China: Notas sobre um sistema singular
Todos
temos opiniões sobre a China, mas muito poucos entendem como as coisas
funcionam no país. Em parte, isso se deve ao jornalismo extremamente pobre e à
desinformação geral. Um fator importante é o fato de que o chamado Ocidente, e
especialmente os EUA, estarem muito interessados em desinformação. A maioria
dos comentários é altamente ideológica. Mas compreender a China é crucial, e
nenhuma simplificação funciona para um país tão gigante e complexo. Não sou
especialista na China, mas estive lá várias vezes e acompanho as principais
publicações do China Daily, CGTN e outras fontes chinesas. Temos
muito a aprender sobre como a China organiza seu processo decisório. As pessoas
adoram rótulos – isso permite que classifiquem a China sem estudá-la,
reduzindo-a a “capitalismo de Estado”, “socialismo de mercado” e coisas do
tipo.
Um fato
óbvio e importante é que o sistema funciona. Em Paridade de Poder de Compra
(PPC), ou seja, em volume real de produção, o PIB chinês em 2022 atingiu US 30
trilhões, contra US$ 25 trilhões dos EUA, conforme mostram os dados do FMI
abaixo. Em valor real de produção, a China ultrapassou os EUA em 2017 e
continua avançando. Esse fato tem enorme importância, pois tem guiado a
política internacional dos EUA, como vimos nas reações de Trump e Biden. Um
novo equilíbrio mundial está surgindo – um realinhamento que busca isolar a
China e seus produtos por parte dos EUA, enquanto Pequim se abre por meio de
seu poderio econômico e tecnológico, trazendo novas oportunidades aos países
emergentes.
Mas o
que nos interessa mais aqui é entender como este país, emergindo do feudalismo
e de outros dramas em 1949, conseguiu uma transformação tão impressionante em
um período tão curto. Um ponto essencial é que a orientação geral do
desenvolvimento econômico que a China seguiu – e continua seguindo – é
praticamente oposta à tendência adotada pelo Ocidente: em vez de enriquecer
ainda mais os ricos, alegando que isso permitiria que o progresso “gotejasse” (trickle
down) para os pobres, todo o esforço chinês, desde o início, foi
orientado para resolver os problemas básicos da parcela mais pobre da
população, a grande maioria. Os esforços foram direcionados para onde eram mais
necessários.
Na
última fase destes processo, de 2013 a 2020, a China embarcou num programa
iniciado pelo presidente Xi Jinping, para tirar da pobreza extrema as 100
milhões de pessoas restantes. Elas somaram-se às 700 milhões que deixaram esta
condição desde o início do programa de reforma e abertura, em 1978. De lá até
hoje, a China tornou-se responsável por mais de 70% na redução da pobreza em
todo o mundo . Estes números foram amplamente confirmados, e
nos oferecem uma transformação-chave sobre como pensar a Economia.
No
Brasil, durante a ditadura de 1964-1985 apoiada pelos EUA, o lema era: “Deixem
o bolo crescer primeiro, depois o dividiremos”. Em outras palavras,
justificava-se políticas que aprofundavam a desigualdade. Atualmente, o Brasil
permanece entre os 10 países mais desiguais do mundo. O que os números chineses
demonstram é que, ao contrário da narrativa de que construir fortunas para os
ricos acabará beneficiando também os pobres, não há contradição entre inclusão
econômica e crescimento econômico. Na verdade, isso equivale a um
desenvolvimento inclusivo. Essa não é uma originalidade chinesa — é o que
funciona, e precisamos disso para o mundo. Os dados sobre a estagnação
econômica da metade mais pobre da população americana são explícitos. As
estatísticas globais sobre desigualdade são ainda mais dramáticas. Não se trata
aqui de ideologia, mas de senso comum: investir no que funciona, priorizando as
necessidades básicas das populações.
Um
instrumento fundamental para a China promover, simultaneamente, uma política
econômica generosa voltada para o povo e investir em infraestrutura e indústria
básica é seu controle sobre o sistema financeiro. Nas últimas décadas, o
Ocidente promoveu fortunas financeiras às custas do crescimento produtivo. “O
aumento das taxas de juros geralmente tem impactos positivos para as
instituições financeiras, pois amplia as margens de lucro dos bancos e melhora
os retornos dos investimentos para seguradoras e gestores de fundos. No
entanto, também desacelera a economia como um todo, reduz o dinheiro disponível
para famílias e empresas e diminui a demanda por crédito, que se torna mais
caro.” O mesmo relatório destaca que “a China deve expandir o uso piloto de sua
moeda digital do banco central (CBDC), chamada e-yuan, e pode implementá-la em
todo o país.”
