A
tempestuosa identidade (latino-)americana no Brasil
É
recorrente a ideia de que Brasil e América Hispânica estão de costas um para o
outro na história intelectual. A variação mais contundente da mesma afirmação
mobiliza inclusive a expressão América Latina como se ela fosse sinônimo ou
prerrogativa das antigas colônias espanholas, nossas vizinhas. Quantos
acadêmicos brasileiros se descobriram latino-americanos em departamentos
universitários norte-americanos, ao menos quando eles pareciam locais atraentes
para se ir? Outros, por razões biográficas acidentais e ideológicas, cultivaram
interesse e conhecimento ímpares sobre o Brasil na América Latina. O assunto
volta à tona como problema sociológico e político em vários momentos
importantes, como foi o caso da questão do desenvolvimento nos anos 1950 e
1960, que gerou, inclusive, teorias relativamente originais no quadro mais
amplo do debate sobre a modernização. O que sugere, portanto, que mais do que
exatamente um desconhecimento mútuo, essa história parece, antes, talvez, a
reiteração de uma ideia de desconhecimento mútuo como um autocultivo. Uma
espécie, ela também, de impressão de recomeço do zero a cada nova geração, no
Brasil?
São
problemas muito difíceis e para os quais não há respostas unívocas. Mesmo
porque relações culturais – ponhamos assim em termos bem gerais – não são
estáveis, não se desenvolvem cumulativamente num sentido unívoco e de
aperfeiçoamento das partes interlocutoras. E, claro, não estão acima dos
conflitos sociais, políticos, econômicos e mesmo linguísticos. O Brasil, esse
subcontinente falante da última flor do Lácio, cercado por todos os lados de
uma das línguas mais faladas mundialmente, o espanhol. A propósito, uma das
expressões mais dinâmicas nas relações entre o Brasil e seus vizinhos mais
próximos é a espécie de língua livre, o “portunhol”, cada vez usada com menos
constrangimento em nossas interações.
O que
pensaria disso um Manuel Bandeira, por exemplo, que, além de poeta, foi
tradutor e professor de literatura hispano-americana na Universidade do Brasil,
de 1943 a 1956? Bandeira, aliás, já atuava desde os anos 1930 como mediador com
“los hermanos” na vida cultural do Rio de Janeiro, então capital federal do
Brasil. É conhecida sua amizade com Alfonso Reyes, escritor e embaixador do
México no Brasil de 1930 a 1936. Mas, sem querer jogar lenha na fogueira, o
papel desempenhado por Bandeira junto aos escritores hispano-americanos não
teve reciprocidade equivalente. Depois, já no período da Segunda Guerra e do
domínio de Pablo Neruda, os escritores hispânicos passariam a ser recebidos por
Aníbal Machado, na Visconde de Pirajá, em Ipanema. Bandeira, sempre presente,
mas mais discreto, pois não faz poesia política. De Reyes, ele deixou a
lembrança no célebre poema “Rondó dos Cavalinhos” (“Alfonso Reyes partindo,/ E
tanta gente ficando”).
Bernardo
Ricupero é, sem dúvida, o intelectual brasileiro da nossa geração melhor
preparado e equipado para lidar com questões das interpretações
latino-americanas. Ele acaba de lançar sua tese de livre-docência, defendida em
2021 no Departamento de Ciência Política da Universidade de São Paulo, em
livro: Entre Ariel, Caliban e Próspero: dilemas da identidade (latino)
americana pensados a partir do Brasil. E o que estão fazendo as personagens da
última peça de William Shakespeare, A Tempestade, encenada em 1611, aqui ao Sul
do Novo Mundo? Como mostra Ricupero, há bons indícios da associação da ilha
deserta da peça à América, especialmente um naufrágio em Bermudas de um navio
da Companhia da Virgínia, a cujos investidores o bardo inglês estava ligado por
interesses. Para não lembrar do ensaio seminal “Dos canibais”, de Michel
Montaigne, que sugere que Caliban seria um nativo americano (Caliban seria um
anagrama da palavra espanhola canibal, usada para se referir aos grupos
indígenas Caraíbas). Para além disso, porém, A Tempestade acabou se convertendo
numa alegoria para pensar a América, e muito especialmente o confronto entre a
América que foi se tornando “latina” com uma outra América, a “saxã”.
É essa
história fascinante da viagem das ideias, suas circulações e ressignificações,
que o livro publicado neste início de 2025 pela editora Alameda nos conta. Um
livro erudito, original, bem documentado e bem escrito. Um desses casos,
infelizmente não muito comuns, de um grande tema contando num grande livro.
Atento ao preceito de que a recepção das ideias revela mais sobre os receptores
e seus contextos diferentes do que os supostamente originais, Ricupero
reconstitui um século de apropriações e conflitos interpretativos que, como
também argumenta consistentemente, estariam na base de uma politização da
identidade latino-americana. Antes de eu entrar mais no livro – e sairmos
molhados dessa travessia com tempestades –, porém, deixe-me explicar o porquê de
minha afirmação anterior sobre Bernardo ser tarimbado como poucos para nos
guiar nessa aventura intelectual.
