terça-feira, 13 de maio de 2025

A pior distopia é o aprisionamento pela via da privação: quando ler e escrever viram luxos

Há poucos dias, foi noticiado um fato que, mesmo não sendo novo, é sempre digno de lamentação: cerca de um terço da população brasileira não tem acesso à escrita, à leitura e a cálculos básicos com uma qualidade mínima. O chamado analfabetismo funcional difere do analfabetismo, pois, no caso do analfabetismo funcional, as pessoas sabem ler e escrever, sendo que, no entanto, os atos de saber ler e saber escrever não ultrapassam a barreira de uma atividade meramente mecânica. Em outras palavras: as pessoas que se enquadram neste dado estatístico não exercem um domínio da leitura, da escrita e da matemática básica de modo que tais conhecimentos sirvam como ferramentas para que tais pessoas possam conduzir suas vidas cotidianas. É como se faltasse algo que não poderia, em hipótese alguma, faltar.  

Diante da tarefa, aqui assumida, de buscar as raízes do problema e de apontar para possibilidades, gostaria de começar com um exemplo verídico de um professor que, ao longo de seus estudos na pós-graduação, acabou por se deparar com a obra de Antonio Gramsci, o famoso escritor de Cadernos do Cárcere e Cartas do Cárcere. Pelos títulos, podemos deduzir que o autor foi preso. Ele foi preso, ficou detido ao longo do regime fascista que assolou a Itália e, durante o tempo na prisão, produziu sua obra. A começar pelo fato de o professor estudioso sequer conseguir pronunciar o nome do pensador italiano, posso acrescentar o fato de o docente não ter uma vida nada compatível com o que pregava o intelectual que ele dizia estudar, na medida em pequenos escândalos carimbam o currículo do aspirante a intelectual gramsciano. Trata-se do típico caso da pessoa que lê sem entender o que está lendo. É uma leitura mecânica, rasa, sem a devida compreensão daquilo que o texto nos fornece. Isso é o analfabetismo funcional. Por sorte, é um caso excepcional, um caso que jamais representaria o universo docente brasileiro. No entanto, uma pessoa com tais requisitos formando centenas de outras pessoas é uma bomba-relógio para a sociedade. 

Com isso, essa coluna possui a seguinte ossatura: em primeiro lugar, tentarei explicar de que modo o analfabetismo funcional avançou, considerando causas históricas, sociais e territoriais. Em segundo lugar, algumas possibilidades serão oferecidas. É de modo antecipado que afirmo ser impossível combater o problema sem que políticas que busquem a igualdade sejam efetivadas pelo ou /para o povo. 

Considerando as causas históricas, em primeiro lugar, é importante lembrar que a educação escolar não era para todos. A educação formal era bem restrita em termos quantitativos. Poucas eram as pessoas por ela atendidas. Em termos espaciais, é seguro afirmar que as escolas emergem, no caso brasileiro, como fenômeno urbano. Até 1940, a maior parte da população vivia no campo, isso deve ser dito. Além de uma restrição espacial propriamente dita, a instituição escolar atendia a poucas crianças, fato que só passa a sofrer uma reversão por volta dos anos 1930. Aí passamos a contar com uma ideia de povo e uma ideia de escola responsável por formar o povo que passa a se identificar, pela via da educação formal, com uma ideia de nação. 

Essa restrição socioespacial – a má distribuição de escolas em um país gigantesco com maioria populacional vivendo no campo, além de uma escola que então desempenhava a função de formar as elites – leva alguns historiadores da educação a afirmar que houve um descompasso entre uma escola que deveria manter certa qualidade pedagógica e uma escola que, então, passava a receber mais e mais pessoas. Isto não quer dizer que o povo, ao adentrar a escola, gerou uma queda de qualidade. Isso tem a ver com um sistema escolar que, por questões de planejamento, de concepções de políticas públicas e por uma visão elitista de cidadania não se projetou para que as massas fossem bem recebidas como sempre mereceram ser. Indo além, não é necessário dizer que muitos dos que conseguiam adentrar o espaço escolar para estudar não saíam com os estudos concluídos. Havia peneiras internas, como o exame de admissão. A regra era não concluir os estudos.  

Para além da questão das desigualdades territoriais e de renda, não se pode esquecer que a função da escola – e a forma como tal função foi desempenhada ao longo do tempo, mudou. A instituição escolar não se dissocia da sociedade, pelo contrário. Cabe a ela sistematizar, a partir da contribuição das variadas ciências e campos do conhecimento, a vida e o cotidiano dos e /das estudantes. É aí que reside a história da educação; é sobre essas mudanças que a história da educação se debruça.  