O ponto
crucial é que a China tem a capacidade de direcionar recursos financeiros para
investimentos produtivos e consumo de massa com juros baixos — mais uma vez, o
oposto do que a financeirização no Ocidente está alcançando. Direcionar
dinheiro para investimentos produtivos eleva o nível de produção, e juros
baixos permitem a expansão da demanda sem pressão inflacionária. Segundo The
Economist, “a China já gerencia tanto a oferta de moeda quanto as taxas de
juros com setores específicos em mente. Desde 2015, por exemplo, criou centenas
de bilhões de yuans para a construção de moradias populares. Recentemente,
instruiu os bancos a reduzirem as taxas de juros para pequenas empresas.
Tipicamente, um chinês paga 4,6% de juros em um empréstimo. Descontando a inflação
de 2%, isso significa uma taxa real de 2,6%. No Brasil, enfrentamos juros de
51% para famílias e 21% para empresas, com uma inflação de 4% — um dreno
financeiro improdutivo escandaloso, uma usura descarada com narrativas
fantasiosas.
Como
parte da política financeira de bom senso da China, o comércio externo está
tendendo a evitar os custos da intermediação em dólar. Conforme relatado pela
rede de mídia chinesa CGTN, os dois países “realizarão suas volumosas
transações comerciais e financeiras diretamente, trocando yuan por reais e
vice-versa, em vez de usar o dólar como intermediário”. O veículo destacou que
a China é o maior parceiro comercial do Brasil, e em 2022 os dois países
realizaram mais de US$ 150,5 bilhões em comércio bilateral. Essa tendência
atualmente envolve diversos países. O dólar ainda é dominante, mas como tem
sido usado para gerar dependência de dívida em vez de investimento produtivo,
cada vez mais países estão recorrendo a trocas bilaterais em suas próprias
moedas. Na China, o dinheiro está vinculado à economia real, como os bancos
costumavam fazer no Ocidente.
Outra
característica fundamental do processo decisório chinês é a forma como evitou
tanto o fundamentalismo de mercado quanto as simplificações estatizantes. Deng
Hsiaoping, o pai das reformas, explicou de modo simples o pragmatismo chinês:
quando você atravessa um rio, é preciso sentir as pedras com os pés. É
importante sublinhar que o país não responde a uma “situação”, mas a um cenário
que se transforma rapidamente – dos pontos de vista tecnológico, político,
econômico e cultura. Um exemplo: a China precisa reduzir sua dependência do
carvão e está fazendo a lição de casa. Esta transitando para o solar, mas ao
invés de construir uma grande empresa estatal para produzir painéis
fotovoltaicos, organiza uma grande empesa estatal para produzir maquinário básico
e equipamentos para fabricar os painéis.
Dessa
forma, qualquer empresa privada em qualquer região do país pode obter um
empréstimo barato no banco, comprar os equipamentos e produzir painéis conforme
a demanda local. De certa forma, o Estado fornece o impulso inicial para o
setor privado se engajar em tendências ambientalmente importantes. É uma
mistura público-privada inteligente e pragmática, com o Estado realizando os
investimentos estratégicos mais pesados.
Isso
também implica uma atitude diferente nas relações com as corporações
transnacionais. A China de fato abriu sua economia, mas não de forma
subserviente. Empresas interessadas precisam negociar quantos chineses
participarão dos conselhos administrativos e quanto de transferência
tecnológica será garantida, definindo interesses equilibrados dentro das
orientações gerais da economia chinesa. A política dominante em muitos países,
de “atrair” investimentos reduzindo ou eliminando impostos e restrições ambientais,
é evitada. E funciona.
Outra
característica essencial do “Novo Manual da China” (New China Playbook), como
Keyu Jin o denomina, é a descentralização. A China abandonou rapidamente o
modelo de gestão da União Soviética, baseado em centralização e ministérios
gigantescos, optando por um modelo radicalmente descentralizado. Isso significa
que o governo central em Pequim mantém força política para traçar as diretrizes
estruturais – como políticas ambientais, a opção pelo sistema de trens de alta
velocidade, a priorização da erradicação da pobreza, as diretrizes para
gerenciamento do maciço êxodo rural e, atualmente, as escolhas em ciência e
tecnologia. No entanto, trata-se de um governo central enxuto, pois a
implementação dessas diretrizes é rigorosamente descentralizada.
