Gabriel Brito: Dos panelaços ao golpismo -
dez anos de hegemonia reacionária nas ruas
O dia
15 de março de 2025 marcou uma década de uma efeméride que passou despercebida
do debate público e dos grandes veículos de comunicação: há exatos 10 anos, o
país via a primeira das grandes manifestações da direita verde-amarela contra o
recém-eleito governo Dilma.
Com
fortes tinturas golpistas e reacionárias, os protestos foram amplamente
convocados pela mídia corporativa, então muito mais predominante na formação de
consciências e preferências partidárias. Facebook, Whatsapp, YouTube e outros
apenas começavam a se tornar plataformas de engajamento político.
Sem
dúvidas, a Rede Globo de Televisão foi a grande liderança midiática dos
protestos, que foram semeados em discursos tortuosos do então candidato tucano
Aécio Neves, derrotado nas eleições presidenciais de 2014. Inconformado, o
corrupto senador mineiro colocou a validade das urnas em xeque e inaugurou um
movimento golpista que até hoje causa imensos danos à sociedade.
Deflagrado
o terceiro turno, este histórico capítulo da luta de classes no Brasil começou
a se manifestar nos panelaços do dia 9 de março, quando o Jornal Nacional, no
auge de seu antipetismo, organizava um noticiário que beirava o terrorismo
ideológico, a afirmar uma “crise econômica sem precedentes”, suposto fruto de
esquemas de corrupção inéditos na história do país.
Para o
telejornal da emissora, que é e sempre será a primeira grande obra da ditadura
militar, o Brasil mais rico da história era um caso perdido que precisava ser
resetado. Doutrinada por jornais reacionários e colunistas pequeno-burgueses
que nunca conviveram em paz com os governos de Lula e Dilma, mesmo no auge de
sua popularidade e avanços socioeconômicos, as classes médias e altas sentiram
o cheiro de sangue em uma base governista burocratizada, cuja autoridade sobre
o movimento popular fora perdida nas manifestações de junho de 2013, até hoje
interpretadas pela esquerda hegemônica das formas mais irresponsáveis – e
suicidas – possíveis.
Ao
acusar protestos de uma juventude em grande parte progressista e até
anticapitalista de “armações do império” ou “jogo da direita”, a fratura entre
as distintas esquerdas foi exposta. A ilusão com a governabilidade e as
vitórias políticas e eleitorais que teriam sua cereja do bolo na Copa do Mundo
e nas Olimpíadas cegava a crítica aos limites do ciclo de governos
progressistas que animou a América Latina na virada de século. Implacável em
sua luta de classes, a direita logo farejou a vulnerabilidade e foi à guerra.
Milhões
de pessoas foram às ruas naquele 15 de março. Basta visitar acervos dos
jornais, TVs e sites para constatar a ativa militância da mídia oligárquica nos
protestos. As transmissões dos atos ficavam horas ao vivo, sempre em tom de
apoio e entusiasmo que faziam das manifestações um evento festivo como um jogo
de Copa do Mundo da seleção brasileira.
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Nunca foi sobre combate à corrupção
O perfil
dos manifestantes era semelhante às manifestações da “família com deus pela
liberdade” que precederam o golpe de 1964. As palavras de ordem, motes,
discursos de ódio à esquerda e ao comunismo eram praticamente idênticos. O
governo Dilma, como analisado em editorial do Correio, era natimorto. O
país burguês e branco rasgava o pacto social e queria a retomada da direção do
Estado sem a mediação de um partido de recorte popular, isso sim inédito na
história do Brasil.
As
manifestações se repetiram ao longo de um ano e meio, até as fatídicas votações
do impeachment de Dilma nas casas legislativas, sob a patética alegação de uma
infração fiscal no seu mandato anterior. A regra era clara: se uma chapa eleita
fosse deposta na primeira metade do mandato, novas eleições deveriam ser
convocadas. Mas golpes de Estado estabelecem seu próprio regramento jurídico.
