhões de anos em vastas áreas, com recursos abundantes
e temperaturas estáveis.
Eventos extremos, porém, alteram
drasticamente essas condições, podendo levar à seleção de algumas espécies e à
redução das mais de 2.300 já descritas. “Para a Amazônia, menor biodiversidade
também significa perda de qualidade de vida para quem vive aqui”, destaca
Susana.
No entanto, Rafael destaca que transpor as
conclusões obtidas no ambiente controlado de um laboratório para o ambiente
natural é um desafio. Afinal, diversos fatores de risco presentes em um habitat
podem influenciar a resposta dos peixes à temperatura. “Em Tefé, por exemplo,
há intenso tráfego de barcos, e estamos investigando se a contaminação por óleo
dos motores afeta negativamente sua capacidade térmica”, aponta.
• Lagos
rasos e quentes: uma tendência pelo mundo
O que aconteceu na Amazônia chamou a atenção
de pesquisadores ao redor do mundo. Um deles é Priit Zingel, da Estônia. Em
2023, ele visitou a região pela terceira vez para conduzir estudos em dois
lagos: Janauacá e Lago do Prato, este situado no Parque Nacional de
Anavilhanas, a nove horas de barco de Manaus pelo Rio Negro.
“Presenciar aquela seca foi um grande impacto
para mim”, recorda Zingel. “Quando conheci a Amazônia, a imensidão das águas me
trouxe uma sensação de liberdade, de possibilidades infinitas. Sabíamos
antecipadamente que a situação era extrema, mas vê-la de perto foi deprimente.”
Zingel estuda lagos ao redor do mundo, com
foco nos chamados “lagos rasos”. Assim como muitos lagos amazônicos, esses
ecossistemas possuem profundidade suficiente para que a luz solar alcance o
fundo, geralmente até 5 metros, permitindo o crescimento de plantas aquáticas.
Na Amazônia, lagos conectados a rios, como o
Tefé, também permitem a migração de peixes entre habitats. Durante a estiagem,
esses lagos oferecem refúgio e alimento aos animais, graças à abundância de
plantas aquáticas. No entanto, variações intensas no nível da água podem
transformar o habitat, afetando a disponibilidade de nutrientes e a competição
por recursos.
Outros lagos ao redor do mundo enfrentam
desafios semelhantes. No continente africano, o Lago Chade encolheu de 25 mil
km² nos anos 1960 para apenas 2,5 mil km² nos anos 1980, mas vem se recuperando
desde então. Na Bolívia, o Lago Poopó secou completamente em duas ocasiões, em
2015 e 2021.
Diante desses desafios, Zingel investiga os
impactos de longo prazo das oscilações no nível da água sobre os peixes,
comparando a relação entre tamanho e peso em 10 espécies diferentes. As
amostras foram coletadas em duas secas amazônicas: uma típica, em 2019, e a
extrema de 2023. Os resultados são contundentes: com a seca severa, as
proporções entre tamanho e peso dos peixes ficaram menores, tanto os
sedentários quanto os mais ativos, como as piranhas.
Mesmo que algumas espécies tolerem águas mais
quentes, as variações no nível dos lagos criam desafios para os peixes de
maneira geral. “Todos esses fatores afetam a dinâmica das populações. Com
eventos como esse se tornando frequentes, é razoável presumir que as espécies
mais resistentes se tornem dominantes”, pondera Zingel. “Mas, se muitas
espécies forem perdidas, as populações remanescentes se tornam mais vulneráveis
e o ecossistema como um todo perde resiliência.”
• Pesca
ameaçada
Três fatores são cruciais para entender o
impacto das estiagens extremas sobre a pesca: mortalidade, crescimento e
reprodução dos peixes. A combinação de altas temperaturas da água e baixa
oxigenação já impõe um risco iminente nessas três frentes.
Como as pesquisas indicam, mesmo os peixes
que sobrevivem a esse ambiente alterado não encontram condições ideais para
crescer. Além disso, o estresse térmico pode comprometer a reprodução, afetando
a qualidade do esperma e o desenvolvimento das larvas. Por fim, a desconexão
entre lagos e rios impede a migração, um processo essencial para os ciclos
reprodutivos de muitas espécies.
