A
fraqueza dos EUA e o desmonte da União Europeia
Ao se
completarem os cem primeiros dias do governo de Donald Trump, um importante
site de notícias brasileiro publicou na primeira página, ecoando boa parte da
imprensa ocidental, que “em 100 dias Donald Trump provocou o caos e abalou a
ordem mundial”. Isso é apenas parcialmente verdadeiro, uma vez que a
desmontagem da “ordem internacional” do pós-Guerra Fria começou muito antes que
Donald Trump fosse eleito pela primeira vez, em 2016.
O
desmonte começou em 1999, quando os EUA e seus aliados da OTAN desautorizaram
as Nações Unidas, e atacaram e destruíram a Iugoslávia sem sua aprovação. E
mais ainda, quando os EUA e a Grã-Bretanha atacaram o Afeganistão e o Iraque,
em 2001 e 2003, contrariando a posição do Conselho de Segurança da ONU,
principal órgão de “governança global” que eles mesmos haviam criado em 1945.
Esse
processo de descrédito e desestruturação se agravou com o fracasso da “guerra
global ao terrorismo”, declarada pelos EUA em 2001 e travada de forma quase
contínua durante 20 anos, destruindo países e matando milhares de habitantes
islâmicos do Oriente Médio, sem nenhum tipo de autorização da chamada
“comunidade internacional”.
Não há
dúvida de que o abalo definitivo da ordem vigente ocorreu quando as tropas
russas invadiram o território ucraniano, depois de EUA, OTAN e União Europeia
rejeitarem um ultimato russo que exigia a desmilitarização da Ucrânia e a
revisão do mapa geopolítico europeu, que havia sido imposto à Rússia pelas
“potências vitoriosas” e a OTAN a partir de 1991.
Hoje,
quando se olha com a perspectiva do tempo passado, percebe-se melhor que no dia
21 de fevereiro de 2021, se deu a ruptura definitiva dessa ordem
euro-americana. Naquele momento surgiu uma potência – dentro do sistema mundial
– que ousou desobedecer e desafiar, com suas próprias armas, as tropas
ucranianas e o poder militar e financeiro dos EUA, da OTAN e da União Europeia,
envolvidos numa verdadeira “guerra por procuração” contra a Rússia.
Os
russos alcançaram uma vitória militar exponenciada pelo fracasso do ataque
econômico massivo desfechado por essas mesmas potências do G7 e da Aliança do
Atlântico Norte. Duas vitórias que desmoralizaram definitivamente a ideia da
superioridade militar e econômica do “Ocidente” com relação ao “resto do
mundo”.
Quase
na mesma hora em que o massacre israelense, absolutamente cruel e insano, da
população palestina da Faixa de Gaza, feito com as armas e o financiamento dos
EUA, e com a cumplicidade silenciosa de seus aliados europeus, liquidou também
o que restava da ideia da “excepcionalidade moral” da “civilização
judaico-cristã” que serviu de fundamento ético da hegemonia cultural do
“Ocidente”.
Foi
nesse contexto, e após a grande crise financeira de 2008, que pôs em xeque a
utopia da globalização econômica, que surgiu politicamente a figura de Donald
Trump, o “grande jogador”. Sua vitória em 2016 e reeleição de 2024 são parte
dessa mesma crise e desintegração da “hegemonia ocidental”. Sua figura é
indissociável da sua crítica veemente do “globalismo liberal” e de sua proposta
de reorganização da política externa americana a partir da força e do interesse
nacional dos EUA, sem maiores pretensões morais ou catequéticas.
E não
há a menor dúvida de que a política e a estratégia nacional e internacional de
Donald Trump vêm contribuindo decisivamente para aumentar o caos e a desordem
dentro e fora da sociedade americana. Mais do que isto, a intenção declarada de
Donald Trump é destruir o que sobrou da “ordem liberalcosmopolita” ou
“globalista” do pós-91, e apostar num novo tipo sistema de correlação de forças
internacionais baseado apenas no poder e nas negociações mercantis, sem nenhum
tipo de utopia universalista.
Deixando
de lado o “histrionismo volátil” de Donald Trump, para poder entender melhor
sua aposta geopolítica no campo internacional, o que mais se destacou nos
primeiros meses do governo Trump foi exatamente sua crítica inclemente do
“globalismo liberal” e o ataque direto contra seus próprios vizinhos, aliados e
vassalos – como no caso do Canadá e do México, e do Panamá e da Groenlândia – e
de forma ainda mais surpreendente e disruptiva, contra seus aliados europeus da
União Europeia e da OTAN.
