A outra ‘Guerra de Canudos’: o Massacre de
Pau de Colher
Em 21 de janeiro de 1938, o Exército
brasileiro e as forças policiais dos estados de Pernambuco, Piauí e Bahia
dizimavam o povoado de Pau de Colher, uma comunidade religiosa do sertão
baiano, formada por sertanejos pobres, pregadores e seguidores de Padre Cícero.
O ataque foi motivado por boatos de que os
moradores da comunidade eram fanáticos violentos que pretendiam implantar o
comunismo — bem como pela percepção de que a estrutura organizacional do
povoado era uma ameaça à ordem estabelecida.
• Canudos
e o “Messianismo Rústico”
Entre o fim do século 19 e as primeiras
décadas do século 20, diferentes comunidades sociorreligiosas emergiram nos
grotões do Brasil. A concentração fundiária privava a população rural do acesso
à terra, relegando-a à miséria e à exploração nas mãos dos coronéis. No Sertão
do Nordeste, o problema era agravado pelas secas e pela escassez da água,
resultando em graves crises famélicas.
Buscando uma alternativa à ordem social
vigente, os camponeses se viam atraídos por experiências comunitárias
alternativas, calcadas em princípios mais igualitários.
Essas experiências eram frequentemente
marcadas por um forte componente religioso, com elementos do “messianismo
rústico” e influências do catolicismo popular. Os movimentos costumavam ser
organizados e liderados por beatos, conselheiros e pregadores místicos,
respeitados como profetas ou enviados divinos, que levavam esperança e a
promessa de redenção aos sertanejos.
O maior e mais conhecido desses movimentos
foi Canudos. Liderado por Antônio Conselheiro, Canudos se tornou um refúgio
para milhares de pessoas que fugiam da miséria, da fome e da opressão. A
comunidade desenvolveu uma organização própria, baseada na cooperação e na
divisão comunal dos recursos.
O movimento logo começou a ser visto como uma
ameaça pelos coronéis da região, que instaram o governo republicano a tomar
medidas. Quatro expedições militares foram organizadas pelo Exército Brasileiro
para reprimir Canudos. A última delas, ocorrida em 1897, resultou na destruição
completa da cidade e no massacre de seus moradores.
• O
Caldeirão de Santa Cruz do Deserto
Na década de 1920, outra importante
comunidade religiosa foi estabelecida no interior do Ceará — o Caldeirão de
Santa Cruz do Deserto. Erguida em terras cedidas pelo Padre Cícero e dirigida
pelo beato José Lourenço, a comunidade do Caldeirão chegou a abrigar milhares
de pessoas. A exemplo de Canudos, o Caldeirão também funcionava sob um regime
de cooperação e divisão igualitária dos recursos.
A notícia de que existia um “paraíso dos
pobres”, sob a proteção de Padre Cícero, onde havia água, comida e moradia para
todos, sem a exploração e o desmando dos patrões, levou muitos trabalhadores a
abandonarem suas ocupações nas fazendas da região e rumarem para o Caldeirão —
o que causou enorme incômodo nos latifundiários.
O Caldeirão se tornou um centro místico, ao
qual se ligaram vários pregadores. Entre eles estava o conselheiro Severino
Tavares, que recorria o Sertão fazendo preleções e arrebanhando discípulos.
Severino alertava para o “fim das eras” e profetizava que uma “chuva de sangue”
inundaria todo o Sertão. Os camponeses que quisessem a salvação, dizia
Severino, deveriam fazer romarias até o Caldeirão, onde ocorreria o combate
final ao Anticristo.
As pregações de Severino tiveram forte
impacto sobre José Senhorinho, que passou a fazer constantes viagens ao
Caldeirão. Senhorinho era um dos proprietários da Fazenda Pau de Colher,
localizada nos arredores de Casa Nova, no norte da Bahia, já na divisa com os
estados de Pernambuco e Piauí.
Quando Severino partiu, Senhorinho assumiu o
manto de pregador e tornou-se líder da comunidade religiosa que começara a se
formar na fazenda.
• Pau
de Colher e a chacina do Caldeirão
A comunidade de Pau de Colher se tornou uma
espécie de extensão do Caldeirão — um local de preparação para as romarias e
migrações. Seus moradores viviam em regime de comunhão, organizando mutirões
para cumprir as tarefas e compartilhando tudo que produziam.
Tinham, entretanto, que obedecer a regras
rígidas. Não podiam beber, fumar, comer carne ou manter relações sexuais.
Vestiam-se sempre com roupas pretas, denotando luto pela morte de Padre Cícero.
Os homens portavam porretes adornados com cruzes — motivo pelo qual eram
chamados de “caceteiros”.
O arraial, a princípio destinado a abrigar
fiéis e pregadores, cresceu aceleradamente com a chegada de sertanejos pobres e
flagelados da seca. No auge, Pau de Colher chegou a reunir mais de 4.000
pessoas — população superior à da própria sede do município.
Um novo fluxo de moradores chegaria ao
povoado a partir de 1937 — e a causa não poderia ser mais lúgubre. Em 11 de
maio daquele ano, uma operação do Exército brasileiro havia destruído o povoado
do Caldeirão de Santa Cruz do Deserto.
