“A
Cracolândia não acabou”, diz membro de movimento social que atua no centro de
São Paulo
O
esvaziamento da rua dos Protestantes, no bairro de Santa Ifigênia, centro de
São Paulo, levantou especulações sobre o suposto sumiço da Cracolândia, como é
chamada a concentração de usuários de drogas que formam um grupo social
itinerante na capital paulista. Em dias de muito movimento, o chamado
“fluxo” dessa região chega a atrair 2 mil pessoas.
Marcel
Segalla, integrante do movimento social Craco Resiste, que acompanha a
Cracolândia desde 2016, e pesquisador da Faculdade de Medicina da Universidade
de São Paulo (USP), onde pesquisa sobre consumo de drogas desde 2012, começou a
perceber a ausência de algumas pessoas que costumavam frequentar o local desde
domingo, 11 de maio, Dia das Mães. Mas foi na terça-feira, dia 13, que a
ausência dos usuários ficou ainda mais evidente na rua, que se tornou o
principal ponto de concentração do fluxo há pelo menos um ano e
meio. Desde então, pequenos grupos de usuários de drogas foram avistados
em outros pontos da cidade, como apontou reportagem do G1.
Segundo
Segalla, a dispersão foi uma reação à violência da Guarda Civil
Metropolitana. Ele se opõe à afirmação do poder público municipal, que
atribui a diminuição de usuários às ações de combate ao tráfico na favela do
Moinho. Os moradores da favela, que enfrentaram a truculência da Polícia
Militar desde que o governo de Tarcísio de Freitas (Republicanos) começou a
demolir casas para construir um parque, conseguiram agora um novo acordo com os governos
Federal e Estadual — o valor do auxílio para aluguel irá para R$ 1,2 mil e o
governo garantiu que todos terão casas.
No dia
14 de maio, o prefeito Ricardo Nunes (MDB) chegou a chamar a
favela do Moinho de “QG do tráfico de drogas” e o seu secretário de Segurança
Urbana da capital paulistana, Orlando Morando, comemorou a desmobilização de
usuários na rua dos Protestantes como uma vitória na luta contra o tráfico,
incluindo a prisão do traficante conhecido como “Léo do Moinho”, no ano passado.
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Por que isso importa?
- Principal ponto
de concentração da Cracolândia, no centro de São Paulo, está esvaziado
desde o domingo (11).
- Dispersão dos
usuários de drogas é reação à violência da Guarda Civil Municipal e só
agrava o problema, diz integrante de movimento social que atua no chamado
“fluxo” que chega a atrair 2 mil pessoas.
Mas a
Cracolândia não acabou, diz Segalla. “As pessoas continuam usando crack em
todos os locais onde existem essas novas concentrações, as pessoas não saíram
do fluxo porque elas quiseram, elas têm sido ameaçadas de morte pela GCM.” Ele
chama de “papo furado” a narrativa de que a prisão de um traficante tenha sido
suficiente para acabar com as cenas de uso de drogas no centro e diz que a
dispersão – que, aliás já aconteceu em outros anos, como em 2022, quando as pessoas
foram expulsas da região da Luz com violência pela polícia – só agrava o
problema.
A
denúncia de Segalla vai ao encontro de uma pesquisa divulgada em
2024 que trouxe relatos de espancamentos que teriam sido realizados por
membros da Guarda Civil Metropolitana de São Paulo. “Eles quebraram minha
costela e furou meu pulmão. E eu tive que ficar sete dias internado, com drenagem,
para tirar o ar do pulmão, senão eu ia morrer”, contou um homem de 55 anos ao
grupo de pesquisadores. O trabalho foi realizado pela Fundação Getulio Vargas
(NEB/FGV), pelo Centro de Estudos da Metrópole da Universidade de São Paulo
(CEM/USP) e pelo Grupo de Estudos (in)disciplinares do corpo e do território
(Cóccix).
A Agência
Pública enviou questionamentos à assessoria da Prefeitura sobre as
denúncias de violência da CGM. O espaço está aberto para respostas.
“Como
se o tráfico de drogas na cena de uso aberta mais antiga de São Paulo, uma das
maiores do mundo, parasse porque prendeu uma pessoa. Como se um traficante
qualquer fosse o Pablo Escobar. São políticas de segurança dispendiosas e
que não resolvem. A dispersão permanente das pessoas só piora o problema”,
questiona Segalla.
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Leia a entrevista abaixo
·
Onde estão as pessoas que ficavam na Cracolândia? Por que
elas deixaram a rua dos Protestantes?
Fomos a
campo, buscando as pessoas que conhecemos, e foi bastante difícil encontrar
algumas delas. Algumas nós conseguimos localizar, porque elas conseguiram
se abrigar pelo centro. As pessoas saíram porque estavam apanhando demais,
sobretudo nesta última semana, da Guarda Civil Municipal. Apanham sobretudo no
rosto, quase como uma predileção, até parece uma orientação institucional. Isso
caracteriza uma humilhação muito grande, em alguns casos a pessoa não consegue
comer, beber água. Como se já não fosse difícil acessar água e comida na
situação delas.
Aparentemente,
tem um acordo estabelecido pela Prefeitura e Governo do Estado de esvaziar esse
espaço [da rua dos Protestantes], mas as pessoas conseguem se estabelecer em
outros pontos do centro onde não há presença dos policiais e
viaturas. Conseguimos localizar pontos pelo menos na rua Helvétia [Campos
Eliseos], no Minhocão [viaduto que corta a região central], na rua Andrada
[Santa Ifigênia].
