terça-feira, 13 de maio de 2025

Como romper os muros da ciência do Norte Global?

A internacionalização dos periódicos brasileiros vem sendo debatida amplamente e se apresenta como um elemento importante para o fortalecimento da ciência nacional e sua integração ao debate acadêmico em todo o mundo. De forma geral, a internacionalização refere-se ao processo de inserção de revistas, pesquisadores e instituições em circuitos globais de produção, disseminação e avaliação científica. Isso envolve a colaboração entre autores de diferentes países, a presença em bases de dados internacionais e o cumprimento de critérios de qualidade estabelecidos por organismos globais.

Entretanto, frequentemente apresentada como um caminho para promover visibilidade e trocas necessárias, o debate da internacionalização carrega uma série de contradições, especialmente quando observada a partir da perspectiva dos países com menor inserção nos circuitos tradicionais da ciência internacional. Não sem razão, apesar do avanço substancial do Brasil nos últimos anos, ainda é um desafio para o país posicionar suas revistas e respectivas publicações no conjunto dos principais periódicos do mundo.

Em uma vertente mais pragmática, alguns autores apontam os entraves e as estratégias possíveis para ampliação do impacto internacional das publicações brasileiras, Entre as limitações, está a barreira linguística enfrentada por pesquisadores de países não-anglófonos. SciELO, a grande biblioteca digital de acesso aberto que reúne periódicos científicos de diversos países, sustenta a publicação de artigos em inglês como indispensável ao aumento de citações e dos indicadores de impacto, de forma a ampliar o reconhecimento e a visibilidade das pesquisas e autores à comunidade internacional. Também a baixa diversidade geográfica da composição dos conselhos editoriais, de autores e de revisores é um aspecto que desafia as revistas brasileiras. O corpo editorial de muitas revistas é majoritariamente restrito ao país, o que limita a inserção internacional e o reconhecimento externo. Por sua vez, autores de países centrais somente publicam no Brasil artigos feitos em parceria com autores nativos ou da América Latina.

Outra vertente desse debate questiona o que se entende por internacionalização da ciência e das revistas científicas. Cadernos de Saúde Pública já abordou essa questão em outros fóruns, mas é bom lembrar que apenas seis conglomerados controlam o mercado editorial científico, com margens de lucro espantosas. O acesso aberto, associado à internacionalização, é viabilizado por meio de taxas cobradas dos autores, agências de financiamento e instituições. Estima-se que cientistas tenham desembolsado mais de US$ 1 bilhão em quatro anos para publicar em acesso aberto nesses veículos. Essa concentração e o alto custo dificultam a inserção de periódicos e pesquisadores de países com menos recursos, comprometendo uma internacionalização mais equitativa e inclusiva.

O Portal de Periódicos CAPES, criado em 2000, trouxe acesso aos artigos de mais de 50 mil revistas científicas para cerca de 500 instituições brasileiras, garantindo o acesso ao conhecimento que é produzido no exterior, nos países centrais principalmente. Recentemente, a CAPES (Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior) assinou acordos transformativos com editoras comerciais, garantindo o pagamento das taxas de processamento de artigos (article processing charges – APC). O objetivo é facilitar a transição do acesso por assinatura ao modelo de acesso aberto, o que se justifica por dar maior visibilidade à produção científica e tecnológica nacional. Além disso, a publicação nessas revistas deixará de ser possível somente para os pesquisadores que têm bons financiamentos de projetos, democratizando a publicação. Entretanto, a estratégia de pagar APC para publicar no exterior busca internacionalizar a ciência brasileira e, simultaneamente, transfere volumes expressivos de recursos do país para fora. Em 2025, o contrato da CAPES com a editora Wiley custou US$ 8,3 milhões (dado obtido via Lei de Acesso à Informação, protocolo 23546.018379/2025-17). Em comparação, o edital CNPq/CAPES de 2024 destinou apenas R$ 6 milhões para apoiar 272 periódicos nacionais, o que corresponde a uma média de R$ 22.000 por revista.

Os acordos transformativos combinam internacionalização receptiva, na qual se lê o que está sendo produzido no exterior, e exportadora, que busca divulgar a ciência produzida localmente. Ambos os processos são inerentes a um mundo unipolar, no qual o Sul Global está, por definição, em posição subalterna. O chamado Sul Global é composto por países tão diversos como Brasil, Índia, África do Sul, México, Nigéria, Argentina, Indonésia e outros da América Latina, África e partes da Ásia. Trata-se de uma categoria geopolítica e epistemológica que abrange nações historicamente marginalizadas nos fluxos internacionais de ciência, tecnologia e inovação. Em contraposição, o Norte Global inclui países como Estados Unidos, Reino Unido, Alemanha, França, Canadá, Japão, entre outros, que concentram os principais centros de pesquisa, editam a maior parte dos periódicos de alto fator de impacto e definem os parâmetros de excelência científica em escala mundial.