Historicamente, os dados não são animadores: temos um sistema escolar que se abriu às massas há menos de um século e, ainda que “aberto”, várias eram as barreiras que acabavam por excluir a maioria. O primeiro resultado, então, é um país escravocrata em que as camadas mais pobres naturalizam a exclusão escolar, que deve ser entendida como a total falta de acesso à escola ou como uma falta parcial decorrente das dificuldades impostas.  

Nos dias atuais, temos um neoliberalismo sádico – que vem para afetar os que já eram afetados –  que, dentro de sua psicopatia mercantil, busca transformar tudo que há de mais básico em mercadoria e em lucro (para alguns poucos). Essa mercantilização totalitária acaba por esgarçar, ou mesmo romper, vínculos básicos. É fundamental ter ciência de que qualquer vínculo precisa de tempo para que seja constituído. A partir do momento em que o tempo vira mercadoria, os vínculos acabam por sofrer rupturas. A fluidez, a velocidade, o trabalho (precário) por aplicativos, o mito do “faça seu horário”, tudo isso tira o tempo do vínculo. E qual a importância deste vínculo, afinal? O que ele tem a ver com o analfabetismo funcional que presenciamos? O vínculo, no fim das contas, significava uma breve fiscalização, por parte dos adultos, para ver se as crianças e jovens estavam estudando e aprendendo algo na escola.  

Como fazer com que os índices melhorem, como fazer com que as pessoas leiam e escrevam bem, se muitos sites de notícias indicam o tempo previsto de leitura de determinada reportagem? Já não basta o livro ter se tornado artigo de luxo? Então a pessoa decide se vai ler, não pelo assunto ser interessante, mas pelo menor tempo de leitura? Soma-se a isso a inteligência artificial. Soma-se a isso, também, uma extrema direita apaixonada pela estupidez e que busca colocar toda e qualquer instituição produtora e difusora de conhecimento em situação de descrédito.  

Todos esses apontamentos mostram que o caminho para resolver tal questão não é fácil. Foram muitos anos de destruição, privação e exclusão, o que exige, também, muitos anos de reconstrução. Estímulo à leitura, obrigatoriedade de bibliotecas boas em todas as escolas com amplos horários de funcionamento e com profissionais qualificados, estímulo à escrita e ao uso da criatividade, políticas públicas voltadas à valorização e divulgação da literatura nacional, um sistema público de ensino que acolha a criança e sua família para além de afazeres burocráticos e obrigatórios. Enfim, muitas são as possibilidades. Porém, tal empreitada não deve ser assumida por quem ora para pneu, nem para quem rumina ódio e nem para quem acha que está fazendo muito ao andar, no auge de sua cafonice, com a bandeira do Brasil sobre seu paletó puído.  

Sobre os 29%: não é apenas uma questão de índice, é uma questão de dignidade, de tentar reconstituir uma ideia de povo e de gente, que em tempos de neoliberalismo, individualismo e uma falsa, muito falsa sensação de liberdade, acabou por desaparecer. 

¨      “Nossos alunos estão se autoeducando maravilhosamente”: uma mensagem da revolta sérvia. Por Kosta Jakic e Ivan Put

“Nossos alunos estão se autoeducando maravilhosamente”: uma mensagem da revolta sérvia

À luz do recente colapso do governo na Sérvia, Kosta Jakic, pianista e estudante de medicina belga de origem iugoslava, e Ivan Put, fotógrafo belga, trazem um relato local dos estudantes que ocupam a Universidade de Belgrado, além de mensagens dos filósofos Alain Badiou e Jacques Rancière ao movimento estudantil sérvio, abordando seus pontos de contato com os levantes de Maio de 1968. Desde novembro do ano passado, a Sérvia tem passado por protestos contínuos em resposta à corrupção do governo e à redução dos orçamentos para a educação. Dois meses após as ocupações de universidades organizadas por estudantes, o governo sérvio renunciou. Os estudantes continuam as ocupações em rejeição às décadas de privatização, medidas de austeridade e ineficácia geral do governo. Em cooperação com o coletivo PhD in One Night, Jakic e Put entraram nas ocupações estudantis (plenários) da Faculdade de Ciências da Organização e da Faculdade de Biologia da Universidade de Belgrado para discutir suas demandas políticas e técnicas bem-sucedidas de auto-organização.

Milica D., uma estudante de 19 anos da Faculdade de Ciências da Organização, exibe com orgulho um bolo. Na cobertura, há a característica mão vermelha e ensanguentada e a data que marca o início dos piquetes e a tomada da faculdade. É o quarto mês desse piquete, que surgiu em resposta à primeira ocupação na Academia de Artes Dramáticas. Há quatro meses, os protestos têm se multiplicado em todas as universidades sérvias em decorrência da tragédia de Novi Sad, que trouxe à tona a realidade da corrupção estatal desenfreada.

Em 1º de novembro de 2024, a cobertura da estação de trem da cidade de Novi Sad desabou, matando quinze pessoas e ferindo gravemente outras duas [nota do editor: mais uma pessoa, um jovem de 18 anos, morreu em decorrência dos ferimentos desde que este depoimento foi escrito]. A estação tinha acabado de ser reformada quatro meses antes e, ainda assim, o governo alegou falsamente que não havia sido feita nenhuma reforma. Após a tragédia, todos os documentos relacionados à construção da estação foram removidos da Internet. Ninguém foi responsabilizado pelo desastre. Ninguém foi preso.

Os primeiros protestos, liderados por estudantes da Academia de Artes Dramáticas de Nova Belgrado, assumiram a forma de um tributo silencioso às vítimas. Eles exigiram transparência e uma investigação sobre os responsáveis pela tragédia. Em 22 de novembro, os estudantes foram brutalmente atacados durante uma comemoração silenciosa. A violência e repressão sancionadas provocaram a atual onda de ocupações estudantis.

“Se não nos sentimos mais seguros nas ruas, então nos retiramos delas e tomamos as universidades”, diz Teodora J. “A polícia não tem permissão para entrar nas faculdades, a menos que tenha permissão do reitor. Aqui, usando o direito à autonomia universitária1, estamos seguros.”

Milica D. está na universidade desde o início de dezembro. Ela explica que é estressante, mas os alunos se apoiam muito e o bom-humor os ajuda a superar a situação. Ela acredita que eles só perceberão de fato a dimensão de suas ações com o passar do tempo.

Os alunos se auto-organizaram em diferentes grupos de trabalho focados em segurança, doações, logística, mídia, documentação e até mesmo “assuntos normativos”, como questões interpessoais ou preocupações individuais. As decisões são tomadas por meio de democracia direta em um plenário que abrange todo o bloco. Qualquer aluno de qualquer faculdade pode participar do plenário e expressar suas opiniões sobre as deliberações e o movimento. Cada voto tem o mesmo peso, e os votos são dados levantando a mão.

“Os relógios da universidade mostram a hora errada, como se eles estivessem em um mundo próprio”, diz Milica. Mas isso não importa. Ela perdeu a noção do tempo; há apenas luz e escuridão. Ela sabe que suas redes sociais estão sendo monitoradas, mas simplesmente dá de ombros. Somente estudantes e funcionários da universidade são autorizados a entrar, e devem passar antes por um controle de segurança, feito pelos membros do grupo auto-organizado responsável pela segurança.

É claro que isso foi uma grande surpresa para alguns. Ninguém esperava isso da geração do iPhone, obcecada pela Internet. “O presidente?”, diz Milica, “ele não é tão importante, sua função é cerimonial e excedeu em muito seus poderes. Queremos apenas que as instituições funcionem adequadamente. Queremos que a justiça seja a mesma para todos.”

Ela não tem aulas há quatro meses. Também não tem ideia de quanto tempo mais a ocupação vai durar ou quais serão suas consequências para o ano letivo. Talvez ela tenha que repetir as disciplinas. “Nós, da Geração Z, podemos suportar muita coisa. Estamos acostumados a isso — passamos pela Covid durante o Ensino Médio.”

Olga Stanojevic (25 anos, estudante de Belas Artes) não se importa com o fato de não haver aulas. Os protestos silenciosos e os piquetes são necessários, e as aulas alternativas atraem mais alunos do que as aulas regulares. Com tanta coisa em jogo, a produção criativa está prosperando nesse movimento.

“Todo o sistema educacional foi negligenciado”, diz a arquiteta Maja Lalic. “É por isso que as ações não se limitam às universidades, mas também se estendem às escolas primárias e secundárias — até mesmo aos jardins de infância. Muitos pais estão demonstrando solidariedade com os professores.”

Lav (13) e Tina (15), dois dos filhos de Maya, não vão à escola há meses. “Se eles tiverem que repetir o ano, que assim seja.”

Todos os dias, exatamente às 11h52 (horário do colapso da estação de trem em Novi Sad), ocorrem manifestações em toda a Sérvia. Os estudantes bloqueiam o tráfego e realizam um protesto silencioso de 15 minutos — um minuto para cada vítima.

