quarta-feira, 30 de abril de 2025

Máfia da anestesia: investigação levanta suspeita de esquema nacional

O esquema de monopólio da anestesiologia revelado no Distrito Federal pode não ser um caso isolado. A investigação que resultou na Operação Toque de Midaz, conduzida pela Polícia Civil e pelo Ministério Público, aponta indícios de que práticas semelhantes podem ocorrer em outras regiões do país, o que sugere uma possível articulação nacional entre cooperativas estaduais.

Durante o andamento das apurações, surgiram relatos de que anestesistas de fora do Distrito Federal teriam sido pressionados a não atuar em hospitais locais. Em um dos episódios citados, um anestesista vindo do Espírito Santo para atender em Brasília teria sido advertido por representante de uma cooperativa daquele estado a se retirar, numa tentativa de manter o boicote imposto a um hospital que rompeu relações com o grupo dominante da capital.

O relato reforça a hipótese de que o controle do mercado de anestesia não seria exercido de forma isolada. Informações colhidas apontam que cooperativas semelhantes, existentes em outros estados, manteriam comunicação e articulação entre si para proteger suas áreas de atuação, impor tabelas de preços e retaliar profissionais que tentem atuar de forma independente.

As suspeitas se somam a referências feitas no início da investigação sobre práticas anticompetitivas já identificadas anteriormente pelo Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade), que há mais de uma década investigou o mercado de anestesiologia por práticas de cartel e abuso de poder econômico.

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No Distrito Federal, os elementos já reunidos indicam um modelo de dominação baseado na concentração de médicos em uma única cooperativa, no fechamento de hospitais para novos profissionais, na imposição de valores superiores aos parâmetros de mercado e na utilização de ameaças e constrangimento para manter o controle do setor.

As práticas incluem a formação de grupos exclusivos em hospitais, impedindo a entrada de novos anestesistas, bem como o uso de cotas milionárias para ascensão dentro da cooperativa e o boicote a instituições que busquem romper com o sistema vigente.

Essas ações teriam impacto direto no aumento dos custos para planos de saúde, hospitais e consumidores, além de restringir a qualidade e o acesso aos serviços médicos.

•        Ameaças são enviadas pela máfia da anestesia a médicos dissidentes

Desvincular-se da máfia que comandava o setor de anestesia do Distrito Federal não era uma tarefa fácil para os médicos que desejavam fugir da organização que agia em desacordo com as normas de compliance. Os profissionais que tentavam estabelecer relações trabalhistas com hospitais desvinculados à Cooperativa dos Médicos Anestesiologistas do DF (Coopanest-DF) eram alvo de ligações e mensagens intimidadoras.

Relatos de testemunhas denunciam que ouvir a proposta de uma unidade de saúde que não cooperava com o cartel significava declarar guerra ao esquema. Uma das vítimas foi denunciada na Polícia Civil do DF (PCDF) e no Hospital da Criança, onde trabalhava, após fazer plantão em um hospital com o qual um grupo filiado à Coopanest-DF havia desfeito contrato pouco tempo antes.

Prints de mensagens trocadas por meio de um aplicativo ilustram o cenário repleto de retaliações. A vítima ouviu de um colega que havia faltado com ética e seria denunciada aos órgãos competentes.

“Infelizmente, corre na cidade que você, deliberadamente, associou-se a essas pessoas, por espontânea vontade, incorrendo em falta ética pelo Código de Ética Médica do CFM; estão sendo feitas as devidas denúncias em todas as instâncias do Conselho Regional de Medicina, do Conselho Federal de Medicina, da Sociedade Brasileira de Anestesiologia, do Sindicato dos Médicos… Lamento, estão falando agora do caráter das pessoas que fazem essas escolhas.”

Em outra mensagem, o mesmo remetente, que não fez questão de esconder o rosto ao intimidar a profissional, informou que ela seria expulsa da cooperativa.

“Você está, neste momento, suspensa da Coopanest. Será iniciado processo de sua expulsão, caso se junte ao movimento da categoria contra os que querem tomar honorários médicos, que são valorizados, fruto do trabalho da cooperativa nos últimos 40 anos, simplesmente não dando mais plantão com o grupo fura-olho, de lá não se procede a expulsão.”