Nesse contexto, a internacionalização muitas vezes se configura como uma via de mão única, marcada pela subalternidade do conhecimento produzido no Sul Global. Essa subalternidade não é apenas econômica ou tecnológica. Ela se manifesta na validação desigual de saberes, na imposição de normas de publicação, e na ideia implícita de que a ciência feita nos países centrais é universal, enquanto a produzida na periferia é local, contextual e, por vezes, irrelevante para os grandes debates científicos. Isso cria uma hierarquia de conhecimentos, na qual as experiências, problemas e soluções originadas no Sul são invisibilizadas ou consideradas menos legítimas, a menos que sejam filtradas, traduzidas (inclusive simbolicamente) e aceitas por instituições do Norte.

Na Saúde Coletiva/Saúde Pública essa dinâmica tem consequências graves. Práticas e políticas exitosas, como a Estratégia Saúde da Família, muitas vezes não ganham a devida visibilidade global porque são vistas como respostas locais a problemas “regionais”, e não como inovações com potencial de contribuição universal. O resultado é que saberes produzidos em diálogo com realidades complexas, deixam de circular amplamente, enquanto se reforça um modelo de ciência unidirecional, centrado nos países mais ricos e nas grandes editoras internacionais.

Por isso, argumentamos que é necessário rever o sentido da palavra “internacionalização” no campo da publicação científica. Certamente as revistas do Norte Global são internacionalizadas, ou podemos dizer internacionais, mesmo quando no seu nome levam a palavra American. Nesse caso, a revista é internacional por seu papel de concentração de submissões de artigos de todo o mundo, com hegemonia científica desses países e drenagem de recursos que poderiam ser aplicados na produção do conhecimento em si.

Mas queremos uma internacionalização ou múltiplas internacionalizações? Neste Editorial, procuramos problematizar a internacionalização entendendo-a como um processo com perspectivas distintas. Levar o conhecimento produzido em um país para outros, seja publicando ou incorporando-o às pesquisas desenvolvidas em diversos países, é desejável e necessário. Entendemos a ciência, nas diversas áreas do conhecimento, como um bem público universal. Mas para quem e como levar artigos sobre temas certamente relevantes no cenário nacional para outras realidades que também se beneficiariam desse conhecimento? Pagando APCs? Publicando em inglês?

Internacionalização assim, não é uma via de mão dupla, com espaço nos dois sentidos. À medida em que emergem novos polos científicos, a internacionalização não é mais sinônimo da relação com países do hemisfério Norte. O próprio SciELO, pioneiro no acesso aberto, reúne periódicos de 15 países (informação atualizada em 23 de fevereiro de 2025), com 127 revistas no campo das Ciências da Saúde. O acesso à publicação científica, no qual nem autor nem leitor pagam, denominado “acesso aberto diamante”, é essencial para a democratização da ciência, garantindo o acesso livre a leitores e autores de qualquer parte do mundo, e deve ser sustentado por instituições e associações sem finalidade lucrativa, como afirmamos em editorial anterior.

O papel dos BRICS na liderança de um mundo multipolar pode ser um grande estímulo para a comunicação da ciência produzida em países periféricos, para além da antiga participação como local de coleta de dados. O que é possível para ampliar a internacionalização da publicação científica em contexto de multipolaridade? Analisar a forma como se dá esse processo de internacionalização, tanto considerando as redes de colaboração quanto o local de publicação, é a tarefa que está colocada para construir um modelo multipolar da publicação científica. Mais do que ocupar rankings, trata-se de garantir que o conhecimento produzido no Brasil possa circular, ser reconhecido e contribuir efetivamente para a ciência global.

A ciência é um patrimônio coletivo de todos os povos, culturas e territórios. Assim, os caminhos da internacionalização devem servir para ampliar o acesso, a diversidade e a relevância do conhecimento, e não para reproduzir assimetrias geopolíticas ou epistemológicas. Nem uma única história, como fala Chimamanda Ngozi Adichie, nem uma ciência limitada a uma só visão de mundo.

 

Fonte: Por Marilia Sá Carvalho, Luciana Dias de Lima e Luciana Correia Alves, da Cadernos de Saúde Pública

 

Nenhum comentário: