A pior distopia é o aprisionamento
pela via da privação: quando ler e escrever viram luxos
Há
poucos dias, foi noticiado um fato que, mesmo não sendo novo, é sempre digno de
lamentação: cerca de um terço da população
brasileira não tem acesso à escrita, à leitura e a cálculos básicos com uma
qualidade mínima.
O chamado analfabetismo funcional difere do
analfabetismo, pois, no caso do analfabetismo funcional, as pessoas sabem ler e
escrever, sendo que, no entanto, os atos de saber ler e saber escrever não
ultrapassam a barreira de uma atividade meramente mecânica. Em outras palavras:
as pessoas que se enquadram neste dado estatístico não exercem um domínio da
leitura, da escrita e da matemática básica de modo que tais conhecimentos
sirvam como ferramentas para que tais pessoas possam conduzir suas vidas
cotidianas. É como se faltasse algo que não poderia, em hipótese alguma,
faltar.
Diante
da tarefa, aqui assumida, de buscar as raízes do problema e de apontar para
possibilidades, gostaria de começar com um exemplo verídico de um professor
que, ao longo de seus estudos na pós-graduação, acabou por se deparar com a
obra de Antonio Gramsci, o famoso escritor de Cadernos do Cárcere e Cartas do Cárcere. Pelos títulos,
podemos deduzir que o autor foi preso. Ele foi preso, ficou
detido ao longo do regime fascista que assolou a Itália e, durante o tempo
na prisão, produziu sua obra. A começar pelo fato de o professor estudioso
sequer conseguir pronunciar o nome do pensador italiano, posso acrescentar o
fato de o docente não ter uma vida nada compatível com o que pregava o
intelectual que ele dizia estudar, na medida em pequenos escândalos carimbam o
currículo do aspirante a intelectual gramsciano. Trata-se do típico caso da
pessoa que lê sem entender o que está lendo. É uma leitura mecânica, rasa, sem
a devida compreensão daquilo que o texto nos fornece. Isso é o analfabetismo
funcional. Por sorte, é um caso excepcional, um caso que jamais representaria o
universo docente brasileiro. No entanto, uma pessoa com tais requisitos
formando centenas de outras pessoas é uma bomba-relógio para a sociedade.
Com
isso, essa coluna possui a seguinte ossatura: em primeiro lugar, tentarei
explicar de que modo o analfabetismo funcional avançou, considerando causas
históricas, sociais e territoriais. Em segundo lugar, algumas possibilidades
serão oferecidas. É de modo antecipado que afirmo ser impossível combater o
problema sem que políticas que busquem a igualdade sejam efetivadas
pelo ou /para o povo.
Considerando
as causas históricas, em primeiro lugar, é importante lembrar que a educação
escolar não era para todos. A educação formal era bem restrita em termos
quantitativos. Poucas eram as pessoas por ela atendidas. Em termos espaciais, é
seguro afirmar que as escolas emergem, no caso brasileiro, como fenômeno
urbano. Até 1940, a maior parte da população vivia no campo, isso deve ser
dito. Além de uma restrição espacial propriamente dita, a instituição escolar
atendia a poucas crianças, fato que só passa a sofrer uma reversão por volta
dos anos 1930. Aí passamos a contar com uma ideia de povo e uma ideia de escola
responsável por formar o povo que passa a se identificar, pela via da educação
formal, com uma ideia de nação.
Essa
restrição socioespacial – a má distribuição de escolas em um país gigantesco
com maioria populacional vivendo no campo, além de uma escola que então
desempenhava a função de formar as elites – leva alguns historiadores da
educação a afirmar que houve um descompasso entre uma escola que deveria manter
certa qualidade pedagógica e uma escola que, então, passava a receber mais e
mais pessoas. Isto não quer dizer que o povo, ao adentrar a escola,
gerou uma queda de qualidade. Isso tem a ver com um sistema escolar que, por
questões de planejamento, de concepções de políticas públicas e por uma visão
elitista de cidadania não se projetou para que as massas fossem bem recebidas
como sempre mereceram ser. Indo além, não é necessário dizer que muitos dos que
conseguiam adentrar o espaço escolar para estudar não saíam com os estudos
concluídos. Havia peneiras internas, como o exame de admissão. A regra era não
concluir os estudos.
Para
além da questão das desigualdades territoriais e de renda, não se pode esquecer
que a função da escola – e a forma como tal função foi desempenhada ao longo do
tempo, mudou. A instituição escolar não se dissocia da sociedade, pelo
contrário. Cabe a ela sistematizar, a partir da contribuição das variadas
ciências e campos do conhecimento, a vida e o cotidiano dos e /das
estudantes. É aí que reside a história da educação; é sobre essas mudanças que
a história da educação se debruça.
