Valério Arcary: A excepcionalidade chinesa
Braudel
sustenta, em Civilização material, Economia e Capitalismo, que uma
comparação entre a China e a Europa nos séculos XIII ou XIV, dificilmente teria
permitido prever uma superioridade do Ocidente sobre o Oriente. Talvez até o
contrário, já que os fluxos, invariavelmente desfavoráveis de metais preciosos
do Ocidente para o Oriente, durante séculos, seriam uma das evidências do seu
maior desenvolvimento, assim como a espantosa diferença de expansão
demográfica. A conquista dos oceanos e, em função deste domínio, o papel
hegemônico das potências europeias no mercado mundial teria decidido a seu
favor a crescente desigualdade e, finalmente, a posterior colonização do Oriente.
Por que a China teria abandonado as rotas comerciais que explorava em Malaca,
na Índia até Ormuz e o Golfo Pérsico, garantindo para os seus juncos um intenso
tráfico comercial? Por que teria renunciado às prometedoras perspectivas
comerciais com o Islã e a Índia? Segundo Braudel, o encerramento da China sobre
si mesma nos séculos seguintes se explica pela necessidade prioritária de
defesa das suas fronteiras ao norte. As ondas de invasão das estepes, um
flagelo milenar que oprimiu o Império do Meio ininterruptamente levou à
construção da maior obra de defesa da história pré-capitalista, a Grande
Muralha. A prioridade defensiva do Império e a preservação da unidade
territorial teriam inibido as tendências comerciais que se ampliavam com a
prosperidade das rotas comerciais com o Islã e com a Índia, e bloqueado uma
possibilidade evolutiva distinta. A aposta na segurança teria interiorizado o
Império e garantido a unidade política estatal, ao contrário da Europa
pulverizada em inúmeros Estados, teria sido um fator de bloqueio ao
desenvolvimento da expansão comercial e a disputa do controle dos oceanos.
Polêmica, mas muito sugestiva, esta hipótese nos permite analisar a
desigualdade do desenvolvimento entre Ocidente e Oriente nos últimos quinhentos
anos, até a Segunda Guerra Mundial e a vitória da revolução na China.
A
principal conclusão de Braudel, de natureza política, foi que a permanência da
unidade política estatal na China, destruída na Europa com o desmoronamento do
Império Romano, teria sido o obstáculo para uma dinâmica de expansão comercial
pelo Índico que teria permitido uma disputa de hegemonia pelo mercado mundial
em formação. A etapa política que estamos vivendo se caracteriza pela inversão
desta hegemonia histórica. A China ameaça a supremacia da Tríade liderada pelos
EUA. Já é a maior potência comercial. Os EUA ainda mantêm a supremacia
financeira e militar. Pequim abraça uma estratégia de concertação e aposta na
negociação porque prefere ganhar tempo. Não é a estratégia de Washington sob
Trump. Nunca aconteceu uma transição pacífica de liderança no sistema de
Estados. No século XVII Amsterdam e Londres mediram forças em três guerras. No século XVIII a
França e a Inglaterra mediram forças em quatro guerras, e a superioridade
britânica só se consolidou com a derrota de Napoleão em Waterloo. No século XX a
Alemanha desafiou a supremacia em duas guerras mundiais. Poderá ocorrer uma
passagem pacífica por sucessivas aproximações? Ninguém sabe.
As
esperanças que todas as correntes socialistas ou revolucionárias (nem todos os
socialistas eram revolucionários, e nem todos os revolucionários eram
socialistas) do século XIX depositaram no proletariado como sujeito social
contrastam com o ceticismo deste início do século XXI. Parece, no entanto,
pouco razoável afastar a hipótese de crises revolucionárias de grande
intensidade nos países mais urbanizados. Uma das razões sérias para esta
mudança de atitude remete ao tema do substitucionismo social, que
operou em uma escala nunca vista, no que poderíamos denominar a terceira onda
da revolução mundial no pós-guerra, com o deslocamento do eixo da luta de
classes para a Ásia, América Latina e África. Afinal, a vitória da revolução
chinesa, a maior revolução camponesa do século XX, uma revolução socialista em
que o proletariado urbano não ocupou, essencialmente, nenhum papel, prostrado
pela esmagadora derrota de 1927, mais do que um processo sui generis,
estabeleceu uma referência, durante um quarto de século, para a passagem da
fase democrático-nacional das revoluções anti-imperialistas à fase
anticapitalista. O substitucionismo social verificou-se em uma escala e
proporção espantosa, superando (e surpreendendo) tudo o que o marxismo clássico
poderia ter imaginado em termos de radicalização das massas camponesas. Lênin
se referiu inúmeras vezes às “duas almas” do camponês arruinado, uma esfomeada
de terra e propriedade, e a outra com nostalgia de igualdade, sonhadora de um
passado comunitário, em que a aldeia possuía e cultivava a terra em comum. A
história recente da América Latina – e não só –, tem nos oferecido, também, os
exemplos de novos “Münzers” e seus modernos “anabatistas”. Na célebre
correspondência de Marx com os narodniks nas décadas de
1870/80, organização revolucionária que buscava na revolução agrária a força
motriz da revolução russa, o tema do substitucionismo social já tinha sido
levantado, sem que Marx eliminasse a possibilidade a priori. Ainda
assim, o processo da revolução mundial no pós-guerra foi além de tudo que se
poderia prever. Na China surgiu uma República operária-camponesa, um Estado
dirigido por um partido-exército revolucionário que rompeu com o capitalismo.
