quarta-feira, 30 de abril de 2025

Fraude no INSS: associações autorizaram desconto para o mesmo aposentado em um único dia

Investigações da Polícia Federal (PF) e da Controladoria-Geral da União (CGU) identificaram que associações filiaram e autorizaram descontos nos pagamentos para os mesmos aposentados em um único dia. Dois casos são citados pelos investigadores como exemplo da irregularidade.

A ação faz parte de uma fraude no Instituto Nacional do Seguro Social (INSS), segundo PF e CGU. Os desvios ocorreram entre 2019 e 2024 e podem chegar a R$ 6,3 bilhões, segundo as estimativas. A TV Globo teve acesso aos documentos.

Os investigadores veem indícios de uma "indústria de produção de termos de descontos ilegítimos" para filiar os aposentados às entidades que faziam os descontos nas aposentadorias.

"A CGU identificou o envio, no mesmo dia, de autorizações de desconto para o mesmo beneficiário por entidades diferentes, indicando possível utilização indevida da informação cadastral dos beneficiários", indica a investigação.

Um dos casos citados envolve um aposentado do Piauí, que foi cadastrado no mesmo dia na Associação dos Aposentados e Pensionistas Nacional (AAPEN) e na Associação de Assistência Social a Pensionistas e Aposentados (Aaspa).

As duas entidades filiaram o idoso com fichas cadastrais que contém o mesmo erro de grafia em um dos sobrenomes do aposentado - duas letras "A" em vez de uma.

As inscrições dos aposentados como beneficiários dos descontos associativos foram feitas por funcionários do INSS que atuam na Diretoria de Benefícios e Relacionamento com o Cidadão.

Este é o setor da entidade responsável por firmar e supervisionar os Acordos de Cooperação Técnica (ACTs) entre as associações de aposentados e o INSS.

De acordo com as investigações da PF e da CGU, os suspeitos das fraudes em aposentadorias cobravam mensalidades irregulares, descontadas dos benefícios de aposentados e pensionistas, sem a autorização deles.

Ao todo, 11 entidades foram alvos de medidas judiciais. Os contratos de aposentados e pensionistas com essas entidades foram suspensos, segundo o ministro da CGU.

A CGU entrevistou uma amostra de 1.273 aposentados e pensionistas. A maioria — 97% dessa amostra — afirmou nunca ter autorizado descontos em seus benefícios.

O presidente do INSS, Alessandro Stefanutto, foi demitido, e cinco servidores públicos foram afastados de suas funções.

A operação ocorreu em 13 estados e no Distrito Federal, com 211 buscas e apreensões em 34 municípios. De acordo com Lewandowski, foram apreendidos pela PF nesta manhã carros de luxo, joias, obras de arte e dinheiro vivo.

•        Entidades filiaram sem autorização aposentados em cidades distantes até 957 km de suas casas

Entidades suspeitas de praticarem descontos irregulares em aposentadorias filiaram aposentados em associações de cidades que ficam a até 957 km de distância de onde elas moravam. A informação chamou a atenção da Polícia Federal (PF) sobre um golpe no Instituto Nacional do Seguro Social (INSS).

A investigação apontou que ocorreram descontos irregulares de até R$ 6,3 bilhões em aposentadorias e pensões e a Justiça Federal do Distrito Federal autorizou uma operação da Polícia Federal contra fraudes no INSS. A TV Globo teve acesso aos documentos.

Entre as suspeitas está a Confederação Nacional dos Agricultores Familiares (Conafer): de 15 autorizações apresentadas, 14 informavam que os aposentados e pensionistas contribuintes estavam vinculados a sindicados ou associações localizados em cidades diferentes da que residiam. As distâncias variavam de 34 km a 957 km.

A decisão diz que os investigadores acharam "pouco provável que os aposentados, todos acima de 60 anos, se deslocariam para outro estado para se associar a um sindicato ou associação distante, inclusive pela dificuldade de contar com a assistência dessas entidades quando precisassem".

<><> Viagens de 27 horas até as entidades

Um dos exemplos fornecidos é o de um aposentado de 78 anos, morador da cidade de Manacapuru (AM), que estaria vinculado à Associação de Desenvolvimento Rural Família Feliz, sediada na cidade de São Gabriel da Cachoeira (AM) – cidades 957 km distantes uma da outra.