Historicamente,
os dados não são animadores: temos um sistema escolar que se abriu
às massas há menos de um século e, ainda que “aberto”, várias eram as barreiras
que acabavam por excluir a maioria. O primeiro resultado, então, é um país
escravocrata em que as camadas mais pobres naturalizam a exclusão escolar, que
deve ser entendida como a total falta de acesso à escola ou como uma falta
parcial decorrente das dificuldades impostas.
Nos
dias atuais, temos um neoliberalismo sádico – que vem para afetar os que já
eram afetados – que, dentro de sua psicopatia mercantil, busca
transformar tudo que há de mais básico em mercadoria e em lucro (para alguns
poucos). Essa mercantilização totalitária acaba por esgarçar, ou mesmo romper,
vínculos básicos. É fundamental ter ciência de que qualquer vínculo precisa de
tempo para que seja constituído. A partir do momento em que o tempo vira
mercadoria, os vínculos acabam por sofrer rupturas. A fluidez, a velocidade, o
trabalho (precário) por aplicativos, o mito do “faça seu horário”, tudo isso
tira o tempo do vínculo. E qual a importância deste vínculo, afinal? O que ele
tem a ver com o analfabetismo funcional que presenciamos? O vínculo, no fim das
contas, significava uma breve fiscalização, por parte dos adultos, para ver se
as crianças e jovens estavam estudando e aprendendo algo na escola.
Como
fazer com que os índices melhorem, como fazer com que as pessoas leiam e
escrevam bem, se muitos sites de notícias indicam o tempo previsto de leitura
de determinada reportagem? Já não basta o livro ter se tornado artigo de
luxo? Então
a pessoa decide se vai ler, não pelo assunto ser interessante, mas pelo menor
tempo de leitura? Soma-se a isso a inteligência artificial. Soma-se a isso,
também, uma extrema direita apaixonada pela estupidez e que busca colocar toda
e qualquer instituição produtora e difusora de conhecimento em situação de
descrédito.
Todos
esses apontamentos mostram que o caminho para resolver tal questão não é fácil.
Foram muitos anos de destruição, privação e exclusão, o que exige, também,
muitos anos de reconstrução. Estímulo à leitura, obrigatoriedade de bibliotecas
boas em todas as escolas com amplos horários de funcionamento e com
profissionais qualificados, estímulo à escrita e ao uso da criatividade,
políticas públicas voltadas à valorização e divulgação da literatura nacional,
um sistema público de ensino que acolha a criança e sua família para além de
afazeres burocráticos e obrigatórios. Enfim, muitas são as possibilidades.
Porém, tal empreitada não deve ser assumida por quem ora para pneu, nem para
quem rumina ódio e nem para quem acha que está fazendo muito ao andar, no auge
de sua cafonice, com a bandeira do Brasil sobre seu paletó puído.
Sobre
os 29%: não é apenas uma questão de índice, é uma questão de dignidade, de
tentar reconstituir uma ideia de povo e de gente, que em tempos de
neoliberalismo, individualismo e uma falsa, muito falsa sensação de liberdade,
acabou por desaparecer.
¨
“Nossos alunos estão se autoeducando maravilhosamente”:
uma mensagem da revolta sérvia. Por Kosta Jakic e Ivan Put
“Nossos
alunos estão se autoeducando maravilhosamente”: uma mensagem da revolta sérvia
À luz
do recente colapso do governo na Sérvia, Kosta Jakic, pianista e estudante de
medicina belga de origem iugoslava, e Ivan Put, fotógrafo belga, trazem um
relato local dos estudantes que ocupam a Universidade de Belgrado, além de
mensagens dos filósofos Alain Badiou e Jacques Rancière ao movimento estudantil
sérvio, abordando seus pontos de contato com os levantes de Maio de 1968. Desde
novembro do ano passado, a Sérvia tem passado por protestos contínuos em
resposta à corrupção do governo e à redução dos orçamentos para a educação.
Dois meses após as ocupações de universidades organizadas por estudantes, o
governo sérvio renunciou. Os estudantes continuam as ocupações em rejeição às
décadas de privatização, medidas de austeridade e ineficácia geral do governo.
Em cooperação com o coletivo PhD in One Night, Jakic e Put entraram nas
ocupações estudantis (plenários) da Faculdade de Ciências da Organização e da
Faculdade de Biologia da Universidade de Belgrado para discutir suas demandas
políticas e técnicas bem-sucedidas de auto-organização.
