Al-Nakba,
77 anos: o que é, afinal, uma catástrofe?
Hoje é
um dia oportuno para nos perguntarmos o que é, afinal, uma catástrofe, para
refletirmos sobre o peso e o alcance dessa palavra. Para alguns, trata-se de um
evento abrupto e destrutivo, um rompimento violento da ordem e da normalidade —
uma suspensão do tempo linear, uma fratura que desorganiza o mundo e nos obriga
a encarar o fato de que nossos destinos escapam ao nosso controle. Essa
definição certamente expressa bem a experiência compartilhada por milhares de
palestinos no dia seguinte à declaração de estabelecimento do Estado de Israel
por David Ben-Gurion, em 14 de maio de 1948 — data cinicamente chamada em
Israel de “Dia da Independência”.
Independência
de quê, exatamente? Não está claro — afinal, colonizadores não podem declarar
independência de um território por eles ocupado. Mas foi precisamente isso que
Ben-Gurion proclamou naquele fatídico 14 de maio, marcando o fim da primeira
fase da guerra deflagrada após a resolução da ONU, em 29 de novembro do ano
anterior, que impunha o Plano de Partilha da Palestina. Ben-Gurion — que até os
24 anos chamava-se David Grün, nascido em Płońsk, na então Polônia czarista —
era à época Chefe Executivo da Organização Sionista Mundial e presidente da
Agência Judaica para a Palestina, entidades coloniais por excelência.
Aquilo
que a versão oficial da história israelense insiste em chamar de
“independência” foi, na verdade, uma das etapas mais brutais da limpeza étnica
da Palestina: mais de 500 aldeias destruídas, cerca de 15 mil mortos e 750 mil
pessoas forçadas ao exílio: Al-Nakba — “a catástrofe”, em
árabe.
Mas, se
para alguns uma catástrofe é um evento súbito e inesperado — como os dias de
horror, morte e expulsão que marcaram 1948 para o povo palestino —, outros
chamam a atenção para as catástrofes contínuas, persistentes, tornadas rotina.
Nem todas têm data de início ou fim; algumas atravessam décadas, séculos. E
esse também é o caso da Nakba.
Dessa
perspectiva — que talvez seja a que melhor exprime a história palestina —, a
catástrofe fere a percepção de normalidade do cotidiano, destrói a ilusão da
permanência, desvela o abismo sob o chão supostamente estável. Revela que o que
se chamava “normal” já repousava sobre ruínas. É o que Walter Benjamin chamaria de
verdadeiro estado de exceção: o regime da normalidade. A catástrofe, nesse
sentido, não é apenas um colapso — é também uma revelação: de que algo já
estava falido, apodrecido.
A Nakba
deve ser entendida como um processo iniciado ainda no final do século XIX, com
a intensificação da colonização sionista da Palestina, e que teve marcos
importantes nas décadas de 1920 e 1930, quando se acumulam revoltas, repressões
e deslocamentos forçados — os primeiros grandes despedaçamentos daquele
mundo. 1948, portanto, não é o começo, mas um dos ápices da catástrofe.
Um ápice porque
não se encerra em 1948. A Nakba continua e tornou-se uma nova rotina. A noção
de continuidade aqui é fundamental, pois reorganiza a memória coletiva, impõe
novas geografias do trauma e desloca a própria ideia de futuro. Em contextos de
colonialismo, apartheid ou limpeza étnica, a catástrofe não é um evento — é o
próprio regime. A morte torna-se administração, o extermínio vira política
pública, o sofrimento se converte em dado estatístico.
