Como festivais de música paravam o Brasil em
plena ditadura
Foi Walter Clark, diretor-executivo da TV
Globo, quem detonou a bomba: "A Nara tem que sair do júri!". Solano
Ribeiro, organizador do 7º Festival Internacional da Canção (FIC), realizado em
1972, arregalou os olhos: "Por quê?". "Ordens superiores",
limitou-se a responder. "Não há o que discutir". Dias antes, Nara
Leão havia concedido uma entrevista ao Jornal do Brasil que desagradou os
militares. Em 1966, ela já tinha defendido a extinção do Exército. "Os generais
podem entender de canhão, mas não de política", declarou ao Diário de
Notícias.
Por muito pouco, Nara Leão não foi enquadrada
pelo então presidente da república, o marechal Arthur da Costa e Silva, na Lei
de Segurança Nacional. Na ocasião, até Carlos Drummond de Andrade saiu em
defesa da cantora: "Meu honrado marechal / dirigente da nação / venho
fazer-lhe um apelo: / não prenda Nara Leão…", escreveu no poema Apelo
(1966). "A censura começou em 1968, mas a barra ficou pesada de vez em
1972", avalia Solano Ribeiro, o idealizador dos festivais de Música
Popular Brasileira (MPB) e autor do livro Prepare seu Coração (2018), hoje com
86 anos. "Quando os militares souberam que a Nara estava à frente do júri,
pediram a cabeça dela".
Num primeiro momento, Solano Ribeiro pediu
demissão do cargo de diretor do festival. "Se a Nara sair, eu também
saio", foi o que ele respondeu para Walter Clark. Pouco depois, decidiu
trocar o júri nacional por outro, internacional. O novo júri seria montado às
pressas por artistas e jornalistas estrangeiros que já estivessem no Rio de
Janeiro para a final do dia 30 de setembro de 1972, no Maracanãzinho, no Rio de
Janeiro. A decisão desagradou o júri nacional, formado pelo compositor Rogério
Duprat, o poeta Décio Pignatari e o jornalista Sérgio Cabral, entre outros.
"Tentaram ler um manifesto e deu a maior
confusão", relata o historiador Marcos Napolitano, doutor em História
Social pela Universidade de São Paulo (USP) e autor do artigo Os Festivais da
Canção como Eventos de Oposição ao Regime Militar Brasileiro (2004). "A
polícia interveio e Roberto Freire foi preso". Um dos jurados destituídos,
o psiquiatra Roberto Freire, foi espancado por policiais, teve duas costelas
quebradas e passou 15 dias no hospital. Terminava ali a última edição da chamada
Era dos Festivais, que começou há 60 anos, em 1965, e chegou ao fim em 1972.
• "Quem
sabe faz a hora / não espera acontecer"
Se aquela não foi a primeira vez que Nara
Leão concedeu uma entrevista criticando o regime militar, não foi a primeira
vez também que o regime militar tentou interferir em um festival de MPB. Em
1968, Walter Clark recebeu um telefonema da parte do general Sizeno Sarmento
avisando que nem Pra Não Dizer que Não Falei de Flores, de Geraldo Vandré, nem
América, América, de César Roldão Vieira, poderiam ganhar o 3° FIC. "Não
posso impedir o júri de votar", tentou argumentar. "Problema seu",
o oficial foi taxativo. "As músicas não podem ganhar".
"A edição de 1968 é, sem dúvida, um
marco do embate entre a sociedade civil e a ditadura militar", afirma o
jornalista Leonêncio Nossa, autor de Roberto Marinho: A Globo na Ditadura
(2025). "A música do Vandré se tornou o hino de uma geração". Para
alívio de Walter Clark, Sabiá, de Tom Jobim e Chico Buarque, venceu Pra Não
Dizer que Não Falei de Flores, de Geraldo Vandré, por 109 votos a 106 na final
do dia 29 de setembro de 1968. "Os militares não deixavam passar músicas
que pudessem causar inquietação social", explica o pesquisador Ricardo
Cravo Albin, um dos jurados daquela edição. "Os tempos eram bicudos".