Milica
D., uma estudante de 19 anos da Faculdade de Ciências da Organização, exibe com
orgulho um bolo. Na cobertura, há a característica mão vermelha e ensanguentada
e a data que marca o início dos piquetes e a tomada da faculdade. É o quarto
mês desse piquete, que surgiu em resposta à primeira ocupação na Academia de
Artes Dramáticas. Há quatro meses, os protestos têm se multiplicado em todas as
universidades sérvias em decorrência da tragédia de Novi Sad, que trouxe à tona
a realidade da corrupção estatal desenfreada.
Em 1º
de novembro de 2024, a cobertura da estação de trem da cidade de Novi Sad
desabou, matando quinze pessoas e ferindo gravemente outras duas [nota do
editor: mais uma pessoa, um jovem de 18 anos, morreu em decorrência dos
ferimentos desde que este depoimento foi escrito]. A estação tinha acabado de
ser reformada quatro meses antes e, ainda assim, o governo alegou falsamente
que não havia sido feita nenhuma reforma. Após a tragédia, todos os documentos
relacionados à construção da estação foram removidos da Internet. Ninguém foi
responsabilizado pelo desastre. Ninguém foi preso.
Os
primeiros protestos, liderados por estudantes da Academia de Artes Dramáticas
de Nova Belgrado, assumiram a forma de um tributo silencioso às vítimas. Eles
exigiram transparência e uma investigação sobre os responsáveis pela tragédia.
Em 22 de novembro, os estudantes foram brutalmente atacados durante uma
comemoração silenciosa. A violência e repressão sancionadas provocaram a atual
onda de ocupações estudantis.
“Se não
nos sentimos mais seguros nas ruas, então nos retiramos delas e tomamos as
universidades”, diz Teodora J. “A polícia não tem permissão para entrar nas
faculdades, a menos que tenha permissão do reitor. Aqui, usando o direito à
autonomia universitária1, estamos seguros.”
Milica
D. está na universidade desde o início de dezembro. Ela explica que é
estressante, mas os alunos se apoiam muito e o bom-humor os ajuda a superar a
situação. Ela acredita que eles só perceberão de fato a dimensão de suas ações
com o passar do tempo.
Os
alunos se auto-organizaram em diferentes grupos de trabalho focados em
segurança, doações, logística, mídia, documentação e até mesmo “assuntos
normativos”, como questões interpessoais ou preocupações individuais. As
decisões são tomadas por meio de democracia direta em um plenário que abrange
todo o bloco. Qualquer aluno de qualquer faculdade pode participar do plenário
e expressar suas opiniões sobre as deliberações e o movimento. Cada voto tem o
mesmo peso, e os votos são dados levantando a mão.
“Os
relógios da universidade mostram a hora errada, como se eles estivessem em um
mundo próprio”, diz Milica. Mas isso não importa. Ela perdeu a noção do tempo;
há apenas luz e escuridão. Ela sabe que suas redes sociais estão sendo
monitoradas, mas simplesmente dá de ombros. Somente estudantes e funcionários
da universidade são autorizados a entrar, e devem passar antes por um controle
de segurança, feito pelos membros do grupo auto-organizado responsável pela
segurança.
É claro
que isso foi uma grande surpresa para alguns. Ninguém esperava isso da geração
do iPhone, obcecada pela Internet. “O presidente?”, diz Milica, “ele não é tão
importante, sua função é cerimonial e excedeu em muito seus poderes. Queremos
apenas que as instituições funcionem adequadamente. Queremos que a justiça seja
a mesma para todos.”
Ela não
tem aulas há quatro meses. Também não tem ideia de quanto tempo mais a ocupação
vai durar ou quais serão suas consequências para o ano letivo. Talvez ela tenha
que repetir as disciplinas. “Nós, da Geração Z, podemos suportar muita coisa.
Estamos acostumados a isso — passamos pela Covid durante o Ensino Médio.”
Olga
Stanojevic (25 anos, estudante de Belas Artes) não se importa com o fato de não
haver aulas. Os protestos silenciosos e os piquetes são necessários, e as aulas
alternativas atraem mais alunos do que as aulas regulares. Com tanta coisa em
jogo, a produção criativa está prosperando nesse movimento.
“Todo o
sistema educacional foi negligenciado”, diz a arquiteta Maja Lalic. “É por isso
que as ações não se limitam às universidades, mas também se estendem às escolas
primárias e secundárias — até mesmo aos jardins de infância. Muitos pais estão
demonstrando solidariedade com os professores.”
Lav
(13) e Tina (15), dois dos filhos de Maya, não vão à escola há meses. “Se eles
tiverem que repetir o ano, que assim seja.”
Todos
os dias, exatamente às 11h52 (horário do colapso da estação de trem em Novi
Sad), ocorrem manifestações em toda a Sérvia. Os estudantes bloqueiam o tráfego
e realizam um protesto silencioso de 15 minutos — um minuto para cada vítima.
