Uma história pouco conhecida de Jorge Mario
Bergoglio, o papa Francisco, na Argentina
A morte
do Papa Francisco encerra um papado marcado por declarações firmes sobre a
geopolítica mundial, acolhimento de minorias nem sempre bem-vindas pela Igreja,
inclusão da mudança climática na agenda do Vaticano, denúncia da “globalização
da indiferença” frente à crise migratória, simplicidade, aproximação com os
jovens e frequentes condenações à guerra. Também traz à tona questões centrais:
a participação política e social de Jorge Mario Bergoglio na Argentina,
incluindo acusações de cumplicidade com a última ditadura militar, e
contradições entre posturas anteriores e sua atuação como Papa, em temas como
casamento igualitário, comunhão de divorciados e descentralização do poder
eclesiástico.
Em
Buenos Aires, Bergoglio esteve próximo a movimentos sociais e de direitos
humanos, manteve a Igreja junto às periferias, realizou projetos sociais e teve
atuação política oscilante: ora próximo ao peronismo, ora contra o maior
partido argentino. Durante os governos de Néstor e Cristina Kirchner
(2003-2015), suas críticas à pobreza, autoritarismo e corrupção eram vistas
pela Casa Rosada como ataques. O casal presidencial catalogou o cardeal
arcebispo como “chefe da oposição” e tentou isolá-lo.
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Por que isso importa?
- Polarização com
o kirchnerismo, suposta conivência com a ditadura militar, ação social em
favelas e mudança de posturas do arcebispo Bergoglio para o Papa
Francisco. Morte reacende debate sobre a atuação política e social do Papa
Para
entender esse papel ativo, é necessário retroceder no tempo: compreender sua
origem, o peso da Igreja Católica na sociedade argentina do século 20, a
influência da Teologia da Libertação [abordagem teológica cristã que surgiu na
década de 1960 na América Latina, com foco na defesa dos pobres e oprimidos] e
a relação do clero com os militares. No resto da América Latina, o catolicismo
também expressava preocupação com a pobreza, com figuras como do bispo
católico, arcebispo emérito de Olinda e Recife, Dom Helder Câmara.
“Bergoglio
é filho típico da Igreja argentina, filho de imigrantes italianos de classe
média baixa”, explicou à Agência Pública Veronica Jimenez Beliveau,
doutora em Sociologia e Ciências Políticas. “A Igreja no país não era nobre
como a italiana; ser sacerdote era uma forma de ascensão social, embora sua
vocação fosse genuína.” Segundo ela, o catolicismo argentino era integral,
abrangendo toda a vida social, o que impediu o surgimento de partidos
confessionais, cuja ideologia principal é baseada em uma religião. A partir da
década de 1930, o clero aproximou-se dos militares, relação que se intensificou
nas ditaduras.
O
catolicismo argentino também teve papel crucial em movimentos populares. “A
preocupação social sempre esteve presente na Igreja, não nasceu com Francisco,
e gerou tensões com o peronismo”, ressalta Beliveau.
O
ex-presidente Juan Domingo Perón citava encíclicas em discursos. “Seu partido
combinava populismo, conservadorismo e valores católicos, mas a democratização
posterior tentou conter a Igreja militarizada. Essa influência só declinou nos
anos 1980 e 1990, com a pluralização dos espaços religiosos”, acrescenta.
Bergoglio
representa um catolicismo mais cultural do que ritualístico, em que
pertencimento supera a rigidez dogmática. Sua formação jesuíta o moldou a um
Papa franciscano de princípios, refletidos até em seu funeral.
Outro
traço foi a abertura inter-religiosa. Amigo de um líder judeu, com quem se
conectou durante protestos por melhores condições aos idosos, Bergoglio manteve
correspondência e amizade em segredo. O neto, Luis Liberman, recorda: “Ele nos
ensinava a escutar como caminho para o consenso. Perdemos um líder global que
nos abraçava na esperança.”
Pablo
Semán, antropólogo e sociólogo da Universidade Nacional de San Martín (UNSAM),
analisa que o papado de Francisco prosseguiu a tradição de aproximação popular
já demonstrada por João Paulo II, mas inovou ao captar de forma profunda o
cotidiano das periferias. Em Buenos Aires, ele atuava em favelas, contava
com ajudantes trans e celebrava missas em áreas marginalizadas — prática comum,
mas que ele pessoalmente reforçava mesmo em posições de chefia.
Segundo
Semán, sua capacidade pessoal de interpretar a realidade popular e imprimir
modernidade à Igreja é uma marca da liderança de Francisco, que poucos têm. Sua
entrada tardia no sacerdócio teria contribuído para essa visão.
