Ancelotti
vira tábua de salvação de Ednaldo na CBF e atiça xenofobia histórica no futebol
brasileiro
Carlo
Ancelotti é o novo técnico da seleção principal masculina na Confederação
Brasileira de Futebol, a CBF – e já assume o cargo cercado por tensões: seja
pela insistência da entidade, após a negativa ao convite anterior em 2024, seja
pelo comportamento reativo que a presença de um estrangeiro tem provocado em
treinadores e torcedores.
Tanto o
desespero por finalmente anunciar o ex-jogador italiano, multicampeão no
comando de times europeus, quanto a resistência da comunidade esportiva diante
de um profissional do exterior à frente da seleção pentacampeã escancaram
dinâmicas históricas, vivas nas disputas políticas em curso.
Se
esportivamente a contratação se justifica pelas conquistas de Ancelotti, a
espera pelo anúncio demonstra, no mínimo, desorganização. O nome estrangeiro era cogitado
desde 2023 –
o que torna as curtas passagens dos treinadores Fernando Diniz e Dorival Júnior
improvisos pouco profissionais em uma confederação que movimenta mais de R$ 1 bilhão
por ano.
A
insistência não pode ser encarada somente como uma obsessão pessoal do
presidente da CBF, Ednaldo Rodrigues, que manteve sua preferência pelo técnico em meio a denúncias e processos
judiciais.
Na prática, o apego a Ancelotti significa um último recurso para conservar
alguma autoridade no cargo.
Na
semana anterior à confirmação do técnico, outro processo contra o presidente da
CBF virou notícia, foi parar no Supremo Tribunal Federal e o deixou na iminência do
afastamento.
O reconhecimento esportivo do treinador, inegável, serve simultaneamente para
abafar as críticas à atual gestão e oferecer alguma resposta acerca do
desempenho da seleção brasileira. É desconfortável a quarta colocação nas
eliminatórias para a Copa do Mundo do ano que vem.
E não é apenas a estrutura pouco
democrática da CBF,
cujas bases se mantêm há quase cem anos, que aponta para os processos
históricos em torno do esporte. A relutância de treinadores à presença de
qualquer estrangeiro à frente da seleção também sugere continuidades com o
passado.
Nomes que ocuparam o mesmo cargo têm
criticado a ausência de um brasileiro no comando técnico do time, desde quando a
chegada de Ancelotti era apenas uma possibilidade. Isso se deve, a partir dessa
perspectiva, à impressão de que somente alguém daqui compreenderia o futebol
nacional.
A ideia de um estilo de futebol
genuinamente brasileiro ressoa nessas ofensivas. Embora a oposição
ao desembarque de um estrangeiro na CBF ainda não tenha descambado para a
brutalidade, essa contrariedade transcende o círculo dos principais treinadores
do país – formado por candidatos ao mesmo posto, interessados em uma eventual
reserva de mercado.
Em
publicações em plataformas digitais, não têm sido incomuns acenos de torcedores
nessa direção. Dada a abrangência das insatisfações, tradições populares podem
esconder alguns indícios a respeito da formação dessa antipatia ao longo do
tempo.
O
futebol conquistou multidões enquanto os principais centros urbanos recebiam
imensos contingentes populacionais. A assimilação dos novos habitantes foi
conflituosa, com greves, revoltas e atritos que se estenderam pelas primeiras
décadas do século XX.
A
movimentação na cena urbana foi de tamanha proporção que os setores que
comandavam econômica e politicamente o país tiveram que ceder: as pressões
populares resultaram na regulamentação do trabalho no Brasil nos anos 1940. Até
chegar a esse ponto, as disputas se deslocaram para a cultura no país.
Na
tentativa de conter a organização dos trabalhadores, o governo federal avançou
sobre lideranças que promoviam as manifestações. Era o regime do Estado Novo:
durante o período autoritário, muitos dos perseguidos eram de origem
estrangeira e haviam trazido estratégias para reivindicar direitos de seus
países de origem.
A
Itália, por circunstâncias históricas, estava bem representada entre os
manifestantes. Além da repressão policial, o governo colocou em circulação
propagandas e, consequentemente, valores que se espalharam até pelas camadas
populares. No limite, aguçaram a xenofobia.
Isso é
ainda mais explosivo caso sejam observadas as consequências para a identidade
nacional. Aos olhos do governo, ser brasileiro era ter nascido aqui e se
comportar como um trabalhador – não qualquer operário contestador que buscasse
seus direitos, mas um dócil funcionário.
À
revelia dos interesses ditatoriais as multidões continuaram a exigir condições
melhores de vida, a despeito de os traços que compunham a brasilidade terem
sido marcados por essa reação aos estrangeiros. As campanhas publicitárias
coincidiram, entre os anos 1930 e 1940, com a crescente popularidade do
futebol.