Enquanto
isso, mais e mais pessoas de todas as classes sociais estão se juntando aos
estudantes, incluindo fazendeiros, advogados, médicos, motoristas de táxi e
aposentados. O Teatro Nacional, a Filarmônica de Belgrado, a Ópera e teatros
menores também aderiram ao movimento, cada um com suas próprias demandas. Todos
os dias, os estudantes recebem doações: alimentos, roupas, colchões, cobertores
e inúmeros outros produtos.
Na
terceira semana de março, os partidários do regime iniciaram sua própria
ocupação do Pioneer Park, uma área verde em frente ao Parlamento sérvio. São
“estudantes” que afirmam querer voltar a estudar. Entre esses “estudantes”
estão veteranos de guerra, universitários cujas faculdades não estão fechadas e
figurantes de reality shows da TV local. Supõe-se que o governo esteja pagando
para que fiquem no parque. Usando o humor como arma, os estudantes que ocupam
os prédios das faculdades estão trabalhando para renomear o local no Google
Maps, como “Fake Student Park” [Parque dos Estudantes de Mentira] ou “Student
Attraction Park” [Parque de Atrações Estudantis].
Nos
últimos meses, estudantes foram presos, detidos e brutalmente atacados. Diante
dessa violência, eles fizeram a escolha deliberada de não ter um líder
identificável. Dessa forma, o regime não pode atacar ninguém especificamente.
Ao mesmo tempo, eles se recusam a se alinhar com a oposição política oficial ao
governo e permanecem altamente críticos em relação a ela. Essa é uma
característica crucial desse movimento estudantil: ele mantém distância dos
partidos políticos, não tem líder, pratica a democracia direta e realiza suas
ações com base na igualdade, solidariedade, empatia, justiça e organização
coletiva.
Os
estudantes têm quatro exigências:
1. Liberação de todos os documentos
relacionados à renovação da estação de trem de Novi Sad.
2. Liberação dos estudantes presos nos
protestos anteriores e retirada de todas as acusações contra eles.
3. Identificação dos responsáveis pela
violência contra os estudantes.
4. Aumento de 20% no orçamento da educação.
________________________________________
Leia um
trecho da carta dos estudantes sérvios aos estudantes do mundo todo:
O mundo
está à beira do abismo. A democracia representativa está falhando, nosso futuro
está em perigo. Essa é a única maneira de assumir o controle e mudar o mundo.
Há inúmeros motivos para fazer piquetes, e cada um sabe melhor qual é o seu.
Traduzam
e compartilhem esta carta! Organizem-se e comecem a praticar a democracia
direta agora!
Estudantes
de todo o mundo, unam-se aos piquetes!
Belgrado,
Faculdade de Artes Dramáticas, dezembro de 2024
________________________________________
Mensagens
ao movimento
“Agradeço
à Edição Yugoslavia / PhD In One Night pelas ideias e documentos que me
enviaram sobre o movimento de juventude na Sérvia. Esse movimento me lembra
muito as primeiras formas da revolta de Maio de 68 na França, talvez com mais
determinação, em nível nacional, do que ocorreu na França. Por enquanto, não
tenho outra observação a não ser esta: o movimento político popular não deve,
não pode permanecer fechado no mundo da juventude burguesa. Ele deve intervir
imediatamente e se conectar com o mundo dos trabalhadores, e estar em contato
próximo com o movimento proletário. Mantenham-me informado sobre tudo o que
está acontecendo! Desejo a vocês muito sucesso!”
Alain
Badiou
Paris,
1º de março de 2025
“O
movimento estudantil e de juventude na Sérvia contém duas grandes lições para
mim.
A
primeira é bastante simples: mostra que em uma época em que a resignação às
formas mais brutais e cínicas de dominação é quase onipresente no Ocidente,
ainda é possível recusar a opressão e se rebelar.
A
segunda é que a revolta não é um movimento imprudente que precisa de
especialistas para organizá-la ou para traduzir suas demandas na linguagem do
poder e nas formas das chamadas instituições representativas.
Para
aqueles que lutam contra a opressão, não há outra organização a não ser a
auto-organização. Isso significa a ausência de hierarquia, assumindo todas as
formas de luta e decidindo coletivamente sobre seus meios através de plenárias
igualitárias e equitativas. O movimento de estudantes e jovens na Sérvia nos
lembra que não podemos separar o fim dos meios, e que a democracia não é um fim
exterior, mas uma prática, a própria vida do movimento. Nesse sentido, esse
movimento é um modelo exemplar para nós.”
Fonte:
Por Giam C. C. Miceli, em Le Monde/Blog da Boitempo

Nenhum comentário:
Postar um comentário