“Ainda dá tempo, deixem eles desesperados procurando gente, é pra não ter mesmo, é pra vir conversar com a gente, pra gente trabalhar sem ter que pagar nada… pra ser bom pra todo mundo… tá faltando anestesistas em Brasília, muitas oportunidades existem… (sic)”

Em face da retaliação, os anestesistas pararam de atender no hospital boicotado e, por falta de anestesistas, as 40 cirurgias que comumente eram realizadas diariamente foram reduzidas para 10.

<><> Perseguição

À época das ameaças, o esquema tinha como alvo um hospital particular da capital federal que rompeu com o grupo que monopolizava os serviços de anestesiologia na instituição. Por isso, ocorreram as ameaças veladas aos médicos que ousassem manter qualquer vínculo com a unidade.

Uma outra vítima foi alertada de que teria o seu imediato descredenciamento da Coopanest-DF, caso voltasse a dar plantões no hospital particular. Ela recebeu notificação de “abertura de processo de eliminação de cooperado”, o qual também era destinado aos outros três anestesistas que continuavam trabalhando no local.

Segundo o relato de um profissional, a notificação apresentava assinaturas que não permitiam identificar os signatários. Além do documento, o médico também recebeu mensagens em tom intimidador.

“Como ficou a negociação com o dono do hospital? Ele ofereceu algo? Ainda quer tirar dinheiro dos anestesistas. Nossa causa é legítima, você não está sendo honesto. Qual legado você está deixando para eles?”, disse, enviando uma foto dos filhos do anestesista.

Os prints apresentados na investigação policial revelam que as mensagens tinham sempre o mesmo emissor.

Em uma das conversas, um dos anestesistas ligados à cooperativa enviou mensagem ao filho do dono da unidade de saúde, afirmando que era melhor ele “convencer o velho, porque nós vamos fechar o hospital dele”. A frase sintetiza a ofensiva da chamada “máfia da anestesia” contra a autonomia do hospital e os médicos dissidentes.

Alguns relataram pressões envolvendo familiares e até insinuações de perseguição em outros vínculos empregatícios. Em um dos episódios, uma médica foi alertada de que seu filho recém-formado “não arrumaria emprego em Brasília”.

•        Raio-X financeiro: como a máfia da anestesia encarece a saúde

Nos bastidores dos hospitais do Distrito Federal, um esquema financeiro robusto garante a sobrevivência de um monopólio silencioso, mas devastador: o da anestesiologia. Com domínio quase absoluto do mercado, a cooperativa que controla o setor impôs uma lógica de preços inflacionados, concentrando lucros em poucos sócios enquanto empurra o custo final para hospitais, planos de saúde e, em última instância, para toda a população.

O funcionamento da engrenagem passa por uma tabela própria de preços para procedimentos anestésicos. Em muitos casos, são cobrados valores até sete vezes maiores do que os praticados pelas referências tradicionais do mercado. Sem alternativas, hospitais e planos de saúde são forçados a aceitar essas condições para garantir atendimento.

Segundo as investigações, o modelo financeiro se baseia em uma divisão desigual: os planos de saúde pagam à cooperativa, que retém uma taxa administrativa e repassa o restante aos grupos de anestesia. Dentro desses grupos, a maior parte do faturamento é concentrada entre poucos sócios, enquanto os anestesistas que executam a maioria dos procedimentos recebem valores fixos baixos, desproporcionais ao volume de trabalho que realizam.

Um hospital de grande porte na capital ilustra bem essa lógica. Com apenas seis salas de cirurgia em operação, o grupo de anestesiologia que atuava no local movimentava mensalmente cerca de R$ 1,2 milhão.

Ainda assim, os profissionais responsáveis pelos plantões recebiam remunerações fixas que, mesmo nos valores mais altos, representavam apenas uma pequena fração do faturamento total. O restante era repartido entre os sócios majoritários.

De acordo com os levantamentos feitos no âmbito da investigação, a consequência direta desse modelo é o aumento expressivo dos custos para os planos de saúde, que inevitavelmente repassam esses gastos aos consumidores, em forma de mensalidades mais caras.

O impacto vai além do setor privado. Conforme a coluna revelou, hospitais públicos enfrentam sérias dificuldades para contratar anestesistas, já que os preços exigidos pela cooperativa superam as condições previstas em editais públicos.

Em um dos hospitais públicos especializados em atendimento infantil, editais para contratação de anestesistas foram ignorados, inviabilizando a realização de cirurgias. E, em toda a rede pública do DF, centenas de procedimentos ficaram represados, porque os preços cobrados ultrapassavam a capacidade orçamentária do sistema.

