sexta-feira, 9 de maio de 2025

A nova realidade de segurança da Europa

O Tratado que criou a Comunidade Econômica Europeia, organização precursora da atual União Europeia, foi assinado em 25 de março de 1957, na cidade de Roma, e a escolha da capital italiana para esta solenidade teve um aspecto simbólico especial: a clara alusão ao Império Romano. Foi no seu período histórico que o continente esteve unido sob o mesmo comando político. A “arquitetura política” da criação da CEE surge como solução para o imperativo de pacificação de um continente assolado por mais de um milênio de guerras e que pouco mais de uma década antes tinha visto o fim do mais devastador dos conflitos, a Segunda Guerra Mundial. E nesta concepção, o historiador Alan Milward, em The European Rescue of the Nation State explica de que não se tratou da criação de uma organização que gradualmente suprimisse o Estado, mas sim o acordo que permitiu a volta do funcionamento do sistema de Estados Nacionais na Europa Ocidental, ou seja, um novo arranjo político que suprimiu algumas funções destes países para que esta invenção europeia, o Estado Nacional, pudesse voltar a operar na região do mundo que originalmente a criou.

Contudo, um aspecto a ser destacado é essencial: a Europa Ocidental do pós-guerra estabeleceu pactos para a pacificação entre seus Estados Nacionais lastreados na “relação transatlântica” com os Estados Unidos e constituição da Organização para o Tratado do Atlântico Norte (OTAN), em 1949. Na prática, isto significou transformar a Europa Ocidental num protetorado norte-americano, que se alargou para a Europa Oriental após o fim da Guerra Fria. O avanço da integração econômica europeia teve a garantia da segurança proporcionada pela OTAN, liderada e em maior medida custeada pelos EUA.

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A partir dos anos 1980 as iniciativas que visavam o desenvolvimento institucional do projeto europeu se articularam com ações de liberalização econômica, seguindo a tendência indicada pelo hegemon e sua matriz anglo-saxônica, com quem mantém uma “relação especial”, a Grã-Bretanha, nos governos de Ronald Reagan e Margaret Thatcher. Estas políticas resultaram, nos dois lados do Atlântico, em expressivo aumento da concentração de renda, descontentamento social e ascensão de legendas de extrema-direita, que, no caso europeu, crescem em grande medida expressando a rejeição de parte das populações à União Europeia.

E esta mesma globalização que fez aumentar a polarização social no chamado “Norte Global” foi oportunidade para o crescimento econômico de muitos países asiáticos com suas estratégias voltadas às exportações. Têm-se então a mudança de seu peso relativo no mundo, processo que segue avançando. União Europeia em especial, mas também os Estados Unidos se enxergam declinantes na hierarquia global de poder, em relação especialmente à China, com destaque para a percepção estadunidense de enfrentar uma inédita contestação à sua hegemonia por parte de Pequim, que se propõe a os desafiar nos campos econômico, diplomático, militar e tecnológico.

Nesta quadra histórica irrompe a Guerra da Ucrânia, com a invasão russa provocada pelo movimento expansivo da OTAN, e que teve como um dos seus objetivos principais, por parte de norte-americanos e britânicos, como já defendido pelo geógrafo Halford Mackinder em “O Pivô Geográfico da História”, provocar o distanciamento entre a Alemanha e a Rússia,    relação que se estreitou neste século XXI e que os EUA então viam como ameaça à sua supremacia na Europa e na Ásia. A “agressão russa” catalisou um movimento de reafirmação da OTAN, aliança que o presidente francês Emmanuel Macron descreveu em algum momento como “em morte cerebral”. Estados Unidos e União Europeia passaram a apoiar fortemente a resistência ucraniana, no que muitos analistas classificam como “proxy war” (guerra por procuração) na qual a Ucrânia cumpre pelo Ocidente o papel de enfrentar a Rússia.    