·
Então as pessoas estão fugindo da GCM?
As
pessoas que ouvimos estão com muito medo porque estão sendo ameaçadas de morte
pela Polícia Militar e pela Guarda Civil Municipal. É importante lembrar que,
no ano passado, a GCM teve inúmeras denúncias de
milicianização, com agentes cobrando aos comerciantes para não direcionar o
fluxo da Cracolândia para a porta dos estabelecimentos.
A gente
tá observando uma forma de se organizar criminosa dentro da GCM. É esse órgão
que tem mobilizado o que a gente chama de “dispersão permanente” da
Cracolândia. Vem uma viatura, ameaça as pessoas, bate, diz que ali não é lugar
de se estar, como se as pessoas não tivessem o direito fundamental e
constitucional de ir e vir e de permanecer.
·
A Prefeitura diz que as pessoas estão sendo levadas para
abrigos. Mas há relatos de que estariam sendo abandonadas em outros lugares. O
que elas dizem?
Mas
pessoas contam diferente, dizem que foram abandonadas. O que sabemos é que, de
fato, não tem vagas suficientes nos abrigos. A população de rua de São
Paulo beira os 100 mil. Não tem vaga suficiente. Nem nas comunidades
terapêuticas, que não são serviços de saúde, mas em sua maior parte grupos
religiosos, que lucram muito com essas internações. São muito comuns os relatos de
espancamentos, mortes nas comunidades terapêuticas.
·
A Prefeitura atribuiu a diminuição do fluxo da
Cracolândia às ações na favela do Moinho, onde os moradores têm sofrido com a
violência da Polícia Militar em meio à demolição das suas casas, que foi
ordenada pelo Governo do Estado. Nunes chamou o Moinho de “QG do crime”, que
seria responsável pelo abastecimento de drogas da Cracolândia. Existe uma
relação entre as ações do Moinho e a dispersão da Cracolândia?
Isso é
papo furado, as pessoas continuam usando crack em todos os locais onde existem
essas concentrações, as pessoas não saíram do fluxo porque elas quiseram,
elas têm sido ameaçadas de morte pela GCM, que diz para eles não voltarem.
O
Moinho é uma comunidade muito antiga e organizada – tanto que está conseguindo
se defender desses ataques sem qualquer respaldo legal. A prefeitura não tem
mandado de despejo. Nos últimos dias as pessoas tiveram a casa derrubada,
a polícia entra, escolta, e eles vêm com as marretas e começam a derrubar as
casas.
Isso
tende a piorar o problema porque as pessoas sem casa podem engrossar o fluxo da
Cracolândia.
Não
existe isso de que lá seja um bunker de drogas, isso é um discurso
sensacionalista porque, se fosse assim, [as ações no Moinho] teriam acabado a
Cracolândia. Como se o tráfico de drogas na cena de uso aberta mais antiga
de SP, uma das maiores do mundo, parasse porque se prendeu uma pessoa. É
uma grande narrativa que o poder público usa para justificar a especulação
imobiliária. Como se um traficante qualquer fosse um Pablo Escobar.
A
Cracolândia sempre foi a “pá do trator”, ou seja, o recurso utilizado para
desvalorizar imóveis e depois negociar. É uma forma de destinar terreno e
imóveis para empresas do mercado imobiliário. A gente acompanha há anos imóveis
sendo desvalorizados, derrubados, para depois dar lugar a outros que não vão
ser ocupados por pessoas que moram no centro, não importa se você nasceu aqui,
foi criado aqui. A casa em que você mora vamos interditar, vamos absorver como
estoque de imóvel governamental, depois vamos tirar, transformar em PPP
[Parceria Público-Privada].
São
políticas de segurança dispendiosas e que não resolvem o problema, compra arma,
só piora o problema, a dispersão permanente.
[Agora]
Já se fala em mais de 70 pontos de concentração – as pessoas não evaporam, você
só leva o problema para outros lugares.
·
Essa dispersão dos usuários também atrapalha os
acompanhamentos de assistência social e de saúde?
As equipes
de assistência social faziam a triangulação dos usuários com as famílias. São
vínculos que demoram anos para construir, uma tentativa de restabelecer
contatos e talvez tirar aquelas pessoas do fluxo —, tudo isso foi perdido. Anos
de trabalho de profissionais comprometidos, jogados por água abaixo. É dinheiro
do contribuinte jogado no lixo.
Havia
pessoas fazendo acompanhamento de tuberculose, por exemplo. Quando é
interrompido, você pode criar resistência da bactéria [ao medicamento]. É
um desperdício de dinheiro público desenfreado.
·
Especulou-se que o esvaziamento do principal ponto da
Cracolândia teria sido determinado pelo PCC. Vocês ouviram isso de alguém?
Desde a
pandemia, o único grupo que deslocou usuários foi a GCM. Se o PCC está mandando
a GCM dispersar, então é problema do prefeito. Tem a ver mais com essa milícia
extorquindo lojistas e usando como argumento o deslocamento do fluxo. Os
lojistas também são vítimas nesse processo todo.
Fonte: Por
Mariama Correia, da Agencia Pública

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