E o
perigo maior, como tantos têm alertado, está na normalização da barbárie — na
adaptação à dor alheia. E aqui chegamos aos nossos dias: dias que carregam o
peso de mais de 77 anos e um acúmulo de horrores sucessivos. Desde outubro de
2023, mais de 53.000 palestinos foram assassinados (segundo dados oficiais, mas
muito subestimados) e cerca de 90% da população de Gaza, estimada em 2,1
milhões de pessoas, foi deslocada de suas casas. O bloqueio imposto por Israel
desde março de 2025 interrompeu totalmente a entrada de alimentos, medicamentos
e combustível, criando uma realidade simplesmente impensável. A Organização
Mundial da Saúde alerta para o aumento alarmante da desnutrição infantil, com
11% das crianças em algumas áreas sofrendo de desnutrição aguda e pelo menos 55
mortes por fome já registradas.
A fome
ameaça toda a população de Gaza. Segundo a Classificação Integrada de Fases de
Segurança Alimentar (IPC), cerca de 477.000 pessoas em Gaza enfrentam fome
catastrófica (fase 5), enquanto mais de um milhão estão em situação de
emergência alimentar (fase 4). A escassez levou ao fechamento de padarias e
cozinhas comunitárias, e os preços de alimentos básicos dispararam. A
destruição de infraestruturas agrícolas e a falta de combustível comprometem
ainda mais a segurança alimentar da região.
Mas
nada disso é segredo. Cada um desses dados está amplamente acessível, e as
redes sociais registram cenas indescritíveis — de crianças despedaçadas, valas
comuns, hospitais bombardeados, passando pelos mais abjetos registros de crimes
de guerra. O primeiro-ministro israelense, Benjamin Netanyahu, já declarou que
não cessará as operações militares até a “derrota total do Hamas” e afirmou que
pretende ocupar Gaza por tempo indeterminado (os reféns israelenses
definitivamente não são sua prioridade). Autoridades do governo têm declarado,
de forma explícita, que a expulsão total da população palestina será
realizada.
Nada
disso é segredo, mas também não é novidade: entre os primeiros acontecimentos
que consolidaram a Nakba, há 77 anos, está o Plano Dalet, elaborado pela Haganá
— força terrorista sionista — no início de 1948, com o objetivo de “limpar”
militarmente as áreas destinadas ao futuro Estado de Israel. A aplicação desse
plano resultou em massacres como o de Deir Yassin, em abril daquele ano, cujo
impacto psicológico e estratégico foi devastador: espalhou o terror e
precipitou o êxodo forçado de dezenas de milhares de palestinos. A
história não apenas se repete — ela se intensifica. E tem sido assim há
décadas.
Em
1967, durante a Guerra dos Seis Dias, Israel ocupou militarmente Gaza, a
Cisjordânia e Jerusalém Oriental, em clara violação do direito internacional.
Essa ocupação configurou o regime sistemático de apartheid e colonialismo,
consolidado por meio da expansão de assentamentos ilegais, demolições de casas,
confisco de terras agrícolas, construção do muro de separação e imposição de um
sistema jurídico duplo: leis civis para colonos judeus e leis militares para
palestinos. Além disso, prisões arbitrárias e a detenção administrativa — sem
acusação formal ou julgamento — tornaram-se práticas comuns. Desde então, mais
de 800 mil palestinos passaram pelo sistema carcerário israelense, incluindo
milhares de crianças. A ocupação também fragmentou o território palestino em
enclaves isolados, tornando impossível uma vida social, econômica e política
autônoma.
Nas
últimas décadas, a Faixa de Gaza tornou-se o principal alvo das ofensivas
militares israelenses e da política de punição coletiva. Após a vitória do
Hamas nas eleições de 2006 e o bloqueio imposto em 2007, Gaza foi submetida a
um cerco terrestre, aéreo e naval que restringe drasticamente a entrada de bens
essenciais e a liberdade de circulação. Desde então, Israel lançou sucessivas
operações militares de grande escala contra a população civil: “Chumbo Fundido”
(2008-2009), que deixou mais de 1.400 mortos; “Pilar Defensivo” (2012); “Margem
Protetora” (2014), com mais de 2.200 mortos; e “Guardiões das Muralhas” (2021),
com bombardeios sobre prédios residenciais e centros de imprensa. Todas essas
ofensivas tiveram como alvo infraestruturas civis — escolas, hospitais, redes
de eletricidade e saneamento — e contribuíram para o colapso das condições
básicas de vida em Gaza, já extremamente precarizadas pelo bloqueio.