E
ainda, seu ataque contra as instituições e organismos multilaterais criados
depois da Segunda Guerra Mundial para administrar a hegemonia mundial dos
próprios EUA. Culminando com o “tarifaço universal” de Donald Trump contra
todos os países do mundo e, em particular, contra a China e a própria Europa,
visando reorientar o comércio internacional e redesenhar o mapa produtivo do
mundo.
De
todas as suas iniciativas, entretanto, a mais heterodoxa foi sem dúvida a
reaproximação e abertura de negociações com a Rússia, para acabar com a guerra
da Ucrânia e trazer a Rússia para dentro dos circuitos produtivos, mercantis e
financeiros do G7, na contramão da “russofobia” dos europeus. A tal ponto que
chegou a reconhecer e denunciar a responsabilidade de Joe Biden e da OTAN pela
própria Guerra da Ucrânia, antecipando a vitória inevitável da Rússia e
defendendo a necessidade da paz para que os russos não simplesmente não acabem
com a Ucrânia.
Deixou
no ar, inclusive, a possibilidade de que os EUA abandonem, no médio prazo, seu
compromisso de “defesa mútua” incondicional, com relação aos países da OTAN.
Existe,
no entanto, outro aspecto menos notado, mas igualmente importante desses
primeiros 100 dias de governo: a percepção cada vez mais nítida de que Donald
Trump não dispõe do poder que imaginou ter inicialmente, ao se propor a
reorganizar o mundo de forma unilateral.
Foi o
que aconteceu no ataque econômico contra a China, que encontrou uma resposta
inesperada, dura e agressiva. Os chineses não se intimidaram nem se submeteram,
e acabaram impondo aos norte-americanos um recuo e uma negociação em pé de
igualdade, e nos termos exigidos pelo governo chinês.
Algo
parecido com o que passou com a apressada tentativa americana de pacificação da
Ucrânia, que entrou em choque com a resistência do seu próprio vassalo, e muito
mais ainda, com a posição firme da Rússia em defesa de uma renegociação mais
ampla do mapa geopolítico da Europa, que lhe havia sido imposto em 1991, e das
próprias bases da nova ordem internacional que russos e chineses também
consideram que deva ser reconstruída.
E o
mesmo deve ser dito sobre a resistência demonstrada pelo Irã na defesa de seu
programa nuclear, a despeito das reiteradas ameaças apocalípticas de Donald
Trump. Para não falar do recuo do governo Donald Trump frente à corajosa
resposta do México, ou mesmo seu fracasso em impedir que os países do seu
“quintal latino-americano” comparecessem em peso ao 4º Fórum Ministerial
China-CELAC, em Pequim, neste mês de maio, uma das mais importantes inciativas
de cooperação multilateral do Sul Global.
Do
nosso ponto de vista, a fraqueza demonstrada pelos EUA de Donald Trump tem
contribuído também, e de forma decisiva, para o desaparecimento quase completo
de qualquer tipo de limites, regras, instituições e árbitros capazes de impedir
que a guerra se transforme no meio mais comum e natural de “solução” de todo e
qualquer conflito internacional.
É o que
está acontecendo no caso dos ataques de Israel contra o Líbano, a Síria, e o
Iêmen; e no caso dos ataques do Iêmen contra os navios “inimigos” que
atravessam o Mar Vermelho; e ainda dos ataques massivos dos EUA e da
Grã-Bretanha contra o Iêmen, da mesma forma que na disputa fronteiriça entre a
Índia e o Paquistão.
Assim
mesmo, quando se olha com mais cuidado para essa “desordem no mundo”,
percebe-se que ela se concentra muito mais nas zonas de “influência ocidental”,
ou das potências do Atlântico Norte que dominaram o mundo nos últimos 200 anos,
do que no “lado oriental” do sistema mundial. Sobretudo porque essa desordem
vem sendo produzida pela erosão do poder militar e da liderança econômica e
moral das “potências ocidentais”.
Por
isso mesmo, pode-se afirmar que o fim do caos e da desordem no mundo só
ocorrerá com a construção e consolidação de uma nova ordem internacional. Esse
é um processo que passará, inevitavelmente, pela redefinição das relações entre
esses “dois mundos”. Com certeza, haverá avanços e recuos, mas essa construção
tomará muitas décadas e envolverá ainda muitos conflitos e guerras, mas já não
será mais uma ordem tutelada pelos EUA, nem muito menos pela Europa. Isto
acabou.