O ataque fora ordenado pelo governo de
Getúlio Vargas, visando neutralizar a comunidade religiosa, então descrita como
um núcleo de “subversão comunista”. Fuzilamentos em massa e bombardeios foram
levados a cabo ao longo do dia. Centenas de pessoas foram mortas durante o
ataque.
• O
“Fim das Eras”
A notícia sobre o Massacre do Caldeirão teve
profundo impacto na comunidade de Pau de Colher. Para muitos, a “chuva de
sangue” e “o fim das eras” profetizados pelo conselheiro Severino estavam se
concretizando. A convivência no arraial se deteriorou e a comunidade logo
estava fragmentada por disputas.
A situação se agravou ainda mais após a morte
de Senhorinho, quando o beato Quinzeiro (apelido de Joaquim Bezerra) assumiu a
liderança de Pau de Colher. Quinzeiro era um dos sobreviventes do Massacre do
Caldeirão. Desprovido do carisma de seu antecessor, e dotado de uma
personalidade mais tendente ao confronto, ele acabaria por aprofundar as
divisões do movimento.
Os desentendimentos se tornaram corriqueiros
e o uso da violência era cada vez mais recorrente. Alguns fiéis que tentaram
deixar a comunidade foram mortos.
A comunidade, entretanto, enfrentava ameaças
ainda mais sérias. Desde a destruição do Caldeirão, a atenção das autoridades
se voltara ao povoado baiano. A elite rural pressionava o poder público a
suprimir o povoado, receosa de que o modo de vida existente em Pau de Colher
influenciasse a criação de outras experiências comunais, contestando o modelo
de exploração dos latifúndios. As práticas religiosas do povoado também
preocupavam os setores conservadores da Igreja Católica, incomodada com o que
via como uma “degradação” de sua doutrina.
O povoado de Pau de Colher foi submetido a
uma campanha de demonização movida pela imprensa. Espalhou-se o boato de que o
povoado abrigava mais de 800 cangaceiros, que estavam se armando e preparando
para iniciar uma onda de ataques às cidades vizinhas, visando tomar o poder na
região e implantar o comunismo.
Matérias publicadas em veículos como o Diário
de Pernambuco” e o jornal A Noite denunciavam os “extremistas” de Pau de Colher
e insinuavam que o Partido Comunista estava por trás da comunidade.
• O
ataque das volantes
A notícia de que os membros do povoado teriam
atacado uma fazenda no Piauí e assassinado 20 pessoas seria a gota d’água. No
dia 10 de janeiro de 1938, um destacamento de policiais baianos realizou uma
incursão na comunidade. Os moradores reagiram e o confronto deixou mortos de
ambos os lados. Uma segunda volante, enviada pelo governo do Piauí, também foi
forçada ao recuo pelos caceteiros.
Determinado a exterminar o povoado, o governo
de Getúlio Vargas organizou uma grande ofensiva, mobilizando as tropas do
Exército estacionadas em Salvador e Aracaju. A ação foi coordenada pelo
tenente-coronel Maynard, comandante das forças militares no Vale do São
Francisco.
A ofensiva seria reforçada por tropas dos
governos estaduais. Coronel Dantas, interventor federal da Bahia, providenciou
o envio de uma companhia de fuzileiros e de um esquadrão motorizado. O governo
do Piauí enviou mais um destacamento de soldados. E Pernambuco encaminhou uma
expedição chefiada pelo infame capitão Optato Gueiros, comandante das forças de
combate ao cangaço.
• O
Massacre de Pau de Colher
Os soldados pernambucanos foram os primeiros
a chegar ao arraial. Armados com metralhadoras, iniciaram o cerco à comunidade
em 19 de janeiro. Em seguida, abriram fogo contra os habitantes de Pau de
Colher, assassinando centenas de pessoas — todas desarmadas, incluindo um
grande número de mulheres, idosos e crianças. Moradores que escaparam dos
fuzilamentos e tentaram fugir foram perseguidos e degolados pelos soldados.
O cerco ao povoado se estendeu por três dias,
chegando ao fim em 21 de janeiro de 1938. Não se sabe o número exato de vítimas
do Massacre de Pau de Colher. O relatório oficial do capitão Optato informou
157 mortos pelas tropas pernambucanas e outros 40 pelos soldados piauienses.
O número efetivo de vítimas, entretanto, deve
ser bem maior. Há relatos de mais de 400 pessoas foram sepultadas em valas
coletivas nos arredores do povoado. Outros relatos apontam que cerca de mil
pessoas foram assassinadas durante a ação.
A perseguição aos sobreviventes prosseguiu
por alguns dias. O Exército despachou aeronaves para vasculhar toda a região em
busca dos “fanáticos” que haviam fugido. As crianças que perderam os pais
durante o massacre foram enviadas para Salvador e oferecidas às famílias ricas,
para serem usadas no serviço doméstico.
A chacina foi celebrada pela imprensa e os
soldados que conduziram o massacre foram recepcionados como heróis. Até mesmo
um banquete em homenagem aos comandantes da operação foi oferecido pela
prefeitura de Casa Nova.
Getúlio Vargas também elogiou a ação. O
presidente enviou um telegrama ao coronel Dantas, parabenizando-o por eliminar
a “ameaça” representada pelo povoado de Pau de Colher.
Fonte: Por Estevam Silva, em Opera Mundi

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