Não é
possível compreender o contexto atual se não partirmos de uma referência
fundamental que está na raiz da primeira “excepcionalidade chinesa”: na China
ocorreu a maior revolução camponesa da história. Mas foi uma revolução
socialista “sem proletariado”. Deutscher faz interessante explicação do papel
da liderança de Mao Zedong, apresentado mais como exército camponês do que como
partido operário, indo à ruptura com o “bloco das quatro classes”, sob a
pressão do imperialismo americano:
“Conduzindo
a revolução além da fase burguesa, o maoísmo foi ativado não apenas pelos
compromissos ideológicos, mas por um interesse nacional vital. Ele
estava determinado a transformar a China em uma nação moderna e integrada. Toda
a experiência do Kuomitang estava lá para provar que isso não podia ser
conseguido na base de um capitalismo retardado e, em grande parte importado,
sobreposto à classe proprietária de terras e patriarcal. A propriedade nacional
da indústria, dos transportes e dos bancos e uma economia planificada eram as
pré-condições essenciais para qualquer desenvolvimento racional, mesmo
incompleto, dos recursos da China e para qualquer avanço social. Assegurar
essas pré-condições significava iniciar uma revolução socialista. Mao fez
exatamente isso. Isto não quer dizer que tenha transformado a China em uma
sociedade socialista, mas ele usou cada grama da energia da nação para erigir a
estrutura socioeconômica indispensável ao socialismo e para trazer à
existência, desenvolver e educar a classe operária, a qual, somente ela,
poderia fazer do socialismo uma realidade final. “
O
destino político costuma ser implacável diante dos erros teóricos. Aqueles na
esquerda mundial que subestimaram a capacidade da liderança chinesa de fazer e
defender a revolução erraram. Mas, na atual conjuntura, o perigo inverso, uma
exaltada defesa da China que conclui que seria um país em transição ao
socialismo é, também, equivocada. O que parece estar em curso é um lento
deslocamento da relação política de forças no sistema de Estados favorável ao
Oriente, uma espetacular façanha histórica. A China não está perseverando, nos
últimos quarenta anos, uma passagem ao socialismo, como entre 1949/78, mas ao
capitalismo. Esta é a segunda excepcionalidade chinesa: trata-se da economia
capitalista mais dinâmica do mundo. Essa é, aliás, a formulação oficial da
direção chinesa: a necessidade de uma NEP de longa duração, ou transição ao
capitalismo, para dentro de duas ou mais gerações, fazer um novo giro histórico
e reiniciar a passagem ao socialismo. Mas esta não é uma estratégia política.
Uma estratégia política é uma aposta em um projeto balizado pelo tempo de
sujeitos que estão vivos. Em cinquenta anos, a maioria de nós, e da população
chinesa, estaremos mortos. Acreditar em um discurso ideológico desta natureza
equivale a apostar na vida depois da morte. Ninguém pode prever, seriamente, o
que vai acontecer no mundo ou na China sequer nos próximos dez anos.
Um
modelo econômico que aprofunda a desigualdade social por uma etapa indefinida
não pode ser considerado socialista. A própria liderança do Estado chinês
teorizou a necessidade de métodos capitalistas para garantir o impulso do
crescimento econômico mais exuberante dos últimos trinta anos. Em perspectiva,
o processo de restauração capitalista teria se iniciado primeiro na China, onde
a transição se fez por cima e, só depois e inspirado no “pioneirismo” de Deng
Xiaoping, Gorbatchev teria feito a mesma escolha estratégica. As correntes
“campistas” se dedicaram incansavelmente, durante décadas, à defesa
incondicional das “realizações” da construção do socialismo na URSS, ainda que
as evidências socioeconômicas, entre outras, contrariassem, de forma cada vez mais
indisfarçável, que o regime burocrático de Brejnev podia ser qualquer coisa
(daí uma infindável polêmica sobre a sua natureza de classe e histórica), menos
um regime em transição ao socialismo. Se algo parece “granítico” nas lições da
derrota histórica na URSS é que uma casta burocrática, a nomenklatura,
se consolidou no poder por três gerações e desenvolveu interesses próprios.