• Na
marca do pênalti
Geraldo Vandré perdeu a edição de 1968. Mas,
em compensação, ganhou a de 1966. Disparada, interpretada por Jair Rodrigues,
terminou em primeiro lugar, empatada com A Banda, de Chico Buarque. Quem estava
lá no dia 10 de outubro de 1966, uma segunda-feira, garante que a final do 2°
Festival da Música Popular Brasileira, realizada no Teatro Record, em São
Paulo, parou o país. "Era como Palmeiras contra Corinthians em decisão de
campeonato", compara o pesquisador Zuza Homem de Mello no livro A Era dos
Festivais (2003).
De um lado, os torcedores de A Banda,
apelidados de "bandidos". De outro, os defensores de Disparada, os
"disparatados". O júri, lembra o maestro Júlio Medaglia, que fazia
parte dele, estava dividido. Na primeira contagem de votos, Chico Buarque levou
a melhor: sete votos a cinco. Dali a pouco, o presidente da TV Record, Paulo
Machado de Carvalho, invade a sala dos jurados e avisa: "Se A Banda for a
primeira colocada, o Chico Buarque devolve o prêmio em público!". Estava
decidido: empate técnico! "Foi um alívio!", suspira Medaglia, aos 87
anos. "Estávamos com medo de sermos linchados na rua caso a opinião
pública não aprovasse o resultado final".
• O
último a sair…
Chico Buarque não foi o único artista a
ganhar duas edições de festival: em 1966, com A Banda, cantada por Nara Leão, e
em 1968, com Sabiá, na voz de Cynara e Cybele. O cantor e compositor Edu Lobo
também conseguiu essa façanha: em 1965, com Arrastão, composta com Vinicius de
Moraes e cantada por Elis Regina, e em 1967, com Ponteio, parceria com José
Carlos Capinam. Há quem diga, inclusive, que aquela edição do festival, o
terceiro da Música Popular Brasileira, exibido pela TV Record, foi a mais
emocionante de todas.
Ponteio ganhou, entre outras concorrentes,
Domingo no Parque, de Gilberto Gil, que ficou em segundo lugar; Roda Viva, de
Chico Buarque, em terceiro lugar, e Alegria, Alegria, de Caetano Veloso, em
quarto. Terminado o festival, Edu Lobo embarcou para uma temporada de dois anos
nos EUA. "Algumas pessoas, como Gil e Caetano, foram embora porque tinham
problemas sérios. Eu não tinha nenhum problema, não ia ser preso, não ia
acontecer nada comigo, mas eu queria ir embora. A gente achava melhor, porque estava
feio, sujo, pesado", declarou Edu Lobo aos jornalistas Renato Terra e
Ricardo Calil, autores do documentário e do livro Uma Noite em 67.
• Na
mira da ditadura
Em tempos de ditadura, todo cuidado era
pouco. Nem os ganhadores estavam livres de serem perseguidos pelo regime. Foi o
que aconteceu com Tony Tornado, hoje com 94 anos, e Maria Alcina, atualmente
com 76, os respectivos vencedores das edições de 1970 e 1972, com BR-3, de
Antônio Adolfo e Tibério Gaspar, e Fio Maravilha, de Jorge Ben.
Tony Tornado foi detido em 1971 por erguer o
punho cerrado, símbolo dos Panteras Negras, durante apresentação de Elis
Regina, com a música Black is Beautiful, dos irmãos Marcos e Paulo Sérgio
Valle. "Era visto como um agente subversivo que queria importar um
problema racial", explica o historiador Lucas Pedretti, doutor em
Sociologia pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) e autor do
livro Dançando na Mira da Ditadura (2022). "Para os militares, o Brasil
era uma democracia racial. Em outras palavras: não havia racismo no país".