O
processo de unificação da Europa começou com a assinatura do Tratado de Roma,
em 1957, e atingiu seu apogeu com a assinatura do Tratado de Maastricht, em
1992, um pouco depois da criação do Euro, em 1999, e da reunificação da
Alemanha, em 1990.
E este
foi, com certeza, um dos projetos utópicos mais importantes do Século XX: com a
sua proposta de pacificar e unificar um sistema de poderes territoriais e de
Estados nacionais que competiram e guerrearam entre si, de forma quase
contínua, durante 800 anos. Destacando-se o fato de que este projeto de
desmontagem desta verdadeira “máquina de guerra europeia” só foi possível
depois das duas Grandes Guerras do século XX, que mataram cerca de 100 milhões
de europeus.
Não é
de estranhar, portanto, que este processo de construção da União Europeia tenha
enfrentado grandes limitações e contradições, que bloquearam de forma quase
permanente o seu avanço e a plena realização do seu ideal unitário. Para
começar, a União Europeia foi sempre extremamente heterogênea e desigual, e
nunca logrou constituir um “poder central” com capacidade de impor sua vontade
e suas decisões estratégicas ao conjunto dos Estados-membros.
Menos
ainda, depois de 1991, quando os europeus foram obrigados a incorporar, de
forma apressada e desorganizada, os países do Leste Europeu, do antigo Pacto de
Varsóvia. Além disto, a União Europeia não tem, e nunca teve, um orçamento
fiscal unificado que lhe permita tomar decisões e implementar políticas
econômicas e estratégicas, de curto, médio, e longo prazo, que lograssem
diminuir a desigualdade interna dos seus Estados-membros. E além disto, depois
de 1991, tornou-se uma “organização caolha”, que passou a ter uma moeda única,
sem ter um orçamento fiscal unificado.
Por
fim, mesmo depois da assinatura do Tratado de Maastricht, a União Europeia
nunca teve uma política externa comum, soberana e ativa, e muito menos uma
política de segurança e defesa que fosse administrada pelos próprios europeus.
Na verdade, depois da Segunda Guerra Mundial, e mais ainda depois da assinatura
do Tratado do Atlântico Norte, em 1949, o continente europeu delegou sua
soberania militar para os EUA, e transferiu a responsabilidade de sua defesa
para a OTAN.
Ou
seja, do ponto de vista do Sistema de Westfália, os Estados nacionais europeus
se transformaram em “vassalos militares” do EUA, submetendo-se à sua estratégia
global de contenção da União Soviética e de combate ao comunismo ao redor do
mundo.
Não é
casual, portanto, que o Tratado de Maastericht só tenha sido possível depois do
fim da Guerra Fria, que permitiu a unificação da Alemanha. Mas, paradoxalmente,
o fim da URSS e a reunificação da Alemanha também podem ser considerados com o
momento inicial de um processo inverso, de desmontagem progressiva da União
Europeia.
Em
grande medida, devido ao desaparecimento do “inimigo comum” que ajudou a
mantê-la unificada até 1991, mas graças também ao “retorno” da Alemanha à
condição “maior país”, e maior potência demográfica e econômica da Europa.
Depois de ter sido o pivô das duas grandes guerras mundiais do século XX, na
condição de inimiga direta da URSS, da França e da Grã-Bretanha.
Em
2003, Alemanha se opôs abertamente à invasão do Iraque pelas tropas dos EUA e
da Grã-Bretanha, levada à frente sem a aprovação do Conselho de Segurança da
ONU. Logo em seguida, em 2005, a França, a Holanda, e a Irlanda rejeitaram um
projeto de Constituição da Europa, proposto e engavetado pelo Conselho da União
Europeia. Por sua vez, na crise financeira de 2008, a Alemanha voltou a
divergir da França, mas sobretudo da Grã Bretanha que acabou tomando uma
posição isolada dentro do grupo.
E uma
vez mais, no mesmo ano de 2008, os europeus se dividiram frente à proposta
norte-americana de incorporação da Geórgia e da Ucrânia à OTAN, apoiada pela
Grã-Bretanha, mas rejeitada pela Alemanha. E em 31 janeiro de 2020, finalmente,
a Grã Bretanha decidiu abandonar a União Europeia, abrindo um precedente que
vem ecoando até hoje em vários outros países da comunidade.