Diante da crise se dividiu, e tencionou até o limite da guerra civil. Venceu a
fração restauracionista. Não é possível analisar a experiência chinesa do
século XXI sem considerar que a liderança de Deng Xiaoping estudou e tirou
lições do processo de Gorbatchev, e conseguiu até agora evitar os mesmos erros.
Esta é a terceira excepcionalidade chinesa: a restauração gerou um híbrido de,
talvez, capitalismo de Estado, mas a liderança do partido comunista permanece
no poder.
O
Estado chinês era uma república operária-camponesa com grotescas deformações
burocráticas que iniciou uma transição ao socialismo, mas chocou com obstáculos
objetivos colossais: o dramático atraso histórico herdado de uma colonização
imperialista por mais de cem anos. Quarenta anos depois do início de uma
restauração capitalista controlada, qual é hoje a natureza social deste Estado?
Que haja um híbrido de relações sociais capitalistas e pós-capitalistas não
autoriza a conclusão de que o Estado chinês já seja capitalista. Se não é a
burguesia que está no poder, não se pode concluir que o Estado seja
capitalista. O exercício de abstração exigiria concluir que o aparelho
burocrático do partido-exército se eleva sobre as classes sociais, e substitui
a burguesia ao serviço da burguesia. Uma hipótese esdrúxula. Símbolos não são
senão adereços ideológicos, mas nenhuma burguesia aceitaria ter como bandeira
nacional do seu Estado a bandeira vermelha, nem aceitaria nomear o seu partido
como partido comunista. Mas a ausência da burguesia interna no controle do
Estado tampouco legitima que permaneça sendo um Estado dos trabalhadores, se o
programa do governo favorece, há quarenta anos, a ilimitada acumulação de
capital privado, fortalece a burguesia, e aumenta a desigualdade social.
Quarenta anos é um tempo superior ao intervalo de uma geração. Estamos,
portanto, diante de um dilema teórico. A melhor hipótese, ensina o método, é a
mais simples. Se quem controla o Estado há quase meio século é uma casta
burocrática consolidada em torno de um projeto de restauração, então, talvez, a
melhor caracterização é que o Estado é burocrático.
Esta é
a quarta excepcionalidade chinesa: a natureza social do Estado mudou, mas o
regime político não. Em linguagem marxista, teria acontecido uma
contrarrevolução social sem uma revolução política democrática. A definição de
que o Estado ainda seria uma República dos trabalhadores parece insustentável
depois de quarenta anos de restauração capitalista. Se esta hipótese é
consistente, o desafio teórico é compreender quando ocorreu uma mudança no
Estado. Mais importante: por quê? Historicamente, tudo sugere ter sido a partir
da “substituição” do núcleo dirigente que foi formado sob direção de Mao Zedong
durante a revolução cultural, entre 1966/76, conhecido como o “bando dos
quatro”: Jiang Qing (esposa de
Mao), Zhang Chunqiao, Wang Hongwen e Yao Wenyuan associados ao general Lin Biao. A
luta de frações foi brutal e impiedosa. Um mês depois da morte de Mao foram
destituídos e presos, em um golpe de estado palaciano liderado por Hua Guofeng, Deng Xiaoping, uma das principais
lideranças históricas do partido, da Longa Marcha até a revolução, preso,
torturado e exilado durante a revolução cultural, foi reabilitado e assumiu o
poder em 1978, e permaneceu à frente do partido, exército e Estado até os anos
noventa.
A
questão é saber como foi possível mudar a natureza social do Estado sem mudar o
regime. Um Estado burocrático é um fenômeno histórico novo. Não ter acontecido
antes não autoriza concluir que não seja possível. Na sociedade contemporânea
não existem somente as classes sociais determinadas pelo lugar que ocupam no
processo produtivo, grosso modo, capitalistas, trabalhadores e classe média.