Carlos Edvar de Freitas, professor da
Universidade Federal do Amazonas, engenheiro ambiental e especialista em pesca,
alerta que todos os peixes com ciclos reprodutivos sincronizados aos pulsos dos
rios estão em risco. Entre eles estão espécies de grande interesse pesqueiro,
incluindo migradores de longas distâncias, como a piraíba e a dourada, e peixes
que desovam em lagos no início da enchente, como o tambaqui e o pacu.
“Há uma palavra-chave para quem trabalha com
pesca: recrutamento. É o momento em que os peixes jovens se juntam ao estoque
de adultos”, explica Carlos. “Uma seca extrema pode atrasar a desova de muitas
espécies amazônicas. Em outros casos, a desova ocorre, mas as larvas se tornam
presas fáceis no leito do rio, sem conseguir alcançar os lagos. Tudo isso reduz
o recrutamento, um impacto que só será percebido na próxima temporada de
pesca.”
Por isso, leva tempo para compreender
plenamente o impacto de uma seca na população de peixes. Um estudo publicado em
2024 analisou dados de pesca no Baixo Amazonas e confirmou que a produtividade
é diretamente influenciada por eventos climáticos que alteram os habitats. No
entanto, a pesquisa utilizou dados coletados entre 1993 e 2005, o que evidencia
o hiato entre a pesquisa de campo e a publicação dos resultados — que ainda não
considera os impactos das secas extremas deste século.
Ainda há poucos estudos que relacionam a
produtividade da pesca com variáveis ambientais e fisiológicas dos peixes. Como
destaca Carlos, os estudos existentes são, em sua maioria, conduzidos por
universidades, com financiamentos pontuais, e não integram uma política pública
regional de monitoramento.
“Faltam dados de captura para modelar os
estoques pesqueiros. Mas essa não é uma tarefa que os pesquisadores podem
realizar sozinhos”, defende Carlos. “A estatística deve ser conduzida pelos
governos estaduais, com apoio do governo federal. Essa precisa ser uma
informação de Estado.”
• Eventos
extremos mais frequentes: e agora?
Para Carlos, ignorar esses riscos é preparar
o terreno para uma crise futura. Na Amazônia, a pesca de pequena escala é
fundamental para a segurança alimentar e a redução da pobreza, gerando receitas
de aproximadamente 465 milhões de dólares por ano e mais de 160 mil empregos.
Em uma região onde o consumo de peixes está entre 130 e 180 kg por pessoa
anualmente, a atividade pesqueira sustenta milhares de famílias e a economia
local.
Desde que voltou de Tefé, Susana tem
percorrido congressos para alertar sobre a gravidade da seca e o risco de sua
repetição. No entanto, mesmo com a paciência necessária para explicar,
repetidamente, um problema de importância crucial, sua decepção é evidente.
“Eventos extremos como o que vivemos não são
isolados e tendem a se repetir com consequências cada vez mais graves. A maior
parte das discussões e das estratégias de mitigação ainda está concentrada nas
regiões Sul e Sudeste, enquanto o Norte, que desempenha um papel crucial no
equilíbrio climático global, permanece subrepresentado”, desabafa. “Precisamos
de políticas e investimentos que considerem as particularidades da região e a
urgência da situação.”
Carlos Freitas integra um grupo que lançou um
documento com recomendações para políticas públicas diante da seca. No curto
prazo, o documento propõe mudanças na política do defeso, ajustando o período
de proibição da pesca de certas espécies quando há previsão de estiagens
severas. Além disso, sugere a inclusão de novas espécies na lista de proibição,
caso sua vulnerabilidade a eventos extremos seja comprovada. O documento também
reforça a necessidade de intensificar a fiscalização contra a pesca ilegal, evitando
a captura de peixes imaturos antes de seu recrutamento.
Em médio prazo, recomenda-se o investimento
na aceleração da coleta de dados e no aprimoramento das ferramentas de previsão
dos impactos nos estoques pesqueiros. Em um cenário de eventos climáticos
extremos cada vez mais frequentes, a informação é a melhor forma de prevenção.
“Além disso, a Amazônia precisa de canais de comunicação entre a universidade,
os tomadores de decisão e as comunidades ribeirinhas”, defende Carlos.
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Fonte: Mongabay

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