Mas não
dúvida que esta divisão interna da União Europeia adquiriu uma dimensão
completamente diferente depois que os EUA, a OTAN e vários governos europeus se
envolveram e apoiaram o Golpe de Estado que derrubou o presidente da Ucrânia,
Viktor Yanukovich. Começou ali a chamada “crise da Ucrânia” que se prolongou
até o início das hostilidades militares, em 22 de fevereiro de 2022, quando as
tropas russas invadiram o território ucraniano, e a guerra voltou para dentro
da Europa, depois de 77 anos.
Sobretudo
depois que os EUA e a Grã-Bretanha impediram as negociações de paz que estavam
em pleno curso na cidade de Istambul, no mês de março daquele mesmo ano. A
partir daquele momento o conflito ucraniano se transformou numa guerra
europeia, entre os EUA/OTAN e a Rússia, que envolveu também um “ataque
econômico” massivo da União Europeia contra a Rússia. Duas decisões que
acabaram atingindo a própria Europa e contribuindo decisivamente para o
desmonte atual da União Europeia.
Em
primeiro lugar, porque o ataque econômico fracassou com relação aos seus
objetivos fundamentais. A economia russa não parou de crescer, o governo russo
redirecionou seus fluxos comerciais e financeiros para a Ásia, e a tecnologia
de guerra dos russos deu saltos verdadeiramente impressionantes.
Enquanto
a economia europeia entrou em crise e recessão, liderada pela economia alemã
que segue estagnada há praticamente três anos, sofrendo um acelerado processo
de desindustrialização. Em segundo lugar, porque apesar do apoio financeiro dos
EUA e do apoio militar da OTAN, a União Europeia foi derrotada no campo
militar, independente do tempo que ainda possa durar a resistência dos
ucranianos.
Três
anos depois do início da guerra na Ucrânia, os governos das principais
“potências ocidentais” envolvidas no conflito foram derrubados pelos seus
próprios eleitores, na Itália, na Grã-Bretanha, na França, na Alemanha, e nos
Estados Unidos. Com tudo isto, o golpe mais importante que atingiu em cheio a
unidade da União Europeia foi sem dúvida a eleição de Donald Trump, com sua
política internacional de aproximação da Rússia, de pacificação da Ucrânia e de
distanciamento – quase hostil – dos europeus e da própria OTAN.
De um
só golpe, a Rússia está sendo trazida de volta à “comunidade econômica
ocidental” pelas mãos dos EUA, e a Europa está perdendo seu principal aliado e
protetor atômico. Neste momento da derrota europeia, várias propostas vêm sendo
colocadas sobre a mesa, apressadamente, sobretudo pela França e pela
Grã-Bretanha, mas nenhuma delas tem a menor possibilidade de reverter no curo
prazo, este quadro de derrota militar, crise econômica e insatisfação social.
Tramita
neste momento uma acusação de corrupção contra a presidente do Conselho
Europeu, a alemã Ursula von der Leyen, e a sua Representante para Negócios
Estrangeiros, a jovem estoniana Kaja Kallas, é pouco representativa e parece
inteiramente despreparada para o exercício do cargo. Por outro lado, os
social-democratas perderam sua identidade, e hoje são partidos belicistas e
ferrenhos defensores do “globalismo neoliberal” atacado por Donald Trump.
Enquanto
os partidos conservadores e liberais querem apostar na remilitarização da
economia europeia, mesmo sem contar com a unidade e os recursos necessários. E
mesmo assim precisariam pelo menos de uma década ou mais para se equiparar à
atual tecnologia militar da Rússia. Seu período de vassalagem militar foi muito
longo e tomará muito tempo para que os europeus possam retomar em suas próprias
mãos, a sua soberania. E não é improvável que neste tempo as “grandes
potências” europeias voltem a se dividir, competir e a brigar entre si, como
sempre fizeram nos últimos 800 anos.
Como já
estão fazendo com relação às acusações de corrupção que pairam sobre a atual
presidente da Comissão Europeia, a alemã Ursula von der Leyen. Foi isto pelo
menos o que já ocorreu no caso do “acordo comercial” recém-assinado pelos EUA e
pela Grã-Bretanha, que mais parece uma capitulação do que um acordo comercial.
De fasto, a Grã-Bretanha submeteu-se à pressão dos EUA e correu na frente dos
demais países europeus para conseguir assinar, separadamente, o que o
jornal Financial Times, descreveu como sendo “um pacto que está
mais próximo de um pagamento de proteção a um chefe de máfia do que de um
acordo de liberalização entre países soberanos”.[1] E o mais
provável é que os demais países europeus acabem fazendo o mesmo, aprofundando o
desmonte da União Europeia.
Fonte:
Por José Luís Fiori, em A Terra é Redonda

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