Como
romper os muros da ciência do Norte Global?
A internacionalização
dos periódicos brasileiros vem sendo debatida amplamente e se apresenta como um
elemento importante para o fortalecimento da ciência nacional e sua integração
ao debate acadêmico em todo o mundo. De forma geral, a internacionalização refere-se
ao processo de inserção de revistas, pesquisadores e instituições em circuitos
globais de produção, disseminação e avaliação científica. Isso envolve a
colaboração entre autores de diferentes países, a presença em bases de dados
internacionais e o cumprimento de critérios de qualidade estabelecidos por
organismos globais.
Entretanto,
frequentemente apresentada como um caminho para promover visibilidade e trocas
necessárias, o debate da internacionalização carrega uma série de contradições,
especialmente quando observada a partir da perspectiva dos países com menor
inserção nos circuitos tradicionais da ciência internacional. Não sem razão,
apesar do avanço substancial do Brasil nos últimos anos, ainda é um desafio
para o país posicionar suas revistas e respectivas publicações no conjunto dos
principais periódicos do mundo.
Em uma
vertente mais pragmática, alguns autores apontam os entraves e as estratégias
possíveis para ampliação do impacto internacional das publicações brasileiras,
Entre as limitações, está a barreira linguística enfrentada por pesquisadores
de países não-anglófonos. SciELO, a grande biblioteca digital de acesso aberto
que reúne periódicos científicos de diversos países, sustenta a publicação de
artigos em inglês como indispensável ao aumento de citações e dos indicadores
de impacto, de forma a ampliar o reconhecimento e a visibilidade das pesquisas
e autores à comunidade internacional. Também a baixa diversidade geográfica da
composição dos conselhos editoriais, de autores e de revisores é um aspecto que
desafia as revistas brasileiras. O corpo editorial de muitas revistas é
majoritariamente restrito ao país, o que limita a inserção internacional e o
reconhecimento externo. Por sua vez, autores de países centrais somente
publicam no Brasil artigos feitos em parceria com autores nativos ou da América
Latina.
Outra
vertente desse debate questiona o que se entende por internacionalização da
ciência e das revistas científicas. Cadernos de Saúde Pública já abordou essa
questão em outros fóruns, mas é bom lembrar que apenas seis conglomerados
controlam o mercado editorial científico, com margens de lucro espantosas. O
acesso aberto, associado à internacionalização, é viabilizado por meio de taxas
cobradas dos autores, agências de financiamento e instituições. Estima-se que
cientistas tenham desembolsado mais de US$ 1 bilhão em quatro anos para
publicar em acesso aberto nesses veículos. Essa concentração e o alto custo
dificultam a inserção de periódicos e pesquisadores de países com menos
recursos, comprometendo uma internacionalização mais equitativa e inclusiva.
O
Portal de Periódicos CAPES, criado em 2000, trouxe acesso aos artigos de mais
de 50 mil revistas científicas para cerca de 500 instituições brasileiras,
garantindo o acesso ao conhecimento que é produzido no exterior, nos países
centrais principalmente. Recentemente, a CAPES (Coordenação de Aperfeiçoamento
de Pessoal de Nível Superior) assinou acordos transformativos com editoras
comerciais, garantindo o pagamento das taxas de processamento de artigos
(article processing charges – APC). O objetivo é facilitar a transição do
acesso por assinatura ao modelo de acesso aberto, o que se justifica por dar
maior visibilidade à produção científica e tecnológica nacional. Além disso, a
publicação nessas revistas deixará de ser possível somente para os pesquisadores
que têm bons financiamentos de projetos, democratizando a publicação.
Entretanto, a estratégia de pagar APC para publicar no exterior busca
internacionalizar a ciência brasileira e, simultaneamente, transfere volumes
expressivos de recursos do país para fora. Em 2025, o contrato da CAPES com a
editora Wiley custou US$ 8,3 milhões (dado obtido via Lei de Acesso à
Informação, protocolo 23546.018379/2025-17). Em comparação, o edital CNPq/CAPES
de 2024 destinou apenas R$ 6 milhões para apoiar 272 periódicos nacionais, o
que corresponde a uma média de R$ 22.000 por revista.
Os
acordos transformativos combinam internacionalização receptiva, na qual se lê o
que está sendo produzido no exterior, e exportadora, que busca divulgar a
ciência produzida localmente. Ambos os processos são inerentes a um mundo
unipolar, no qual o Sul Global está, por definição, em posição subalterna. O
chamado Sul Global é composto por países tão diversos como Brasil, Índia,
África do Sul, México, Nigéria, Argentina, Indonésia e outros da América
Latina, África e partes da Ásia. Trata-se de uma categoria geopolítica e
epistemológica que abrange nações historicamente marginalizadas nos fluxos
internacionais de ciência, tecnologia e inovação. Em contraposição, o Norte
Global inclui países como Estados Unidos, Reino Unido, Alemanha, França,
Canadá, Japão, entre outros, que concentram os principais centros de pesquisa,
editam a maior parte dos periódicos de alto fator de impacto e definem os
parâmetros de excelência científica em escala mundial.
