Sionismo e supremacismo racial – sobre a
etnia
Há muito vem se argumentando sobre o caráter
específico do sionismo, no que tem de supremacista – refiro-me ao genocídio e à
violência de Estado cometida há mais de sete décadas por Israel no Oriente
Médio e contra os palestinos em particular.
Mesmo os comentadores críticos e rigorosos,
no entanto, localizam o sionismo em um tipo particular de fenômeno, sendo
supremacista porque sua teoria o é; que nasceu supremacista como projeto. Não
fosse assim, o projeto de um nacionalismo judaico não seria de todo um problema
– a consequência implícita ou explícita do argumento não haveria de ser outra.
Meu ponto aqui é que não, um livro por si só
não explica o verdadeiro horror humano do que está acontecendo, tampouco
meramente um projeto societário idealizado o explica. Não vou me atrever a
discutir em pormenores o tema do Oriente Médio especificamente, mas uma das
dimensões que é pano de fundo do debate: o conceito de etnia.
Estou avisada de que a comunidade judaica, de
maneira relativamente distinta de outras etnias ao redor do mundo, entrelaça
dimensões étnicas e religiosas (religião como palavra escrita, por oposição a
práticas espirituais de cunho mais oral). Enfocarei na primeira. Tentarei ser a
mais esquemática e clara possível, para que os leitores possam apropriar-se da
teoria, estabelecer paralelos com outros exemplos, e aplicá-los à discussão
mais premente.
Etnia não é a mesma coisa que um bairro, uma
cidade, uma família, uma categoria profissional. É um grupo social que possui
aspectos específicos.
Existem duas abordagens clássicas – das quais
descendem muitas outras – que trataram especificamente sobre o conceito de
etnia ou comunidades étnicas:
(i) A que enfoca na natureza e na construção
da crença coletiva de uma procedência comum, “fundando-se na semelhança de
hábitos exteriores e costumes, ou em lembranças da colonização e migração”. A
objetificação da procedência comum até a formação da comunidade política, para
Weber, pode despertar a crença na origem racial comum (Weber, 1974 [1904/1905).
(ii) A segunda argumenta que as diferenças
não existem por si mesmas, portanto procura centrar na construção das
diferenças a partir das fronteiras entre etnias; que o que se chama de hábitos,
costumes e idiomas seriam construídos nas relações com outros grupos, portanto
as fronteiras entre grupos distintos seriam essenciais na própria configuração
das etnias e de sinais diacríticos (Barth, 1969)
Uma terceira abordagem não é bem sobre etnia,
mas é amplamente aplicada a grupos étnicos, ainda que nem sempre assim
denominados, sobretudo ao contexto indígena amazônico. Refiro-me ao
espelhamento entre parentesco e sociedade, que descende das formulações de
Lewis Morgan – posteriormente apropriado por Marx e Engels.
Em um conjunto considerável de trabalhos
sobre populações indígenas, descreve-se em pormenores as diferentes elaborações
sociais relativas ao compartilhamento de substâncias físicas e corpóreas entre
indivíduos e grupos, manifestadas em rituais, relações clânicas, categorias e
relações de gênero, etc. Uma etnia, ou grupos indígenas milenarmente
relacionados entre si, refere-se, portanto, a um pertencimento de tipo
específico, profundamente relacionado à continuidades morais, simbólicas,
espirituais e corpóreas entre indivíduos e grupos.
Contextos multiétnicos na Amazônia envolvem a
relação entre esses múltiplos pertencimentos intra e interétnicos,
estabelecidos milenarmente em um território comum. E envolve micro-relações de
poder também – “poder” não se confunde necessariamente a Estado ou governo.
Ainda que obviamente muito distinto, alguma semelhança com o outro lado do
mundo?
Praticamente se contrapondo ao conceito de
etnia, se falará em “nação”, como agrupamentos sociais constituídos ao redor de
conjuntos de leis (aqui entendidas em sentido moral, político, jurídico (Mauss,
1972). Segundo essa abordagem, o que era necessário investigar não eram as
“nacionalidades”, então concebidas como o agregamento baseado em costumes,
idiomas e hábitos, mas em “nação”.