Os formuladores de política externa do governo democrata de Joe Biden definiram sua estratégia internacional a partir do reforço das alianças e consequente articulação de suas políticas com vistas à disputa hegemônica com a China. Esta “articulação” muitas vezes é conseguida com pressão, como no caso da solicitação dos EUA para que holandeses e japoneses não vendessem à empresas chinesas determinadas máquinas fundamentais para se fabricar chips avançados. O bloco liderado pelos EUA e seguido por europeus, japoneses, sul-coreanos, australianos e neozelandeses buscou, portanto, se contrapor ao “eixo autoritário” composto por Rússia e China. Desde o fim da Guerra Fria, a tese de que é interesse dos EUA enfraquecer a Rússia foi a vencedora no establishment e posta em prática, desde então, muitas vezes na forma de “guerra híbrida”, por sucessivos governos.

Neste segundo mandato de Donald Trump, ainda em seu início, o governo dos Estados Unidos vem exercendo uma política externa que em muito difere não apenas dos democratas, mas da linha seguida também pelo partido republicano desde o fim da Segunda Guerra Mundial. A ideia de “América First” rompe com o internacionalismo construído e liderado pelos EUA dos últimos 80 anos. A “ordem global baseada em regras” vai sendo substituída por um isolacionismo que busca renegociar a ordenação do mundo com as outras duas grandes potências, a Rússia e a China, tendo como premissa o estabelecimento de “zonas de influência” destes países. Alianças como a com os europeus são vistas como um fardo pelo novo governo.  Livre-comércio passa a ser visto como prejudicial, reindustrialização é um imperativo e até mesmo o respeito à integridade territorial das nações, uma peça fundamental da ordem internacional, não é mais garantido, com as ameaças do mandatário norte-americano ao Panamá, à Groenlândia e ao Canadá.

Para os europeus, a guinada representada pela invasão russa da Ucrânia, representou uma ruptura com décadas de “complacência” regional com o investimento em segurança. A guerra iniciada em 24 de fevereiro de 2022 gerou um impulso armamentista na Europa, com expressivo aumento nos dispêndios com os orçamentos militares. A Polônia vem liderando, em porcentagem do PIB, o gasto bélico no continente e a Alemanha então decidiu por um gasto extraordinário de mais de 100 bilhões de euros para rearmamento. No caso alemão, significou o fim de mais de duas décadas de exercício, conforme definição de Hans Kundnami em The Paradoxx of German Power, de uma semi-hegemonia geoeconômica na União Europeia, com foco nas estratégias exportadoras regional e global. A ênfase na economia e especificamente no comércio internacional pôde acontecer sem a necessidade de maiores gastos militares, pois a segurança sempre foi assegurada, desde o fim da Segunda Guerra Mundial, pelo hard power da infraestrutura militar da OTAN e “cobertura nuclear” dos EUA. A partir do “choque” da eclosão do conflito, iniciou-se, portanto, o estabelecimento de uma “economia de guerra” com conversão de indústrias para a fabricação de equipamento militar e a criação da “Zona Schengen” estratégica, numa alusão ao livre trânsito de cidadãos pela UE, para a liberdade de movimentação de tropas pelo continente, sem autorização prévia dos Estados.

A disposição de governo Trump, até então, em negociar com a Rússia o fim da guerra, mostrando-se mais inclinado a apoiar as posições do presidente russo Vladimir Putin, alijando os europeus das negociações, e as declarações do presidente norte-americano demonstrando pouco compromisso com a OTAN, além do já mencionado bullying com a Dinamarca na questão da soberania sobre a Groelândia tornaram evidente para os dirigentes da região que a posição de protetorado dos EUA não é mais garantida.   

  A Europa se vê premida pela necessidade de se rearmar. A Alemanha, que agora é liderada pelo conservador Friedrich Merz, decidiu tirar os gastos de defesa dos limites orçamentários e aprovou também um pacote de 500 bilhões de euros para investimentos na debilitada infraestrutura do país. A União Europeia, através do plano Rearm Europe prevê mobilizar 800 bilhões de euros para gastos com defesa no bloco. As dúvidas em relação à proteção por parte dos EUA estão fazendo avançar as conversas acerca de defesa conjunta independente dos países da região. A defesa nuclear também vem sendo discutida, com a possibilidade da França e da Grã-Bretanha oferecerem essa “cobertura”. Polônia e Alemanha tem falado em ter as próprias armas nucleares.