Bernardo
Ricupero dedicou toda a sua formação acadêmica – aliás toda ela realizada com
base no Departamento de Ciência Política da USP, onde leciona – à América
Latina. Sua dissertação de mestrado estuda a “nacionalização” do marxismo no
Brasil em Caio Prado Júnior, sem perder de vista o processo, digamos,
funcionalmente equivalente no Peru, como José Carlos Mariátegui. A dissertação
foi publicada em 2000 com o título de Caio Prado Jr. e a nacionalização do
marxismo no Brasil.
Sua
tese de doutorado, também orientada por Gildo Marçal Brandão (uma das pessoas a
quem o livro é dedicado), toma mais diretamente a comparação como um problema
teórico-metodológico, e coloca em escrutínio contrapontístico o romantismo no
Brasil tendo em vista a Argentina. Publicado como livro em 2004, O romantismo e
a ideia de nação no Brasil (1830-1870) mostra como independência literária,
historiografia nacional, mestiçagem e silêncio cauteloso sobre a escravidão são
alguns dos elementos assentados pelo romantismo brasileiro na construção social
da ideia de nação. É importante ler José de Alencar em contraponto a autores
como Echeverría, Sarmiento, Alberdi, condutores da ideia de nação na Argentina.
Esse
background, que também se multiplica em disciplinas e orientações acadêmicas
sobre a América Latina nas duas últimas décadas, adensa o debate do marxismo
acadêmico uspiano, ao qual Bernardo Ricupero também se filia. No conjunto, seus
trabalhos sugerem que, para que se possa apreender os efeitos políticos mútuos
entre processos ideológicos e estruturas de poder, não devemos nos deter na
constatação da importação de instituições e ideias que marcam as sociedades de
matriz colonial. Mas, partindo desse mesmo mecanismo social, propõe a partir de
Roberto Schwarz, sobretudo, qualificar as relações dialéticas, ainda que
negativas, entre importação e apropriação social, que podem singularizá-las.
Assim, a perspectiva comparativa entre sociedades de matriz colonial impõe-se
como recurso metodológico na definição do sentido político assumido pelas
ideias e pelas instituições em cada sociedade. Impasses de ordem
marco-sociológica e econômica ocupam os lugares da dualidade nessa perspectiva
que Bernardo vem contribuindo para renovar.
Como se
vê, estamos em mãos hábeis para a navegação por mares turbulentos – do século
XVII de Shakespeare à longa passagem do XIX ao XX, dos meados dos anos 1950 até
os anos 1980 do século passado, temporalidade coberta no livro de que ora nos
ocupamos. É muito impressionante a quantidade e a diversidade de matéria
textual levantada e analisada na pesquisa ao longo dos anos. Quantas leituras e
releituras a subsidiam? Quantos escritores usaram personagens retirados do
trabalho do dramaturgo inglês como metáforas para entenderem o que seria
próprio à América Latina e o que seria comum a toda uma América? Que eu saiba,
tendo escrito eu mesmo meu doutorado sobre Ronald de Carvalho, autor de O
espelho de Ariel (1922), estão todos lá no livro de Bernardo, ainda que com
ênfases e papéis diferentes na economia interna explicativa do livro. José
Enrique Rodó, Roberto Fernández Retamar e Richard Morse, que a mobilizaram
diretamente, formam não apenas o eixo da análise, mas também suas viradas na
longa duração.
Além
desses autores, há os que com eles dialogam sem necessariamente trazerem as
metáforas shakespearianas tão direta ou centralmente: Eduardo Prado, Joaquim
Nabuco, Ruy Barbosa, Manoel de Oliveira Lima, José Veríssimo, Manoel Bomfim,
Oswald de Andrade, José Vasconcellos, Rubén Darío, Paul Groussac, Francisco
Garcia Calderón, Pedro Henríquez Ureña, José Vasconcelos, Alfonso Reyes, Emir
Rodríguez Monegal e Leopoldo Zea são alguns deles. É um repertório de autores e
ideias muito impressionante e que, mesmo nem sempre referidos uns aos outros,
permite a Bernardo Ricupero explorar o que chama de uma “certa
intertextualidade” entre eles.
Identidade
é relação. Politizar identidades é desnaturalizar relações. O foco, nunca
perdido no livro, é a história das ideias sobre a identidade latino-americana
em relação à norte-americana, especialmente vista do Brasil, ma non troppo.
Como disse, é a trinca Rodó-Retamar-Morse que estrutura a massa de material
primário e a análise do autor. O uruguaio José Enrique Rodó, quando o século XX
se abria e os Estados Unidos emergiam como potência, identificou latinos com o
espiritualismo do gênio alado Ariel, contraposto ao materialismo do “escravo
selvagem e deformado” Caliban, supostamente mais próximo de anglo-saxões. Após
a Revolução Cubana, Roberto Fernández Retamar reivindica a revolta de Caliban
contra o senhor da ilha, Próspero, para a América Latina que enfrentava o
desafio do imperialismo norte-americano. Já no final do século XX, momento em
que a autoestima dos Estados Unidos era crescentemente colocada em questão, o
norte-americano Richard Morse defendeu que Próspero, identificado com seu país,
olhasse para o espelho de seus vizinhos como forma de lidar com suas dúvidas e
incertezas.