Tudo se resumia a implantar à força o programa político do PSDB (na prática
realizado por Dilma em um severo ajuste fiscal que esfarelou sua base de apoio,
cujas manifestações de resistência não passaram perto de se equiparar às
jornadas reacionárias, em termos de massividade e também disposição).
O
impeachment passou. Michel Temer se tornou presidente e acelerou o pacote de
reformas econômicas, sociais, trabalhistas e ambientais que jamais tiveram aval
das urnas. O Estado era reconquistado pelas oligarquias nacionais e a crise
econômica – estrutural e global de um capitalismo que submeteu de vez sua
esfera produtiva à rentístico-financeira – seria resolvida por cima.
Na
síntese do sociólogo do trabalho Ruy Braga, acabara um pacto de classes que
permitia o famoso ganha-ganha entre capital e trabalho e, alcançado um teto de
crescimento econômico com integração social, voltamos à acumulação por espoliação – da natureza,
do trabalho e do próprio Estado. E na descrição macroeconômica de Plinio Arruda
Sampaio Jr., uma reversão neoloconial era posta em
marcha,
isto é, o modelo extrativista intensivo, desnacionalizante e
desindustrializante passou à ordem do dia.
Atordoada,
a esquerda foi incapaz de fazer um diagnóstico real das razões de sua derrota,
tanto política como ideológica. Cada vez mais distanciada das bandeiras
revolucionárias, prevalecem até agora as teses de gestão do Estado como única
possibilidade de obtenção de ganhos para as classes subalternas.
Sua
força social persiste. Uma grande greve geral foi realizada no governo Temer,
que ia à lona em aprovação popular. O Fora Temer mobilizou grande quantidade de
pessoas e combatividade. Era possível derrubar o ilegítimo e imoral presidente,
mas a racionalidade política prioritariamente eleitoreira falou mais alto. Aos
poucos, os “golpeados” tiravam o time de campo. A ideia era deixar o governo
impopular sangrar e voltar em 2018, em novas eleições.
No
entanto, esqueceram de combinar com o inimigo. Esqueceram da luta de classes.
As direitas não fariam aquele esforço todo para serem humilhadas em uma eleição
limpa logo a seguir. O combate fraudulento à corrupção continuava como escudo
para todos os abusos jurídicos e manipulações políticas. Temer já avisara que
não seria candidato a nada e era preciso ganhar o pleito de 2018 para garantir
o programa econômico dos grandes capitalistas do país – e seus sócios externos.
No meio
disso, o feitiço dominou o feiticeiro. O PSDB derreteu em seu próprio
reacionarismo neoliberal classista, incapaz de fazer contato com as massas
plebeias que se politizavam por outros meios, até então pouco percebidos.
Afinal, se os protestos continham todos os elementos do golpe de 64, isso
incluía os próprios ideólogos.
·
Nova-velha direita
A
produção midiática tentou disfarçar e fazer daqueles atos de rua entupidos de
ódio de classe manifestações cívicas de uma classe média que representaria a
totalidade do povo e estaria meramente indignada com a corrupção. Mas a mão
invisível dos militares estava em ação e as viúvas da ditadura eram destaque
evidente nos protestos. Seu discurso mais destemido e radical “contra o
sistema” angariou apoio nas massas populares que não bateram panela, mas batiam
cartão, e viviam na pele a precariedade da vida material. A direita limpinha e
cheirosa derretia e um cafajeste saía do fundão dos gabinetes para a condição
de grande líder popular, batizado nos quarteis, por onde fazia suas pregações
“revolucionárias” desde 2014.
A caixa
de Pandora estava aberta e todos os ressentimentos vieram em maré alta.
Discursos absurdos, violentos, desumanizantes foram pouco a pouco normalizados.