Enquanto isso, mais e mais pessoas de todas as classes sociais estão se juntando aos estudantes, incluindo fazendeiros, advogados, médicos, motoristas de táxi e aposentados. O Teatro Nacional, a Filarmônica de Belgrado, a Ópera e teatros menores também aderiram ao movimento, cada um com suas próprias demandas. Todos os dias, os estudantes recebem doações: alimentos, roupas, colchões, cobertores e inúmeros outros produtos.

Na terceira semana de março, os partidários do regime iniciaram sua própria ocupação do Pioneer Park, uma área verde em frente ao Parlamento sérvio. São “estudantes” que afirmam querer voltar a estudar. Entre esses “estudantes” estão veteranos de guerra, universitários cujas faculdades não estão fechadas e figurantes de reality shows da TV local. Supõe-se que o governo esteja pagando para que fiquem no parque. Usando o humor como arma, os estudantes que ocupam os prédios das faculdades estão trabalhando para renomear o local no Google Maps, como “Fake Student Park” [Parque dos Estudantes de Mentira] ou “Student Attraction Park” [Parque de Atrações Estudantis].

Nos últimos meses, estudantes foram presos, detidos e brutalmente atacados. Diante dessa violência, eles fizeram a escolha deliberada de não ter um líder identificável. Dessa forma, o regime não pode atacar ninguém especificamente. Ao mesmo tempo, eles se recusam a se alinhar com a oposição política oficial ao governo e permanecem altamente críticos em relação a ela. Essa é uma característica crucial desse movimento estudantil: ele mantém distância dos partidos políticos, não tem líder, pratica a democracia direta e realiza suas ações com base na igualdade, solidariedade, empatia, justiça e organização coletiva.

Os estudantes têm quatro exigências:

1.       Liberação de todos os documentos relacionados à renovação da estação de trem de Novi Sad.

2.       Liberação dos estudantes presos nos protestos anteriores e retirada de todas as acusações contra eles.

3.       Identificação dos responsáveis pela violência contra os estudantes.

4.       Aumento de 20% no orçamento da educação.

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Leia um trecho da carta dos estudantes sérvios aos estudantes do mundo todo:

O mundo está à beira do abismo. A democracia representativa está falhando, nosso futuro está em perigo. Essa é a única maneira de assumir o controle e mudar o mundo. Há inúmeros motivos para fazer piquetes, e cada um sabe melhor qual é o seu.

Traduzam e compartilhem esta carta! Organizem-se e comecem a praticar a democracia direta agora!

Estudantes de todo o mundo, unam-se aos piquetes!

Belgrado, Faculdade de Artes Dramáticas, dezembro de 2024

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Mensagens ao movimento

“Agradeço à Edição Yugoslavia / PhD In One Night pelas ideias e documentos que me enviaram sobre o movimento de juventude na Sérvia. Esse movimento me lembra muito as primeiras formas da revolta de Maio de 68 na França, talvez com mais determinação, em nível nacional, do que ocorreu na França. Por enquanto, não tenho outra observação a não ser esta: o movimento político popular não deve, não pode permanecer fechado no mundo da juventude burguesa. Ele deve intervir imediatamente e se conectar com o mundo dos trabalhadores, e estar em contato próximo com o movimento proletário. Mantenham-me informado sobre tudo o que está acontecendo! Desejo a vocês muito sucesso!”

Alain Badiou

Paris, 1º de março de 2025

“O movimento estudantil e de juventude na Sérvia contém duas grandes lições para mim.

A primeira é bastante simples: mostra que em uma época em que a resignação às formas mais brutais e cínicas de dominação é quase onipresente no Ocidente, ainda é possível recusar a opressão e se rebelar. 

A segunda é que a revolta não é um movimento imprudente que precisa de especialistas para organizá-la ou para traduzir suas demandas na linguagem do poder e nas formas das chamadas instituições representativas.

Para aqueles que lutam contra a opressão, não há outra organização a não ser a auto-organização. Isso significa a ausência de hierarquia, assumindo todas as formas de luta e decidindo coletivamente sobre seus meios através de plenárias igualitárias e equitativas. O movimento de estudantes e jovens na Sérvia nos lembra que não podemos separar o fim dos meios, e que a democracia não é um fim exterior, mas uma prática, a própria vida do movimento. Nesse sentido, esse movimento é um modelo exemplar para nós.”

 

Fonte: Por Giam C. C. Miceli, em Le Monde/Blog da Boitempo

 

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