A
consequência é uma crise humanitária permanente, agravada pela destruição
cíclica do território e pela impossibilidade de reconstrução efetiva sob o
cerco. Antes de outubro de 2023, Gaza — cuja população é composta
majoritariamente por refugiados da Nakba e seus descendentes — já estava
submetida a condições de vida insustentáveis: mais de 80% já viviam abaixo da
linha da pobreza, o desemprego ultrapassava os 60%, e a água potável era objeto
de luxo. A cada ofensiva, novos traumas se somam a uma paisagem urbana em
ruínas e a um cotidiano dominado pela escassez e pelo luto. Essa realidade não
é consequência de uma falha de governança, mas de um projeto de dominação
colonial sustentado por décadas de impunidade e pela cumplicidade de potências
ocidentais, que garantem apoio político, diplomático e militar ao regime
israelense.
Uma
prova disso é a Resolução 194 da ONU que, já em dezembro de 1948, reconheceu o
direito dos refugiados palestinos de retornarem às suas casas, isto é,
reconheceu a existência de refugiados, o que por si só já era um sintoma
evidente da catástrofe em curso. Mas Israel jamais cumpriu tal determinação. Ao
contrário, aprovou leis que expropriaram as terras palestinas — como a Lei de
Propriedade dos Ausentes (1950) — e impediu sistematicamente o retorno dos
expulsos.
Foi
nesse contexto que, em 1949, a ONU criou a UNRWA (Agência das Nações Unidas de
Assistência aos Refugiados da Palestina no Oriente Próximo), encarregada de
prestar ajuda humanitária aos milhões de palestinos que viviam em campos de
refugiados na Jordânia, Líbano, Síria, Cisjordânia e Faixa de Gaza. A própria
existência da UNRWA, pensada inicialmente como uma resposta temporária,
tornou-se símbolo da permanência da Nakba. Ainda hoje, mais de cinco milhões de
refugiados palestinos estão registrados na agência, vivendo sob condições
precárias, à espera de justiça e retorno. O corte de financiamento à UNRWA,
promovido por países como os EUA e o Reino Unido sob justificativas racistas,
faz parte dessa engrenagem de desumanização e abandono.
Diante
de tudo isso, pergunto: como ainda há quem tenha a coragem de falar em “paz”,
em “pontes”, em “diálogo”? A imoralidade, ao que parece, nunca falta à coragem.
Não por acaso, seguimos presos à tarefa distópica de explicar o óbvio — como
definir o que é genocídio, esclarecer que dizer “Palestina livre do rio ao mar”
não é antissemitismo, entre outras batalhas discursivas cujo único objetivo é
desviar nossa energia da denúncia e da ação política real.
Não
bastasse tudo isso, inventaram até o “pós-sionismo” — sabe-se lá o que isso
realmente quer dizer —, mais uma tentativa de escapar do confronto direto com a
realidade. A verdade é simples e incômoda: a catástrofe precisa acabar. E isso
significa reconhecer que Israel — o regime colonial, de apartheid e
genocídio — precisa ser desmantelado. Roubemos, então, a coragem dos imorais e
digamos sem rodeios: Israel, tal como existe, precisa acabar. Porque justiça
não se faz com eufemismos — e liberdade, tampouco.
Nós,
brasileiras e brasileiros, sabemos disso. A Nakba é plenamente inteligível para
nós. A realidade enfrentada pelo povo palestino sob ocupação e apartheid encontra
paralelos inquietantes nas vivências de populações negras, indígenas e
periféricas no Brasil. Ambas são marcadas por regimes de violência de Estado,
controle territorial e políticas de extermínio sustentadas por tecnologias de
vigilância, repressão e racismo estrutural. No caso brasileiro, comunidades
negras e indígenas têm sido historicamente alvo de ações policiais
militarizadas, remoções forçadas e criminalização sistemática, refletindo uma
lógica necropolítica que determina quem pode viver e quem deve morrer. Essa
lógica se expressa em operações letais nas favelas, na grilagem de territórios
indígenas, quilombolas e de populações tradicionais, e na marginalização de
jovens negros e periféricos.