Na prática, essa “defesa conjunta” independente dos EUA por parte da Europa, embora desejada, não é algo fácil de se conseguir, pelos diferentes interesses de cada país. Os Estados Unidos sempre lideraram a OTAN como um poder externo que submeteu os países da região. Não há neste momento na Europa país com essa capacidade para liderar. França e Alemanha já vem disputando a primazia nesta questão. Há também o problema de que os europeus ainda vão depender dos EUA, estima-se, pelo menos por mais uma década, até que tenham construído suas próprias capacidades, o que implica, além do investimento nas forças armadas, a constituição de um complexo industrial de defesa que atenda amplamente as necessidades, pois atualmente também são muito dependentes dos EUA neste tipo de suprimento.

Politicamente, muitas das forças de extrema-direita europeias são mais próximas da Rússia e menos propensas a vê-la como um inimigo. E a extrema-direita vem crescendo na Europa, já governa a Itália e pode eventualmente governar França e Alemanha no futuro, o que torna mais provável que se mude este cálculo estratégico.

A aposta do novo Chanceler alemão Friedrich Merz, contudo, é que a recuperação econômica propiciada pelo “keynesianismo militar” e a recuperação da infraestrutura do país enfraquecerão politicamente a extrema-direita. Que a necessidade de se defender da Rússia (real ou em boa medida imaginada, para justificar esta direção) unirá a Europa. E que a Alemanha, como o país mais rico e de indústria mais importante da Europa, ainda que sem armas nucleares (o que pode mudar) pode liderar o continente nesta transformação de união econômica para também união estratégica.

<><> As “Big Techs” como empreendimento militar

As grandes empresas de tecnologia dos Estados Unidos, que lideram atualmente o ranking das maiores empresas do mundo, tem estado em muita evidência neste início do segundo governo de Donald Trump, seja devido ao papel de Elon Musk, homem mais rico do mundo, e que participa diretamente da administração republicana liderando o “DOGE”, sigla em inglês para “Departamento de Eficiência Governamental”, órgão que vem causando muita controvérsia e questionamentos acerca da legalidade de suas ações, ao fechar agências governamentais (que demandariam autorização do Congresso) ou demitir servidores (em grande número), seja pela adesão de um nome como Mark Zuckerberg, da Meta, que “adaptou” seu entendimento de “liberdade de expressão” para o da extrema-direita trumpista ou pelo alinhamento das demais gigantes do setor ao presidente.

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O acirramento da competição econômica e tecnológica com a China deixou explícita essa associação entre “Estado e Mercado”, que sempre existiu nesta área da alta tecnologia. Até mais do que isso: esta área da alta tecnologia que engendrou o surgimento destas megaempresas privadas conhecidas como “Big Techs” teve o seu início numa iniciativa do Pentágono e os produtos desenvolvidos por estas empresas (e muitas outras) abrangem utilizações militares e civis. O antropólogo Roberto J. González, da Universidade Estadual de San José, nos EUA, diz sobre a questão, em texto traduzido pelo site Outras Palavras