A
trajetória de Bergoglio a Francisco foi marcada por continuidades — defesa dos
pobres, crítica à corrupção e simplicidade — e contradições. Ampliou a agenda
papal, com destaque para a encíclica Laudato si’ (2015), que
denuncia a devastação ambiental e seus efeitos sociais. Defendeu migrantes e
refugiados, como simbolizou na visita a Lampedusa, em 2013.
Nas
contradições, destaca-se sua postura sobre o casamento entre pessoas do mesmo
sexo. Em 2010, durante o debate argentino, Bergoglio foi um dos maiores
opositores da lei de casamento igualitário, que considerava uma tentativa de
“destruir o plano de Deus”. Propunha direitos civis para casais homoafetivos,
mas não o matrimônio. A ex-presidente Cristina Kirchner comparou a postura da
Igreja à Inquisição. Já como Papa, afirmou: “Quem sou eu para julgar?”,
defendendo o acolhimento de homossexuais e o direito à união civil, sem alterar
a doutrina oficial, que rejeita as relações entre pessoas do mesmo sexo como
plano divino.
Sobre
divorciados recasados, com a exortação apostólica Amoris Laetitia (2016),
permitiu que sacerdotes discernissem caso a caso sobre a concessão da comunhão,
defendendo o acompanhamento pastoral, sem alterar a doutrina.
As
reformas de Francisco foram vistas como progressistas demais pelos
conservadores e tímidas pelos progressistas. Enquanto Bergoglio era mais
confrontativo na política e conservador em costumes, Francisco apostou no
diálogo e na construção de pontes, projetando uma Igreja mais aberta e
inclusiva.
Após
sua eleição, recebeu Cristina Kirchner diversas vezes no Vaticano. Até o
presidente Javier Milei, que o chamara de “representante do demônio”, buscou
reconciliação. Especialistas apontam que sua decisão de não retornar à
Argentina se deve à vontade de evitar polarizações e reabrir feridas ligadas à
ditadura.
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Ditadura Argentina
O
debate sobre a suposta conivência de Bergoglio com o regime militar (1976
– 1983) surgiu em 1999, impulsionado pelo jornalista Horacio Verbitsky,
depois reunido no livro O Silêncio. Segundo Verbitsky, Bergoglio
teria deixado desprotegidos dois missionários jesuítas, Orlando Yorio e Franz
Jalics, sequestrados em 1976 e libertados seis meses depois.
Em
2005, o advogado de direitos humanos Marcelo Parrilli apresentou uma denúncia
contra o então arcebispo, que foi arquivada por falta de provas. A
acusação dizia que Bergoglio teria denunciado os missionários por desobedecerem
ordens de se retirar de áreas populares. Investigações posteriores, e o próprio
prêmio Nobel Adolfo Pérez Esquivel, indicaram que Bergoglio teria agido nos
bastidores para libertá-los.
Em
2010, no caso da ESMA, o maior centro clandestino de detenção, tortura e
extermínio da ditadura militar argentina, Bergoglio testemunhou e confirmou ter
se reunido com os ditadores Jorge Videla (1976-1981) e Emilio Massera
(1976-1981) para interceder pelos sacerdotes. Quando seu nome começou a ser
cogitado para Papa, Cristina Kirchner o acusou em 2010, durante a investigação
de violação de direitos humanos na ESMA, de cumplicidade. Bergoglio sustentou
que trabalhar com pobres era motivo de perseguição na época.
Após a
libertação, o ditador Massera foi homenageado pela Universidade do Salvador, da
qual Bergoglio era autoridade, fato que levanta suspeitas, mas também
contextualiza as negociações políticas da época. Jalics, falecido em 2021,
posteriormente reconciliou-se com Bergoglio, dizendo não crer que ele o tivesse
delatado. Yorio, morto em 2000, manteve acusações de abandono.
“Em
resumo, Bergoglio mandou que eles se retirassem das áreas de risco, eles se
negaram e foram sequestrados. Depois, ele negociou a libertação”, explica
Semán. “Se poderia ter feito mais, não sabemos. É um debate que permanece em
aberto e merece respeito.”
Sergio
Rubin, biógrafo autorizado do Papa Francisco, declarou que toda a Igreja
Católica falhou ao não enfrentar a ditadura argentina, sendo injusto apontar
apenas Bergoglio. Rubin relata que Bergoglio tentou proteger argentinos
perseguidos, escondendo-os em propriedades da Igreja e compartilhando
documentos pessoais para ajudá-los a fugir.