Nesse
contexto, a internacionalização muitas vezes se configura como uma via de mão
única, marcada pela subalternidade do conhecimento produzido no Sul Global.
Essa subalternidade não é apenas econômica ou tecnológica. Ela se manifesta na
validação desigual de saberes, na imposição de normas de publicação, e na ideia
implícita de que a ciência feita nos países centrais é universal, enquanto a
produzida na periferia é local, contextual e, por vezes, irrelevante para os
grandes debates científicos. Isso cria uma hierarquia de conhecimentos, na qual
as experiências, problemas e soluções originadas no Sul são invisibilizadas ou
consideradas menos legítimas, a menos que sejam filtradas, traduzidas
(inclusive simbolicamente) e aceitas por instituições do Norte.
Na
Saúde Coletiva/Saúde Pública essa dinâmica tem consequências graves. Práticas e
políticas exitosas, como a Estratégia Saúde da Família, muitas vezes não ganham
a devida visibilidade global porque são vistas como respostas locais a
problemas “regionais”, e não como inovações com potencial de contribuição
universal. O resultado é que saberes produzidos em diálogo com realidades
complexas, deixam de circular amplamente, enquanto se reforça um modelo de
ciência unidirecional, centrado nos países mais ricos e nas grandes editoras
internacionais.
Por
isso, argumentamos que é necessário rever o sentido da palavra
“internacionalização” no campo da publicação científica. Certamente as revistas
do Norte Global são internacionalizadas, ou podemos dizer internacionais, mesmo
quando no seu nome levam a palavra American. Nesse caso, a revista é
internacional por seu papel de concentração de submissões de artigos de todo o
mundo, com hegemonia científica desses países e drenagem de recursos que
poderiam ser aplicados na produção do conhecimento em si.
Mas
queremos uma internacionalização ou múltiplas internacionalizações? Neste
Editorial, procuramos problematizar a internacionalização entendendo-a como um
processo com perspectivas distintas. Levar o conhecimento produzido em um país
para outros, seja publicando ou incorporando-o às pesquisas desenvolvidas em
diversos países, é desejável e necessário. Entendemos a ciência, nas diversas
áreas do conhecimento, como um bem público universal. Mas para quem e como
levar artigos sobre temas certamente relevantes no cenário nacional para outras
realidades que também se beneficiariam desse conhecimento? Pagando APCs?
Publicando em inglês?
Internacionalização
assim, não é uma via de mão dupla, com espaço nos dois sentidos. À medida em
que emergem novos polos científicos, a internacionalização não é mais sinônimo
da relação com países do hemisfério Norte. O próprio SciELO, pioneiro no acesso
aberto, reúne periódicos de 15 países (informação atualizada em 23 de fevereiro
de 2025), com 127 revistas no campo das Ciências da Saúde. O acesso à
publicação científica, no qual nem autor nem leitor pagam, denominado “acesso
aberto diamante”, é essencial para a democratização da ciência, garantindo o
acesso livre a leitores e autores de qualquer parte do mundo, e deve ser
sustentado por instituições e associações sem finalidade lucrativa, como
afirmamos em editorial anterior.
O papel
dos BRICS na liderança de um mundo multipolar pode ser um grande estímulo para
a comunicação da ciência produzida em países periféricos, para além da antiga
participação como local de coleta de dados. O que é possível para ampliar a
internacionalização da publicação científica em contexto de multipolaridade?
Analisar a forma como se dá esse processo de internacionalização, tanto
considerando as redes de colaboração quanto o local de publicação, é a tarefa
que está colocada para construir um modelo multipolar da publicação científica.
Mais do que ocupar rankings, trata-se de garantir que o conhecimento produzido
no Brasil possa circular, ser reconhecido e contribuir efetivamente para a
ciência global.
A
ciência é um patrimônio coletivo de todos os povos, culturas e territórios.
Assim, os caminhos da internacionalização devem servir para ampliar o acesso, a
diversidade e a relevância do conhecimento, e não para reproduzir assimetrias
geopolíticas ou epistemológicas. Nem uma única história, como fala Chimamanda
Ngozi Adichie, nem uma ciência limitada a uma só visão de mundo.
Fonte:
Por Marilia Sá Carvalho, Luciana Dias de Lima e Luciana Correia Alves, da
Cadernos de Saúde Pública

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