Um
aspecto alarmante dessa conjuntura é a importação e aplicação de tecnologias
militares desenvolvidas por Israel, testadas em contextos de ocupação na
Palestina, e posteriormente empregadas em território brasileiro. O Brasil
tornou-se um dos principais compradores de tecnologia e treinamento militar
israelense, adquirindo drones, sistemas de vigilância, armamentos e veículos
blindados que hoje integram operações de “segurança pública” em periferias
urbanas e áreas indígenas. Essa transferência tecnológica transfere também uma
lógica: aquilo que foi projetado para controlar e exterminar palestinos é
adaptado para reprimir e silenciar os corpos racializados e empobrecidos no
Brasil. A tecnologia da guerra colonial atravessa fronteiras e se instala como
ferramenta cotidiana de repressão interna.
A
convergência entre as práticas de repressão em Israel e no Brasil revela uma
aliança tácita na exportação global de modelos de controle social e
militarização. Enquanto Israel utiliza os territórios palestinos como
laboratórios para o desenvolvimento de tecnologias de ocupação, o Brasil as
adota para reforçar políticas de segurança que perpetuam a violência contra
negros, indígenas e moradores de favelas. A luta por justiça e liberdade na
Palestina está, portanto, profundamente conectada às lutas por direitos, vida e
dignidade no Brasil. Reconhecer essa conexão é fundamental para fortalecer
solidariedades internacionais e combater, de forma articulada, os sistemas
globais de dominação e exclusão.
O
projeto colonial que teve início com a limpeza étnica da Palestina segue em
curso — agora sob os holofotes do mundo, que iluminam a barbárie em tempo real.
A normalização persiste, e é justamente nela que reside uma das formas mais
perigosas de cumplicidade. Quando a violência contínua se torna banal, quando a
ocupação é naturalizada e o extermínio se apresenta como “autodefesa”, o horror
deixa de chocar e passa a ser administrado, justificado, digerido.
Ao
refletir sobre o genocídio em Gaza e o lugar da Palestina na história,
confrontamos o mundo com o abismo ético de nossa época — um tempo em que a
barbárie não apenas se repete, mas é legitimada em nome da “segurança” e da
“geopolítica”. O que está em jogo é o próprio conceito de
humanidade. Quando os corpos das crianças são reduzidos a “danos
colaterais” e os direitos humanos tornam-se seletivos, a questão não é apenas
sobre a Palestina — mas sobre o destino moral do mundo contemporâneo. Diante disso,
a solidariedade com o povo palestino não é apenas um dever ético ou
humanitário: é um imperativo histórico. Impedir que a Nakba triunfe, que o
projeto genocida alcance seus objetivos, é preservar a própria ideia de
justiça.
Aos 77
anos da Nakba, a luta do povo palestino permanece como uma das mais longas e
emblemáticas da história. Não haverá justiça sem o direito ao retorno, sem o
fim do apartheid, sem a responsabilização por décadas de crimes. E
não haverá humanidade possível enquanto Gaza continuar sendo um campo de
extermínio a céu aberto. Lembrar a Nakba, hoje — pensar a catástrofe, portanto
— é também exigir responsabilidade. É interrogar não apenas o que aconteceu,
mas o que permitimos que acontecesse. É escavar as camadas do
silêncio, nomear o que foi negado, escutar.
O que
é, afinal, a catástrofe? Uma chance — dura, dolorosa — de reconstruir o
sentido, de recuperar o essencial, de escutar aquilo que o ruído da normalidade
sempre abafou. Talvez por isso, diante da catástrofe, tantos se calem — e
outros, enfim, comecem a falar.
Fonte:
Por Rafael Domingos Oliveira, no Blog da Boitempo

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