Em
2012, um ano antes de se tornar Papa Francisco, bispos argentinos sob a
liderança de Bergoglio pediram desculpas por não protegerem os fieis no período
de exceção, mas culparam igualmente militares e seus “inimigos” pelos abusos.
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Conclave para eleição do sucessor do papa Francisco
começará em 7 de maio
O conclave para
a eleição do sucessor do papa Francisco começará em 7 de maio,
decidiram nesta segunda-feira, 28, os cardeais da Igreja Católica, em meio à
expectativa provocada pela escolha do novo líder espiritual de 1,4 bilhão de fiéis.
O
porta-voz do Vaticano informou a data, ao mesmo tempo que o Museu do Vaticano
anunciou o fechamento da Capela Sistina, a majestosa sala adornada com os
célebres afrescos de Michelangelo, situada no Palácio Apostólico.
Os
cardeais participarão de uma missa solene na Basílica de São Pedro no Vaticano
na quarta-feira da próxima semana, após a qual aqueles com direito a voto – os
que têm menos de 80 anos – se reunirão a portas fechadas para votar em um
processo secreto que pode durar vários dias.
O
primeiro pontífice latino-americano foi enterrado no sábado, após uma cerimônia
solene de despedida na presença de líderes internacionais e de 400.000 pessoas.
Os
cardeais foram convocados a Roma para escolher o novo papa. Do total de 135 com
direito a voto – porque têm menos de 80 anos -, 80% foram designados por
Francisco. Eles vêm de todas as regiões do mundo e muitos não se conhecem.
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“Personalidade aberta”
Patricia
Spotti espera que o novo pontífice “seja como o papa que faleceu”. “Deve ter
uma personalidade aberta para todos”, disse à AFP esta mulher de 68 anos que
viajou de Milão a Roma para o Ano do Jubileu, celebrado em 2025.
Muitos
fiéis temem que o novo papa represente um passo atrás em relação ao legado do
jesuíta argentino, marcado pela luta contra os abusos sexuais de menores de
idade na Igreja, por mais espaço para mulheres e leigos e pela defesa dos
pobres e migrantes.
“Nosso
desejo é encontrar alguém que se pareça com Francisco, não que seja o mesmo,
mas em continuidade”, declarou o cardeal argentino Ángel Sixto Rossi, de 66
anos.
“É
difícil dizer como imaginamos o perfil do novo papa”, destacou o cardeal
italiano Giuseppe Versaldi, de 83 anos, sem direito a voto. “Tem que haver
continuidade, mas também avançar em frente, não apenas repetir o passado”.
O
cardeal espanhol José Cobo disse ao jornal El País que não será “nada
previsível”.
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Como no filme?
O
conclave provoca fascínio há vários séculos. O recente filme homônimo do
diretor alemão Edward Berger, que venceu em março o Oscar de melhor roteiro
adaptado, popularizou ainda mais o evento.
“Mais
da metade de nós viveremos nosso primeiro conclave. É uma oportunidade para
mostrar ao mundo que filmes como ‘Conclave’ e outros semelhantes não são a
realidade”, disse o cardeal espanhol Cristóbal López Romero ao portal oficial
Vatican News.
O filme
retrata o processo de eleição de um novo papa, em reuniões a portas fechadas. O
relato fictício mostra as tensões entre diversas alas do Vaticano.
Mas as
divisões dentro da Igreja não são uma ficção. As reformas impulsionadas por
Francisco e seu estilo simples despertaram críticas entre os setores mais
conservadores, que apostam em uma mudança mais focada na doutrina.
“Hoje,
precisamos de união, não de divisão”, advertiu no domingo o cardeal do Mali
Jean Zerbo, de 81 anos, após uma oração dos cardeais diante do túmulo de
Francisco.
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As apostas
O
cardeal alemão Reinhard Marx espera um conclave de “poucos dias”.
Roberto
Regoli, professor da Universidade Pontifícia Gregoriana, acredita que não será
rápido. “Estamos em um período em que o catolicismo está enfrentando várias
polarizações e os cardeais terão que encontrar alguém que saiba forjar uma
unidade maior”, disse.
Com os
conflitos e as crises diplomáticas no mundo, o italiano Pietro Parolin aparece
como um dos favoritos. O cardeal atuou como secretário de Estado com Francisco,
depois de ocupar o posto de núncio na Venezuela.
A casa
de apostas britânica William Hill o coloca à frente do filipino Luis Antonio
Tagle, seguido do cardeal ganês Peter Turkson e do também italiano Matteo
Zuppi.
Fonte: Por Mariana Camaroti, da Agencia
Pública/IstoÉ

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