Sempre contra os mais vulneráveis social e politicamente. A rigor, nada que não
tivesse sido amplamente construído nos “dois minutos de ódio” de Arnaldo Jabor
no Jornal da Globo, última dose de estímulo antes do sono de milhões de
brasileiros, ou nas páginas da Veja onde brilharam reacionários “politicamente
incorretos”, colunas de Folha, Globos, comentários radiofônicos de CBNs, Jovem
Pans e similares nacionais.
No
entanto, as plataformas digitais acabavam com a antiga estrutura de relação
comunicacional “emissor-receptor”. Agora todos podiam ser mídia e dar sua
própria versão dos fatos. E aqueles que passaram a vida sendo “politizados”
pela Globo tomaram à frente do movimento. A classe média enraivecida saiu dos
apartamentos e queria a dianteira da ação política, pois parte dela percebeu
neste processo a chance de mobilidade social e econômica.
A alta
burguesia corroborava, mas tentava manter a discrição. A campanha de Bolsonaro
foi comandada pelo “clube do milhão”, no dizer da historiadora Virginia
Fontes,
enquanto a turma do bilhão ficava na coxia do espetáculo. A própria lógica de
monetização de canais de YouTube, sites obscuros e enganosos, podcasts e
produtoras de conteúdo são expressão dessa mobilidade socioeconômica
empreendida por pessoas de classe média. A Revista Veja, panfleto neofascista
preferido do “cidadão de bem” durante décadas, desapareceu. Outros meios tão ou
mais raivosos e desonestos tomaram à frente, inclusive por conta de sua maior
habilidade no uso das novas tecnologias. MBL, Vem Pra Rua, indivíduos que
passaram pelo mainstream e caíram no ostracismo como Mario Frias, ex-ministro
da Cultura; Carlas Zambellis, Senador Astronauta, Nikolas Ferreiras, Mike da
Swat, dentre tantos outros, saíram de suas vidas insossas para o estrelato político.
A mídia empresarial continua a bater nas mesmas teclas, uma vez que a despeito
de qualquer índice de audiência existem essencialmente em razão do projeto
capitalista de sociedade.
Uma
nova direita se formava e deixava um grande enigma diante de todos. Seus
vínculos são menos orgânicos e físicos, trata-se de um “Partido Digital”
(apesar de seu pé em parte das igrejas), mas sua capacidade de mobilização e
ação se mostraram mais eficazes do que as velhas fórmulas político-partidárias.
No
entanto, como mostram até aqui as experiências de extrema-direita na direção do
poder, seu fôlego também se mostra um pouco mais intermitente e sua
consistência política é limitada. Trump voltou, mas perdeu a reeleição, assim
como Bolsonaro perdeu. Milei derrete na Argentina, assim como Meloni na Itália
e outros similares duraram pouco. Por onde passa, essa direita esgarça o tecido
social, se afunda em corrupção e, sobretudo, amplia as condições da
insatisfação popular.
Essa
dinâmica reforça a convicção das esquerdas em apostar nas eleições, às quais
frequentemente ganha, de modo a retornar ao poder como salvaguarda da
democracia com considerável legitimidade e tolerância nas diferentes classes.
Mas as lógicas de governança obedientes ao capital e sua reproduçao
cristalizada no pós-2008 se mantêm, de maneira que tampouco é capaz de
contornar a precarização da vida e alcançar alguma paz social. Com o colapso
climático, a respeito do qual sua assimilação ainda é lenta e insuficiente, seu
programa político não pode ser tido como sustentável, a despeito das boas
intenções sociais e morais.
Enquanto
isso, a direita continua a apostar na tática de ativar os ódios e
ressentimentos como método de mobilização de massas. Nestes dez anos, os
“coxinhas” saíram da internet e se acostumaram a ocupar as ruas. Amedrontada, a
esquerda se mobiliza em momentos pontuais de resistência a algum projeto
político ou reforma econômica excessivamente agressivo ou em "defesa da
democracia" – aquela à qual o marxismo corretamente acrescentou a
denominação “burguesa”, dado que foi construída e efetivamente desfrutada pela
classe revolucionária do século 18.