“Por diversas razões, é impossível entender totalmente as Forças Armadas dos EUA hoje sem uma análise de suas profundas conexões com a indústria de tecnologia. As interconexões entre os mundos da tecnologia de rede e da defesa remontam a mais de 50 anos. Por exemplo, desde o início dos anos 1960, a Agência de Projetos de Pesquisa Avançada (DARPA) do Departamento de Defesa desempenhou um papel crucial no financiamento de pesquisas de computador que levaram à ARPANET, a precursora da internet atual. O desenvolvimento inicial do Vale do Silício foi financiado em grande parte por agências de defesa e inteligência, e o Pentágono investiu pesadamente em empresas de tecnologia durante toda a Guerra Fria. (…) A divisão entre o Pentágono e o Vale do Silício é basicamente um mito – nunca existiu de verdade, pelo menos não de maneira significativa. As diferenças são superficiais e estilísticas. Durante quase um século, a economia e a cultura regionais foram moldadas pelo que se poderia chamar de complexo militar-industrial-universitário. Durante a Guerra Fria, o Pentágono ajudou a construir a indústria de computadores concedendo contratos militares em áreas como eletrônica de micro-ondas, produção de mísseis e satélites e pesquisa de semicondutores. O historiador Thomas Heinrich nos lembra que as representações populares de “inventores-empresários engenhosos e capitalistas de risco [que] forjaram uma economia dinâmica e de alta tecnologia livre da mão pesada do governo” desviam a atenção do papel crucial do “financiamento do Pentágono para pesquisa e desenvolvimento [que] ajudou lançar as bases tecnológicas para uma nova geração de startups” no século XXI.”

As “Big Techs” integram um sistema de segurança e projeção do poder global norte-americano, que foram, cada vez mais se tornando uma infraestrutura essencial da vida contemporânea. Proteger as demais infraestruturas essenciais (transporte público, aeroportos, eletricidade, bancos, agricultura, etc.) de ataques baseados em Inteligência Artificial se tornou crucial. O ex-CEO do Google, Eric Schmidt, passou a defender, há mais de uma década, que estas grandes empresas de tecnologia tivessem assento no Conselho de Segurança dos Estados Unidos.  O então presidente da Microsoft, Brad Smith, em 2017, como mencionado em “The Information Trade – How Big Tech conquers countries, challenges our rights, aind transforms our world”, da professora da Universidade Columbia em Nova York, Alexis Wichowski, pesquisadora das relações entre tecnologia, governo e poder, disse que o “ciberespaço é o novo campo de batalha” e que “o potencial de novas guerras migrou da terra para o mar, depois para o ar e finalmente para o ciberespaço” para concluir: “agora o nosso foco é em Defesa.”  

Contudo, é preciso ter em consideração que este novo tipo de organização nas quais se transformaram estas grandes empresas, e que dão às mesmas um enorme poder econômico (na forma de um praticamente oligopólio global, que não abrange a China, detentora de “suas próprias Big Techs”), vem se traduzindo também em poder político, integrando um vasto sistema de coleta de dados e influência mundial ( este opera também pelas operações de sabotagem cibernética) norte-americano. O Estado, conforme se viu nas revelações do ex-analista da CIA e ex- contratado da NSA, duas das principais agências dentre as 17 da “Comunidade de Inteligência” dos EUA, Edward Snowden, faz esta coleta massiva de informações com a invasão da privacidade de pessoas em todo o mundo, através, em grande medida, das “Big Techs”. E que, conforme trecho da obra da professora Wichowski, ganha novos contornos e reforça tanto o poder econômico das empresas como a capacidade estatal estadunidense de obter informações e exercer sua influência pelo mundo:    

“É difícil se pensar nessa nova indústria global como tradicional em qualquer sentido, como um punhado de empresas “tradicionais” que tem sofrido uma metamorfose. E da mesma forma que não continuamos chamando as borboletas de “lagartas” depois que elas se transformam, estas empresas específicas – Amazon, Apple, Facebook, Google, Microsoft e Tesla se transformaram em algo totalmente diferente da “indústria de tecnologia”. Elas não apenas fabricam produtos e oferecem serviços. Eles estão indo além de suas tecnologias principais para se afirmarem em nosso mundo físico. Eles estão inserindo serviços digitais em nossos ambientes vividos de maneiras invisíveis e, às vezes, desconhecidas para nós. E, o mais importante, exercem uma influência formidável sobre a forma como o nosso mundo funciona a nível individual, social e geopolítico. Essas empresas de tecnologia são diferentes de tudo que já encontramos antes”.

E o “novo front” é a Inteligência Artificial, na qual a China se apresenta como sério competidor e que, segundo vários especialistas, já é a principal batalha na guerra tecnológica pela supremacia geopolítica no futuro.

 

Fonte: Por Wagner Sousa, no Jornal GGN

 

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