Keyu
Jin a chama de “economia dos prefeitos”, enquanto Arthur Kroeber, autor
de A Economia da China, considera que o país é ainda mais
descentralizado que a Suécia – onde 70% dos recursos públicos são transferidos
diretamente para as autoridades locais. No Brasil, esse percentual gira em
torno de 15%, obrigando prefeitos a peregrinar até Brasília em busca de
recursos. Resultado: nem a gestão municipal funciona (por falta de recursos),
nem o governo central (atolado em micronegociações eleitoreiras). É uma ineficiência
sistêmica. Os EUA, por sua vez, já usufruíram de ágil capacidade decisória
local (incluindo bancos comunitários), antes que megacorporações assumissem o
controle. A China, essencialmente, é gerida no nível local, onde população,
empresas e gestores – familiarizados com desafios e potenciais específicos –
realizam os ajustes necessários.
O
bem-estar econômico das famílias não depende apenas do acesso a dinheiro – para
pagar aluguel e despesas diárias –, mas também do acesso a bens e serviços
públicos de consumo. Precisamos de segurança, mas não “compramos” policiais,
assim como não adquirimos hospitais, escolas, parques em nossos bairros, rios
limpos e tantos outros serviços que representam cerca de um terço de nossa
renda – um “salário indireto” por meio do acesso universal a serviços públicos
gratuitos. Educação, saúde, espaços de lazer e similares são fornecidos pela
administração pública, o que os torna muito mais baratos e eficientes do que
políticas sociais privatizadas, centradas na maximização de retornos
financeiros. Isso aumenta radicalmente a eficiência geral da administração chinesa.
Novamente,
não se trata de uma questão de ideologia, mas de senso comum básico de gestão.
Algumas coisas – como produzir carros, pão ou tomates – podem funcionar
perfeitamente como empresas privadas, mas educação, saúde, segurança ou grandes
infraestruturas são mais eficientes nas mãos do setor público. Nossas economias
são complexas demais para depender de simplificações ideológicas. As questões
ambientais, em particular, dependem fortemente do controle público. A abordagem
pragmática chinesa, baseada no que funciona melhor em cada forma de
organização, não apenas tornou a China muito mais eficiente, mas também nos
traz muitas lições sobre como nos organizarmos.
A
ciência e a tecnologia tornaram-se centrais no contexto da revolução digital
mundial, e a China não apenas definiu o progresso nessa área como uma
prioridade nacional, mas também criou um ambiente colaborativo baseado em
pesados investimentos públicos e parcerias com o setor privado. Iniciativas
como os Recursos Abertos para Educação (ORE) garantem que inovações em qualquer
universidade ou centro de pesquisa sejam compartilhadas em toda a rede,
evitando duplicação de esforços e permitindo que todas as instituições
trabalhem na vanguarda da inovação, em um ambiente sinérgico de colaboração e
acesso livre. A China copiou – como todos os outros –, mas hoje é ela quem está
sendo copiada. A abordagem colaborativa de acesso aberto em ciência e
tecnologia é certamente muito mais eficaz do que nossa selva de patentes e
direitos autorais.
Deixe-me
acrescentar que essas diretrizes eficientes estão fundamentadas em um processo
decisório político baseado em formação técnica e acumulação de experiência em
todos os níveis. Os chineses comentam com ironia sobre como, nos EUA, Trump foi
eleito sem a mínima ideia sobre como a administração pública funciona e,
essencialmente, reduziu os impostos pagos pelo mundo corporativo que apoiou sua
campanha, passando a fazer declarações agressivas sobre política externa. A
ampla experiência de Xi Jinping no nível municipal tornou-o familiar aos
desafios diários enfrentados por famílias simples, e aos poucos o conduziu a
sua posição atual, à medida em que ele compreendia de modo mais profundo o
conjunto das responsabilidades e trabalhadores da administração pública.
Igualmente
importante — ou até mais — os administradores chineses compreendem claramente
que não estão respondendo a uma situação estática, mas a um movimento acelerado
de transformação. Trata-se de uma abordagem pragmática, porém não simplista.
Quando Keyu Jin menciona “além do socialismo e do capitalismo”, ela se refere
menos a um novo sistema e mais à flexibilidade de adaptação diante de desafios
em constante evolução.
Fonte:
Por Ladislau Dowbor, em Meer| Tradução: Antonio Martins, em Outras Palavras

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