·
O Fim da História já chegou ao fim
Hoje, o
neoliberalismo se converte em algo que cada vez mais atores chamam de
"tecnofeudalismo", isto é, uma superação de uma economia de produção
e consumo, com emprego e garantias para os trabalhadores, para uma espécie de
extrativismo de tudo e todos, isto é, dos recursos humanos, naturais e
estatais. Das jazidas minerais e florestas à gestão de escolas públicas e
semáforos, sem deixar de lado todas as grandes empresas públicas que prestam
serviços essenciais, tudo é assaltado pelos capitalistas que atingem os mais
brutais níveis de concentração de renda. E também de poder, como mostra de
forma inequívoca a subida ao governo das Big Techs nos EUA, que por sua vez
assistem à construção de uma ditadura em cada ato administrativo do governo
Trump.
Após a
frustração com a derrota dos protestos antineoliberais do início da década
passada em diversos países, a esquerda não resolve seus dilemas. As
tradicionais representações políticas não conseguem absorver os anseios e
formas de atuação da “geração neoliberal”. Esta, por sua vez, não consegue
afirmar uma crítica profunda do capitalismo e seu atual estágio de reprodução,
com respectiva organização de contingentes relevantes.
Nos
recantos da sociedade, a busca pela retomada do horizonte revolucionário
continua. A iniciativa Sementes, criada por Luiza Erundina e seus companheiros
de jornada, é uma tentativa de retomar a organização de base que remete aos
núcleos do PT em seus inícios. O Vida Além do Trabalho colocou nas ruas a pauta
do fim da escala 6x1, com algum sucesso. Busca-se o reencontro fora dos
caóticos canais de comunicação das plataformas digitais, que conectam e alienam
ao mesmo tempo.
No
governo, as esquerdas ainda se mostram capazes de mitigar o sofrimento social
gerado pela sociedade de mercado total. Mas não dão sinais de ir além de
pequenas concessões, ao passo que sua ação reduzida a eleições e gestão do
Estado mantém um medo atávico das lutas abertas nos territórios das cidades e
campos contra o capital e seus protagonistas essenciais.
O
mal-estar da nossa civilização continua a todo vapor. A questão climática ainda
consumará muitas tragédias que influenciarão as sociedades de forma
imprevisível. Na reflexão do sociólogo Renato Cinco, o “século 21 será revolucionário, para
bem ou para mal”.
Nenhuma
forma civilizatória ou sistema político e econômico dura para sempre. A
extrema-direita nada mais é do que, na analogia inevitável, uma malta de
nazifascistas do século 21. Até seu neologismo da moda – “anarco-capitalista” –
tem notória similaridade com o “nacional-socialismo” do Terceiro Reich, isto é,
rouba-se uma gramática revolucionária das esquerdas para colocá-la a serviço do
mais pervertido projeto histórico das classes proprietárias.
Enquanto
não “reaprendemos a repensar o socialismo”, a vertigem
continua. Genocídio e ecocídio são as palavras-chaves do atual estágio do
capital-imperialismo. A mera gestão do Estado – ainda que correta e honesta –
não é suficiente para comover as massas, que na soma geral de cada dia
continuam a ser subjugadas e levadas à exaustão.
Diante
de toda a espoliação, parece razoável afirmar que o capitalismo e sua
sociabilidade seguem a fornecer condições para ativar lutas por transformações
das estruturas das relações sociais e econômicas. Uma década depois da explosão
de protestos de rua organizados na jurisdição das Big Techs, gabinetes e redes
sociais não parecem instrumentos suficientes para reconectar as massas plebeias
e trabalhadoras com um horizonte emancipatório.
Fonte: Correio da Cidadania

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