Já Maria Alcina foi proibida de cantar em
1974. Por determinação da censura, não pôde fazer shows ou aparecer na TV por
20 dias. "Do 7º Festival Internacional da Canção, eu guardo as melhores
recordações: foi lindo ver o Maracanãzinho cantando o refrão da música. É
daquelas lembranças que ficam para sempre", emociona-se a cantora.
"Meu jeito de cantar, porém, incomodava os militares. Alegaram atentado ao
pudor e à moral".
• Protesto
nas entrelinhas
No livro A Era dos Festivais, Zuza Homem de
Mello fala da vez em que Solano Ribeiro foi chamado para uma reunião no Palácio
do Catete. Lá, foi avisado de tudo que não seria tolerado. Punhos cerrados? De
jeito nenhum! Letras subversivas? Muito menos! Decotes avantajados? Nem pensar!
"Esse é o primeiro ano em que o festival será exibido em cores, e um
decote avantajado em cores é muito mais imoral do que um decote avantajado em
preto e branco", explicou o censor. "Fui obrigado a ouvir uma bobagem
dessas", resigna-se Solano Ribeiro, 53 anos depois.
Por causa de letras supostamente subversivas,
compositores tiveram que dar explicações. Judith de Castro Lima, chefe da
Censura em São Paulo, implicou com a frase "Armadura e espada a
rifar", da música Dom Quixote, d'Os Mutantes. "É uma crítica ao
Exército?", quis saber. "Não", respondeu Rita Lee. "A
armadura e a espada são de Dom Quixote!". Não houve jeito. Só foi liberada
depois que a cantora trocou "espada" por "lança". Enquanto
isso, Gotham City, de Jards Macalé e José Carlos Capinam, passou despercebida
no 4º FIC, de 1969. "Caçavam bruxas nos telhados de Gotham City",
"Só serei livre se sair de Gotham City" e "Não se fala mais de
amor em Gotham City" diziam alguns dos versos da canção. "'O que
Capinam queria dizer com aquilo?', devem ter pensado os censores", ironiza
Homem de Mello. "Se tivessem substituído Gotham City por Brasil, teriam
matado a charada".
• Válvula
de escape?
As vaias merecem um capítulo à parte em todo
e qualquer livro sobre a história dos festivais. Até Roberto Carlos, quem
diria, foi alvo delas em 1967 quando arriscou o samba Maria, Carnaval e Cinzas,
de Luís Carlos Paraná, no 3º Festival de MPB. A primeira vaia de que se tem
notícia, porém, aconteceu um ano antes, no 1º Festival Internacional da Canção,
em 1966: Nana Caymmi foi vaiada ao ganhar o primeiro lugar com Saveiros, letra
de Nelson Motta e música de Dori Caymmi. A certa altura, Jair Rodrigues apelidou
os festivais de "festivaias".
Outras vaias históricas foram ouvidas por
Sérgio Ricardo, em 1967, e por Caetano Veloso, em 1968. "Podem vaiar.
Depois deste festival, minha música vai se chamar Beto Bom de Vaia",
ironizou o primeiro, ao ser vaiado no 3º Festival da MPB. O autor de Beto Bom
de Bola até tentou manter o bom humor, mas não conseguiu. Indignado, quebrou o
violão e o arremessou contra a plateia. "Mas, que juventude é essa?",
protestou o segundo, ao ser achincalhado pelo público depois de cantar É
Proibido Proibir no 3º FIC. "Vocês estão por fora!", trovejou.
Na final do MPB Shell 81, a história se
repetiu: "Não esperava que Purpurina pudesse ganhar. A favorita era
Planeta Água. É a famosa 'zebra'", admite Lucinha Lins, de 72 anos,
referindo-se às músicas de Jerônimo Jardim e Guilherme Arantes. "Se era
uma válvula de escape em plena ditadura? Talvez. Não saberia dizer. O que eu
sei é que o festival era como uma Copa do Mundo. Todo mundo parava para torcer.
Trazia uma imensa alegria para o país".
Fonte: DW Brasil

Nenhum comentário:
Postar um comentário