A Copa
do Mundo de 1938 é ilustrativa: a delegação brasileira se destacou no torneio e
pela primeira vez figurou entre as candidatas ao troféu. Foi eliminada na
semifinal, contudo, pela seleção italiana.
Principal
locutor esportivo à época, Gagliano Neto foi o responsável por narrar ao país
campanha pelo rádio e, por fim, comunicou a derrota para a equipe que
levantaria o troféu após a decisão. A situação deu vazão à fúria das multidões,
provocada pelo futebol. Entre mal-entendidos e controvérsias sobre a
arbitragem, relatos apontam para a violência contra o radialista.
Por remeter à Itália, o nome de
Gagliano Neto foi ironicamente adaptado para “Italiano Nato” pela cobertura
esportiva da época. O narrador foi hostilizado e conviveu com dificuldades no
restante da carreira por conta dessa reação aos estrangeiros em contexto global
de nazismo, fascismo e nacionalismos exagerados.
Apesar
de serem raros os registros que documentem essa passagem, o Mundial de 1938
sinaliza que a associação do futebol com a sensação de pertencimento ao Brasil
convive historicamente com atravessamentos da xenofobia.
Sob a
liderança de Ancelotti na seleção, esses antecedentes voltam à tona. Em outra
conjuntura, é certo. Internacionalmente, as relações exteriores têm sido
definidas pela escalada de intensos patriotismos – com consequências econômicas
e políticas.
Internamente,
o Brasil lida com atos antidemocráticos, que vão de fanatismos religiosos a
oposições de setores empresariais. O futebol e, especificamente, a CBF
não estão isolados da sociedade. Para que a temporada do novo técnico seja
bem-sucedida será necessário conviver com vários desses dilemas, que se
espalham pela vida de gente comum.
¨ Crise da seleção
expõe autoritarismo na CBF
A
paixão nacional pelo futebol não pode ser encarada com ingenuidade – a relação
é passional, mas passa longe de parecer um carinho inocente. A história extrai
do esporte um estranho fator de mobilização para o ódio espalhado pela
sociedade.
Essas
pressões, difusas, fazem com que mudanças se precipitem, a exemplo da recente
decisão de tirar Dorival Júnior do cargo de treinador da seleção masculina. Em
2025, a instabilidade coincidiu com a reeleição de Ednaldo Rodrigues como
presidente da Confederação Brasileira de Futebol (CBF).
Um ano
antes da Copa do Mundo na América do Norte, a CBF se esgarça publicamente. Do
ponto de vista administrativo, o pornográfico aumento dos salários dos
presidentes das federações estaduais e os recursos gastos para viagens de
aliados, denunciados em reportagem da piauí, deixam em evidência a falta de
democracia na entidade.
Esportivamente,
as derrotas e o afastamento dos torcedores, com ingressos caros e jogos
sediados fora do país, despertam um desgosto impreciso, disperso na cultura
popular. E suscitam reações.
Ainda é
comum encontrar quem o associe com a alienação, mas o esporte não esteve imune
aos conflitos na sociedade, e uma desconfortável constância reforça isso.
Quando o calendário se mostra apertado, os dirigentes escancaram os alicerces
monstruosos do futebol no Brasil: demitem técnicos, simulam mais atenção a
apelos populares e fazem reformulações na seleção.
A
pressa poderia expor apenas a falta de planejamento – comprovada, sem dúvidas,
pelas hesitações dos gestores. Mas, em pelo menos outras duas oportunidades no
passado, as trocas tumultuadas no comando da seleção ajudam a explicar as
disputas políticas: uma no fim da década de 1960 e outra no início dos anos
2000.
Esses
episódios ocorreram em períodos críticos, seja pelo autoritarismo e consequente
supressão das garantias básicas, seja através do desmonte do estado após a
concessão de empresas públicas à iniciativa privada. Em ambos, os confrontos no
legislativo, no executivo e nas ruas sutilmente se correlacionaram com a rotina
nos vestiários, campos de jogo e, principalmente, à beira dos gramados.
A
preparação para a Copa do Mundo de 1970 é ilustrativa. A edição anterior do
torneio, em 1966, havia sido a chance de um tricampeonato consecutivo, até hoje
inédito. Era, ainda, a primeira Copa da ditadura no Brasil – há relatos de que
as autoridades tentaram tirar proveito da popularidade daquela equipe, cuja
preparação foi caótica. O desempenho frustrou as expectativas com a eliminação
prematura na primeira fase.