•        Quem são os envolvidos no esquema da Máfia dos Anestesistas

12 diretores da Cooperativa dos Médicos Anestesiologistas do DF (Coopanest-DF) apontados pela investigação policial — que apura o cartel da anestesia — como sendo alguns dos operadores que comandavam o esquema mafioso que dominou por décadas o setor anestésico da capital do país.

As investigações revelam que a Coopanest-DF agiu com abuso do poder econômico por meio desses profissionais, que se portavam de forma autoritária e impunham, por meio do sistema monopolista, domínio do mercado e eliminação quase total da concorrência de anestesistas que não eram filiados à cooperativa.

Por intermédio de atuação coordenada e ajustada dos profissionais e grupos cooperados, eles intimidavam aqueles que quisessem se desvencilhar do esquema. Prática que, em tese, pode configurar crime de cartel.

<><> Conheça os diretores:

•        José Silvério Assunção

•        Arnaud Macedo de Oliveira Filho

•        Eldiro Daniel Mendes

•        Hélio Ferreira de Oliveira

•        Edno Magalhães

•        Pablo Pedrosa Guttenberg

•        Felipe Cavalcante Sampaio

•        Daniel Daut Santos

•        Thiago Caetano Peixoto

•        Thiago Ferreira Correia

•        Alberto Gustavo de Oliveira Telles

•        Rodolfo Fernandes

De acordo com a apuração, a cooperativa atua por meio de grupos exclusivos de anestesistas, filiados à Coopanest, que detêm o monopólio dos procedimentos anestésicos em diferentes unidades hospitalares. Cada hospital funciona como um feudo, onde apenas o grupo dominante pode atuar. Médicos de fora não têm acesso aos plantões, a menos que sejam aceitos pela cooperativa e pelo grupo local.

Depoimentos colhidos na investigação apontam que profissionais autônomos são barrados sistematicamente, e mesmo anestesistas recém-chegados ao DF só conseguem atuar na rede privada se forem integrados a um grupo já estabelecido — e, para isso, precisam da chancela da cooperativa.

Os documentos revelam que, em cada hospital, há um núcleo que rege e decide quem sai e quem fica, sem muita preocupação com parâmetros éticos. Os especialistas só conseguem atuar na rede privada se forem integrados a um grupo já estabelecido, filiado à Coopanest-DF.

A estrutura hierárquica da cooperativa também foi alvo da apuração. Médicos que não fazem parte da sociedade majoritária dos grupos são conhecidos informalmente como “bagres” e ficam responsáveis pelos plantões mais pesados — noturnos, fins de semana e procedimentos de maior risco — recebendo valores fixos por hora trabalhada. Já os lucros reais são concentrados nas mãos dos sócios, que organizam as escalas e controlam os contratos.

A investigação revelou ainda que o domínio da Coopanest-DF atinge também o setor público. Hospitais, como o da Criança de Brasília, e até a Secretaria de Saúde do DF relataram dificuldades em contratar anestesistas devido aos valores elevados exigidos pela cooperativa. Um levantamento citado aponta que mais de 1.300 cirurgias gerais, sendo 500 pediátricas, deixaram de ser realizadas por inviabilidade financeira.

<><> Operação Toque de Midaz

As práticas foram apuradas e desmascaradas pela Operação Toque de Midaz, deflagrada em abril pela Polícia Civil do DF e pelo Ministério Público. A ação teve como alvo os principais nomes da Coopanest-DF, suspeitos de integrar uma organização criminosa voltada ao cartel da anestesiologia na capital.

Segundo as investigações, o grupo impõe restrições a médicos independentes, fecha acordos exclusivos com operadoras de saúde e usa intimidação para manter domínio sobre os serviços em hospitais públicos e privados.

O nome da operação — “Toque de Midaz” — faz referência ao rei Midas, figura da mitologia grega que transformava tudo em ouro, simbolizando a ganância do grupo. O “Z” no final remete ao medicamento Midazolam, usado em procedimentos anestésicos, numa clara alusão ao setor médico envolvido.

Por meio de nota, a cooperativa informou que “nunca houve e não há cartel ou qualquer outra irregularidade ou ilegalidade por parte da Coopanest-DF e seus diretores.”. A defesa também acrescentou que “irá comprovar, mais uma vez, a integral regularidade e o compromisso ético dos trabalhos prestados aos seus cooperados por mais de 40 anos.”

 

Fonte: Metrópoles

 

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