Os investigadores apontam que uma viagem de ônibus entre elas, que envolveria, ainda, o uso de táxi e barco, tem uma duração prevista de, aproximadamente, 27h30min.

"É improvável que um aposentado de 78 anos fosse percorrer tamanha distância para se associar, assim como também é improvável que funcionários da associação fossem percorrer tantos quilômetros em busca de associados. E, ainda que a vinculação associativa exista, seria muito difícil a prestação de quaisquer serviços pela entidade a tão longa distância", diz o documento da Justiça Federal do DF.

Outra situação relatada no documento é a de duas aposentadas que moram no município de Raposa (MA) entrevistadas pela equipe da Controladoria-Geral da União (CGU). As duas negaram ter autorizado o desconto e o vínculo com qualquer associação.

Segundo as autorizações de desconto apresentadas pela Conafer, elas estariam associadas ao Sindicato dos Pescadores Profissionais, Artesanais, Aquicultores, Criadores de Peixe e Trabalhadores na Pesca do Município de São João do Caru, na cidade de mesmo nome no Maranhão, que fica a 386 km de Raposa (MA).

"É pouco provável que tais aposentadas fossem buscar vinculação e assistência sindical tão longe quando o município de Raposa (MA), cidade do litoral maranhense, conta com sindicato de pescadores", diz o documento da CGU.

A decisão aponta ainda exemplo de duas aposentadas de Alagoas, que moravam nas cidades de Porto Real do Colégio e Girau de Ponciano, respectivamente. Elas estariam vinculadas ao Sindicato Intermunicipal dos Agricultores Familiares e Empreendedores Familiares Rurais e Patronal do Município de Cacimbinhas e Região Sertaneja, sediado na cidade de Cacimbinhas, no Maranhão.

A distância entre a cidade de residência das duas aposentadas até a sede do sindicato é de 138 km e 67 km, nesta ordem.

A investigação entrevistou o presidente do Sindicado de São João do Caru, que disse que o sindicato é mantido pela contribuição de trabalhadores ativos e que não há cobrança de aposentados e pensionistas e que, apesar de estar vinculado à Conafer, não recebe contribuições ou valores pecuniários da confederação.

•        742 mil aposentados apontaram descontos indevidos no 1º semestre de 2024

Um levantamento feito pela Controladoria-Geral da União (CGU) apontou que 742.389 beneficiários registraram pedidos para cancelamento do desconto associativo no primeiro semestre de 2024.

As reclamações foram feitas em canais de atendimento do INSS.

Em 709 mil desses casos – 95,6% do total –, os aposentados informaram que não haviam autorizado previamente o desconto feito pelas associações direto da folha.

"O quantitativo de requerimentos de exclusão de descontos de mensalidades associativas efetuados [...] sinalizam que não é possível assumir como parâmetro balizador das decisões e ações sob a responsabilidade do INSS a boa-fé, em especial considerando os reflexos diretos no valor do benefício pago aos segurados do INSS em virtude da realização desses descontos", afirmou a CGU.

Ao todo, essas associações registraram 6,54 milhões de beneficiários com algum percentual de desconto em folha. Ainda não se sabe quantos desses foram vítimas de fraude.

Em julho de 2024, a CGU enviou para o Instituto Nacional de Seguridade Social (INSS), à época presidido por Alessandro Stefanutto, esses dados e outros documentos de uma auditoria feita pelo órgão.

A controladoria pediu para a suspensão do repasse de mensalidades de oito associações. Nenhuma providência foi tomada.

O levantamento feito pela Controladoria-Geral da União foi utilizado como suporte para a realização da operação em conjunto com a Polícia Federal e serviu de suporte para a decisão judicial de bloquear os descontos das entidades.

•        Entidades que movimentaram R$ 663 milhões tinham 'representantes de fachada', diz CGU

Relatório da Controladoria-Geral da União (CGU) divulgado nesta segunda-feira (28) aponta que três entidades associativas – que movimentaram R$ 663 milhões entre os anos de 2019 e 2025 – tinham "representantes de fachada".

As três entidades estão na lista das 11 investigadas pela CGU e pela Polícia Federal por suposta fraude com descontos sem autorização de mensalidades associativas. Os descontos eram feitos em pensões e aposentadorias pagas pelo INSS.