O debate, ainda inconcluso, se bifurca entre
aqueles que apartam pequena e grande política, e aqueles que traçam uma linha
de continuidade entre ambas, do qual a pergunta última é “como nasce o Estado”.
Se é verdade que Mauss não tenha enfocado no compartilhamento de substâncias
corpóreas, tão acentuado em grupos sociais aos quais se dedicou a examinar,
também é dele o deslocamento para o problema de como a nação terminava por
preponderar e ser uma espécie de objetificação da comunidade política do que antes
era examinado como um espírito gregário – a nacionalidade. Por isso propunha
deslocar a análise das “nacionalidades” para a “nação”.
Para se ter uma ideia de como essas dimensões
encontram-se entrelaçadas e confundidas não apenas na teoria, mas também nos
discursos (não apenas de sionistas convictos), aqui no Brasil algumas
lideranças indígenas começaram a usar a expressão “nações”, em encontros da
década de 1980, esboçando ligeiramente a vontade de autonomia diante do Estado
brasileiro.
Mas essa autonomia – todos concluíram –
levaria necessariamente à vulnerabilidade extrema diante de grupos econômicos
poderosos que atuam nos/próximo aos territórios indígenas. Envolveria uma
guerra armada que os povos indígenas das Américas não se habituaram, ao
contrário da “civilização”, travar. Portanto não contariam, ao contrário de
Israel, com ajuda militar imperial para garantir essa (artificial) autonomia.
Todos conhecem a solução que a Constituição
de 1988 brasileira deu à questão das autodeterminações étnicas, com as
demarcações etno-territoriais, com previsão jurídica de proteção estatal, ainda
que muita água esteja rolando embaixo dessa ponte atualmente. A Bolívia é outro
exemplo importante, além das recentes tentativas em se avançar no Chile, sem
sucesso. Embora haja divergências, não existe nenhum/a estudioso/a rigoroso/a
dessa questão que acredite ser uma boa ideia chamar uma etnia ou grupo indígena
de Estado nacional.
Apesar da aparente oposição excludente entre
as abordagens sobre a dimensão da experiência étnica – com acusações acirradas
e às vezes estéreis no campo teórico antropológico entre “construtivistas” e
“essencialistas” – nenhuma delas nega a contiguidade entre a questão étnica e a
questão racial. Não à toa, “relações étnico-raciais”, assim denominada, é o
rótulo segundo o qual conteúdos e disciplinas encontram-se no currículo
nacional de muitos países, inclusive no Brasil.
De maneira correlata à “raça”, a etnia também
opera com contiguidade de substâncias (físicas, corpóreas) entre indivíduos e
grupos sociais, ou, diria Weber, na “crença” dessa contiguidade. Diferente de
laços étnicos, por outro lado, “raça” possui uma etimologia associada ao
colonialismo europeu, portanto um estreito vínculo com políticas genocidárias
implementadas por Estados imperiais.
Associar vínculos étnicos à construção de um
Estado, uma formação social, territorial e histórica específica, porque
militarizada, envolve, portanto, necessariamente o perigo intrínseco do
aprofundamento da contiguidade entre relações étnicas, objetificação racial, e
implementação de relações de poder de natureza militar – um supremacismo armado
com tanques e bombas.
Então ainda que não houvesse Theodor Herzl e
seu livro, a implementação e existência de uma etnia estatal, isto é, um Estado
que se define e é formado por referência a uma etnia, além de contar com apoio
irrestrito norte-americano – que cuida para fomentar um contraste cultural no
Oriente Médio como forma de dominá-lo –, cujo único possível paralelo no mundo
seja a Armênia (uma comparação histórica que pode ser útil), implicaria
necessariamente no risco do que estamos vendo agora. Dito de outro modo, livros
por si só não geram realidades.
Fonte: Por Aline Moreira Magalhães, em A
Terra é Redonda

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