Existem outros fenômenos como o lumpen, que desgarra do proletariado, ou o
crime organizado, uma fração pequeno-burguesa e até burguesa, quando agiganta
na ilegalidade, ou grupos sociais especiais mais homogêneos, como intelectuais
profissionais, religiosos e policiais. Mas o fenômeno mais importante é a alta
burocracia estatal. A experiência histórica pós-revolucionária na União
Soviética conheceu, de forma pioneira, a formação de uma casta de especialistas
da gestão do partido, exército, polícia e Estado. Seria obtuso desconhecer que
a classe trabalhadora gera, também, uma burocracia própria em suas
organizações, até antes de conquistar o poder. Uma casta privilegiada não é o
mesmo que uma classe de proprietários. Usufrui de regalias, vantagens,
benefícios e imunidades, mas não detém o direito de herança, a garantia de
transmissão blindada da riqueza. A tragédia histórica da restauração
capitalista na ex-URSS e no Leste europeu confirmou que o projeto
político-social de toda burocracia é o aburguesamento. Individualmente, haverá
excepções, por suposto. Mas um juízo marxista não pode repousar em excepções.
As relações promíscuas entre famílias da cúpula do partido comunista e a
burguesia interna são públicas. Alguns exemplos foram tão escandalosos que
foram punidos pelo próprio regime.
Estado
e regime político não são o mesmo. O mesmo Estado pode ter diferentes regimes
políticos. Um regime político é a forma institucional que assume a gestão do
Estado, a arquitetura do exercício do poder. Na China o regime é uma ditadura
de um partido-exército que mantém controle monolítico do poder. Mas não se deve
concluir que não haja luta política. Mesmo em regimes de partidos únicos há
frações, correntes de opinião e, também, camarilhas, mais ou menos formais ou
dissimuladas, e regras para a disputa de posições, projetos e cargos, que
repousam no maior ou menor apoio interno, expressando distintas pressões
sociais. O regime é uma ditadura, mas não é totalitário. Uma peculiaridade
chinesa tem sido o culto à personalidade dos líderes, e a máxima concentração
de poder pessoal. A imensa autoridade de Deng Xiaoping, último líder da geração
pré-revolucionária, favoreceu alguma descentralização, depois dos excessos
“asiáticos” do período Mao Zedong. Mas Xi Jinping reverteu desde 2012 essa
tendência. Não foi somente por razões defensivas externas que o regime político
permaneceu tão fechado e autoritário. Seria leviano desconhecer o significado
do massacre da Praça da Paz Celestial em 1989. Na Tiananmen aconteceu a
repressão da juventude que ainda cantava a Internacional: foi um crime e trauma
histórico. Não foi um “momento Kronstadt”, por analogia com a revolução russa.
A escala foi outra. Mas, em perspectiva histórica, a repressão do soviet sobre
influência anarquista foi um erro.
Não é
possível esquecer que o campismo foi uma deformação ideológica com sequelas
irreversíveis. A destruição do internacionalismo com o divórcio das lutas no
Ocidente e no Leste, e a associação do socialismo à tirania burocrática na URSS
estão entre as derrotas mais profundas do marxismo, como movimento político e
do movimento dos trabalhadores, em geral. A estratégia campista tem
responsabilidades inescapáveis. A existência de países onde a propriedade
privada dos grandes meios de produção foi expropriada, ainda que os seus
regimes políticos tivessem aberrantes deformações burocráticas, um híbrido
histórico, necessariamente transitório, colocou a esquerda mundial em uma
situação paradoxal e desconcertante. Deveria defender a natureza social dos
Estados diante da pressão imperialista pela restauração capitalista, e, ao
mesmo tempo, apoiar as mobilizações dos trabalhadores e da juventude pelas
liberdades democráticas, contra os regimes políticos de opressão. Ou seja, uma
defesa condicionada ao signo de classe do conflito. Algo muito mais complexo do
que uma defesa incondicional ou uma oposição incondicional. A oscilação do
pêndulo foi sempre muito complexa, originando desequilíbrios: estalinofilia ou
estalinofobia. O mesmo problema político se coloca hoje, embora em outra
dimensão, face ao Irã ou Coreia do Norte. A defesa de países independentes
perante a agressão imperialista não desobriga a crítica e delimitação diante de
regimes ditatoriais. Em suma, o campismo simplifica o que não é redutível a
fórmulas unilaterais. Se o melhor da nova esquerda mundial abraçar um novo
campismo, agora de alinhamento incondicional com o Estado chinês, as
consequências serão terríveis. Os dilemas do internacionalismo não são simples.
Não há como se possa fugir a esta encruzilhada teórica. Da resposta que se
ofereça a esta questão depende boa parte das divisões e unificações da esquerda
nas próximas décadas. Mas não se pode pedir à juventude que se aproxima da
causa socialista que defenda uma bandeira manchada.
Fonte: Opera Mundi

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