Segundo a CGU, as entidades e os valores movimentados no período investigado são:

•        Associação dos Aposentados e Pensionistas Nacional (AAPEN) - R$ 270.837.348,47

•        União Nacional de Auxílio Aos Servidores Públicos (Unaspub) - R$ 233.274.586,45

•        Associação dos Aposentados e Pensionistas do Brasil (AAPB) - R$ 159.242.344,69

Chamou a atenção dos investigadores que os "representantes de fachada" – pessoas com procurações que davam a elas amplos poderes para responder pelas entidades – eram homens e mulheres com idade avançada ou de baixa renda, inclusive beneficiários de programas sociais, como o Bolsa Família.

"As associações [suspeitas de irregularidades] possuem presidentes com idade avançada, o que poderia comprometer suas ações à frente da entidade, beneficiários de aposentadoria por incapacidade permanente e/ou sem experiência empregatícia formal, o que pode indicar eventual comprometimento da capacidade para gerenciamento das entidades", afirmou a CGU.

O documento do órgão com os indícios de irregularidades foi encaminhado, em julho de 2024, para o INSS para que fossem tomadas as providências cabíveis sobre o caso.

Na semana passada, a Polícia Federal e a CGU realizaram a Operação Sem Desconto, que apura um esquema que pode ter desviado até R$ 6,3 bilhões de aposentadorias e pensões de beneficiários do INSS com as chamadas "mensalidades associativas".

De acordo com as investigações, entidades que supostamente representavam aposentados e pensionistas do INSS descontavam, de forma indevida, uma parte do pagamento sem autorização dos beneficiários, usando, por exemplo, assinaturas falsas.

Muitas entidades sequer tinham estrutura para prestar serviços que afirmavam realizar.

<><> 'Confusão empresarial'

Também chamou a atenção dos investigadores o que a CGU classificou como "confusão empresarial" entre duas entidades investigadas: a mesma mulher, Cecília Rodrigues Mota, foi presidente da AAPEN (antiga ABSP) e da AAPB ao mesmo tempo entre 29 de março de 2017 e 14 de fevereiro de 2020.

As associações também já funcionaram no mesmo endereço, situado à Rua Pedro Borges nº 33, Palácio Progresso, Fortaleza (CE), e, de forma concomitante, entre 14 de junho de 2016 e 17 de setembro de 2020.

"Tal relacionamento, assim como o compartilhamento de endereço, sinalizam para a possibilidade de se tratar de uma organização única, dividida para possibilitar ganhos de mercado", diz o relatório da CGU.

Na operação da semana passada, Cecília Mota foi alvo de mandado de busca e apreensão. O g1 busca contato com as entidades e pessoas citadas nesta reportagem.

•        PF afirma que investigados em postos de chefia deram guarida ao esquema

A Polícia Federal afirmou à Justiça ter reunido elementos que indicam que a direção do Instituto Nacional do Seguro Social (INSS) tomou medidas que acabaram garantindo a manutenção do esquema de descontos indevidos de benefícios.

Relatório da PF obtido pela TV Globo afirmou ainda que o fato de investigados ocuparem cargos de chefia conferia "guarida à perpetuação dos descontos associativos ilícitos praticados".

A partir dos elementos reunidos pelos investigadores, a Justiça Federal determinou o afastamento do então presidente do INSS, Alessandro Stefanutto, que estava no cargo desde 2023, e outros cinco servidores da cúpula do instituto. Após a operação da PF, Stefanutto acabou demitido.

As investigações reuniram diversas declarações de Stefanutto ressaltando que não seria permitida a inclusão de novos descontos de mensalidades associativas na folha de pagamentos do INSS em 2024, assegurando que seria feita checagem dos dados e tomadas outras providências.

O relatório cita ainda que, em novembro de 2023, o INSS autorizou o desbloqueio em lote dos descontos associativos.

De acordo com a PF, o comando do INSS não agiu dentro do protocolo. E cita, como elementos que deveriam ter barrado essa autorização:

1.       "reiteradas manifestações da ocorrência de descontos indevidos";

2.       "multiplicidade de notícias veiculadas na imprensa acerca da ocorrência de descontos sem autorização dos beneficiários";

3.       acórdão do Tribunal de Contas da União "requerendo a suspensão desses descontos" até a adoção de biometria;

4.       solicitações efetuadas ao INSS para a exclusão de descontos associativos (conforme números posteriormente registrados nos relatórios produzidos pela Controladoria-Geral da União e pela Auditoria Geral do INSS);

5.       solicitação à unidade de auditoria interna do INSS para que apurasse as situações veiculadas na mídia.