Embora
o período autoritário já estivesse em vigor, a escalada da violência foi
disparada logo depois, em 1968, com o Ato Institucional Nº 5, o brutal AI-5. A
medida determinou, por exemplo, o fim do habeas corpus e a brutalidade da
repressão. Então, a insatisfação não poderia mais se manifestar nas formas
convencionais da política – de toda maneira, suprimidas.
Não é
exagero imaginar que a irritação tenha respingado no principal símbolo de
sucesso do país no exterior. Afinal, o bicampeonato em 1958 e 1962 arrancou
suspiros mundo afora. Sob essa paisagem trêmula, surpreendentemente, o popular
comentarista esportivo João Saldanha assumiu como técnico da seleção em 1969.
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Um técnico ‘inconveniente’ às vésperas da Copa
Começaram
a vir a público, em ano de véspera de Copa do Mundo, as fortes ligações de
Saldanha com o Partido Comunista Brasileiro, perseguido à época; brigas
públicas com outros profissionais do futebol; e até desentendimentos com Pelé.
Com as
sucessivas crises e a repercussão na cobertura especializada, a demissão de
Saldanha foi anunciada meses antes da competição. Quem levantou o troféu do
terceiro título brasileiro foi Mario Jorge Lobo Zagallo, outro treinador –
acompanhado de uma equipe técnica fortemente militarizada.
A
vinculação com o governo era direta. A então Confederação Brasileira de
Desportos, CBD, responsável por administrar o futebol, estava atrelada ao
Conselho Nacional de Desportos – um colegiado no interior do Estado.
Como
superar a maldição política da camisa verde e amarela na Copa do Mundo
Foi só
a partir do fim dos anos 1970 que a modalidade se tornou gradualmente mais
privada. A criação da CBF, uma instituição particular, exemplifica esse
processo. Passou a ser comum a crítica à mercantilização de clubes e
profissionais, sob a alegação do abandono dos antigos valores do esporte.
O
futebol, contudo, continuou a despertar reações acaloradas. Principalmente,
porque permaneceu entre as tradições populares a sensação de pertencer ao
Brasil por meio daquele histórico time multicampeão.
Daí a
ambiguidade: a seleção evoca a brasilidade da população e, simultaneamente, ao
estar sob controle privado obedece a orientações excludentes – que a afastam do
povo. Esses dilemas, presentes inclusive em bate-papos cotidianos, ganham
tamanha proporção que resvalam na ordem dos trabalhos em Brasília, em especial
a partir dos anos 1990, diante da agressividade do embate entre público e
particular.
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Derrota para a França, CPI e nova crise
A
década de 1990 foi definitiva para as privatizações de empresas estatais e não
é exagero identificar ali o ponto de partida para a perda de direitos que
alcança, no século XXI, os extremos da uberização. É possível notar
consequências pouco perceptíveis no desconforto com as mudanças e suas
implicações para o futebol.
A
revolta com a decisão da Copa do Mundo de 1998, em que o time brasileiro levou
3 a 0 dos franceses, e as infundadas acusações de que a seleção havia sido
sabotada são dois exemplos disso. A circulação das suspeitas de conspiração
entre gente comum reforça essa resistência à natureza meramente comercial do
futebol.
Foi
estabelecida nesse clima até uma Comissão Parlamentar de Inquérito, CPI, em
2000 para investigar a promiscuidade da modalidade com as empresas que o
financiam, rebatizada pelos jornais de CPI da Nike. Esporte nacional, lucro
global: o futebol entrava, mais do que nunca, na mira dos megainvestidores
internacionais.
Com o
aumento do montante em circulação, as suspeitas recaíam sobre empresários,
dirigentes e treinadores de futebol. Até
o atacante Ronaldo foi questionado a respeito da influência da patrocinadora e
até sobre sua escalação na final da Copa de 1998.
Assim,
somadas aos insucessos esportivos, as consecutivas alterações na equipe técnica
conduziram Luiz Felipe Scolari ao cargo de treinador no ano que antecedeu o
mundial da Coreia do Sul e do Japão – onde o Brasil conquistou o
pentacampeonato, em 2002.
A
despeito de ser chamado de ópio do povo por supostamente inebriar a população e
apartá-la dos problemas sociais, o futebol parece condensar descontentamentos
no Brasil.
Na
crise atual da CBF se empilham questões históricas como o autoritarismo,
representado por eleições com candidatos únicos e sem oposição nas urnas desde
1989, e pelo avanço de um restritivo poder privado, capaz de pagar viagens a
familiares de um parlamentar aliado para conservar boas relações com as
federações.
Há,
também, insatisfações disformes, que ressoam em gritos de torcida, mas
ultrapassam o próprio esporte.
Fonte:
Por Helcio Herbert Neto, em The Intercept

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