Ao
invés de pensar esses autores como “momentos decisivos”, ao modo da Formação da
literatura brasileira, de Antonio Candido, Ricupero acaba se aproximando do
historiador das ideias políticas John G. A. Pocock. Como notou Maria Ligia
Prado no excelente prefácio ao livro, Ricupero parece inspirado na ideia de
“momento maquiaveliano” para organizar o texto e a análise em três partes: “o
momento Ariel (em que a questão central é a cultura)” e José Enrique Rodó
constitui o centro do debate; o “momento Caliban (em que a política assume um
lugar proeminente)”, com o cubano Roberto Fernández Retamar; e o “momento
Próspero (voltado especialmente para pensar a modernidade)”, em que se destaca
a heresia de Richard Morse. The Machiavellian Moment (1975) me pareceu uma
aproximação, de fato, muito acertada, pois o sentido dado por Pocock à ideia de
“momento” envolve a combinação entre tempo e espaço distintos (em que o
historiador trata em seu livro: o espaço e o tempo do republicanismo da
Florença do Renascimento) e suas reverberações (no caso, nos três séculos
seguintes, quando desempenha papel estrutural na constituição do republicanismo
inglês e norte-americano), acrescento eu.
Não
puxarei mais esse fio, mas aviso leitoras e leitores que o livro é riquíssimo
como montagem teórica e metodológica em torno dessa ideia de “momentos”, bem
como em termos de estratégia narrativa, que, ademais, permite ao autor
simultaneamente pensar e pesar o diacrônico e o sincrônico nas apropriações de
A tempestade e, desse modo, discutir o que é comum e o que é diferente na
identidade latino-americana face à norte-americana ou estadunidense. E, nela,
na diferença, sobretudo, o que há de comum e perene, e o que há de particular
em cada momento e também entre os autores, afinal, tão distintos. Na
apresentação, Ricupero faz questão de chamar a atenção para o fato de que, no
livro, os três momentos acabaram por ter tamanhos muito diferentes, com franca
concentração no momento Ariel. Tudo bem, as razões apontadas, inclusive as
contingentes, envolvidas na feitura de um livro dessa envergadura, são
inteiramente defensáveis; mas, se fosse preciso, eu lembraria a ele que todo
desenvolvimento acaba sendo desigual, mas combinado, não é mesmo?
Uma
grande conquista do livro, que merece a atenção de todos nós especialistas, diz
respeito ao caráter relativamente aberto da análise diacrônica planejada. Num
dos enunciados teórico-metodológicos centrais – embora discretamente formulado
no livro, como, aliás, é discreta toda a discussão desse nível, já que são os
textos forjados em torno de Ariel, Caliban e Próspero que protagonizam o enredo
do livro, e não as particularidades e picuinhas acadêmicas –, Bernardo afirma:
“A história se manifestaria na ambivalência, sendo também a dimensão a partir
da qual o texto se inseriria na história”. Ele ressoa outro historiador das
ideias, Reinhart Koselleck, a quem também recorre, neste caso explicitamente,
para trabalhar a ideia de “camadas de significação” presentes num conceito e
qualificar o que nele se manifesta tanto como permanência quanto como mudança.
E mais: “Atrai-me também como o historiador alemão destaca a relação entre
história dos conceitos e história social, no sentido de que os conceitos podem tanto
funcionar como ‘fatores causais como indicadores de mudança histórica’”.
O comum
e o próprio. As permanências e as mudanças. A matéria viva dos livros
ressuscitados por Bernardo Ricupero – e uso a expressão não apenas por estar
escrevendo esta resenha num feriadão de Páscoa, mas porque ela cabe
perfeitamente ao caso, me parece, de tão esquecidos que esses livros estavam, e
talvez mesmo desconhecidos das novas gerações de intelectuais brasileiros. A
meu ver, parte destes se deixou levar muito unilateralmente pela politização
das identidades apenas no plano interno, fazendo o trabalho sem dúvida
necessário de revirar os escombros da identidade nacional e mostrar o tanto de
violências e apagamentos que foram produzidos para sustentá-la no projeto de
construção do Estado-nação que durou quase dois séculos no Brasil. Mas já
vivemos tempos de desacoplamento entre essas esferas. É preciso, agora mais do
que nunca, correr atrás da compreensão das dinâmicas transnacionais e globais
que nos definem, juntam e separam. E, num momento em que os Estados Unidos
passam por transformações políticas de ordem carismática e populista tão
incrivelmente discrepantes de tudo o que eles escreveram sobre si mesmos e em
que muitos acreditaram, ler Entre Ariel, Caliban e Próspero não deixará também,
ao que parece, de ser uma forma de nos prepararmos para o futuro bem próximo.
Mas e este “entre”, o que será ele?
Fonte:
Por André Botelho, em Outras Palavras

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