"[A despeito de tudo isso] Não foram cumpridas, pela direção do INSS, as medidas preventivas preconizadas normativamente".

Os investigadores dizem que "em direta violação à previsão normativa e à realidade dos fatos, a direção do INSS atende ao pleito solicitado pelas entidades e concretiza medida alternativa, provisória, precária e transitória, sob a garantia do “compromisso” das entidades de que seus sistemas estariam em aderência aos requisitos técnicos e sem considerar o potencial e efetivo prejuízo aos beneficiários".

"A implementação da solução transitória evidenciou riscos significativos, como a perpetuação de falhas nos processos de averbação e a potencial continuidade de descontos indevidos, fatos que ensejaram a suspensão cautelar dos descontos pelo INSS em abril de 2024".

A PF listou ainda uma série de repasses para servidores do INSS em um amplo esquema de triangulação. As entidades associativas, que recebiam valores dos descontos, faziam transferências para empresas, que na sequência ficavam responsáveis por enviar para familiares dos funcionários ou escritórios de advocacia. Há repasses de cifras milionárias.

"Não bastasse isso, foram apontadas movimentações financeiras originadas nas entidades associativas e recebidas, direta ou indiretamente, por servidores do INSS, em especial pela direção da Autarquia, sem motivo razoável conhecido para tanto. Os crimes pelos quais os agentes públicos estão sendo investigados, portanto, são diretamente ligados ao exercício funcional, pois praticados no desempenho abusivo da função. São crimes que trazem efeito deletério à reputação, à imagem e à credibilidade do INSS".

A PF cita que há indícios suficientes da prática dos crimes de corrupção passiva, inserção de dados falsos em sistema de informações e violação de sigilo funcional, no âmbito do INSS, vinculados aos descontos indevidos de contribuição associativa em benefícios de aposentados ou pensionistas do RGPS.

Os investigadores classificaram o caso como grave e disseram que há "dano e risco de reiteração de dano ao Estado e aos beneficiários lesados do INSS".

"Portanto, é inaceitável que os investigados, descambando para a ilegalidade, valham-se das relevantes funções que o Estado lhes confiou para enriquecer ilicitamente, sobretudo quando verificado concretamente que o cargo público teria sido utilizado para viabilizar a empreitada criminosa".

•        Sindicato enviou R$ 26 milhões fracionados a 15 pessoas e empresas, aponta Coaf

A Confederação Nacional dos Trabalhadores da Agricultura (Contag) repassou a 15 pessoas e empresas R$ 26 milhões de maneira fracionada. Foi o que apontou um relatório do Conselho de Controle de Atividades Financeiras (Coaf) na investigação sobre as fraudes no INSS que, segundo investigações iniciais, representam R$ 6,3 bilhões entre 2019 e 2024.

O Coaf emitiu o relatório com base na investigação da Polícia Federal. "Dentre as atipicidades, destacou-se a movimentação incompatível com o faturamento cadastrado e o recebimento de depósitos em espécie, de maneira fracionada, efetuados em terminais de autoatendimento, onde não foi possível identificar depositantes", apontou a PF.

A Polícia Federal (PF) investiga a Contag por suspeita de descontos irregulares em aposentadorias e pensões. Entidades de classe, como associações e sindicatos, firmavam Acordos de Cooperação Técnica (ACTs) com o INSS e permitiam descontos de mensalidades associativas diretamente na folha de pagamento de aposentados e pensionistas do INSS, sem autorização dos beneficiários. Cerca de 97% dos beneficiários entrevistados não autorizaram o desconto, segundo a Controladoria-Geral da União.

O desconto na folha de pagamentos do INSS em favor de entidades é previsto em lei desde 1991. No entanto, de acordo com a legislação, essa mensalidade só pode ser cobrada com autorização prévia dos segurados. Caso concordem com o desconto, eles podem ter acesso a benefícios como auxílio funerário, assistência odontológica e psicológica, consultoria jurídica e academia.

<><> Posicionamento da Contag

A Contag afirmou que "reitera seu respeito às instituições democráticas e o compromisso com a legalidade em todas as suas ações".

A confederação declarou ainda que está à disposição da Justiça para colaborar com as investigações em curso, "defendendo a total transparência do processo investigativo e a apuração devida dos fatos".

 

Fonte: g1/Brasil 247

 

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