'Panamá retorna ao colonialismo da quinta
fronteira com novo acordo assinado com os EUA sobre Canal'
O
presidente americano Donald Trump prometeu
"recuperar" o Canal do Panamá. E, para alguns
analistas, suas palavras já estão sendo traduzidas em ações.
No
início de abril, o secretário de Defesa dos Estados Unidos, Pete Hegseth, e o
ministro da Segurança do Panamá, Frank Ábrego, assinaram na Cidade do Panamá um
memorando de entendimento para fortalecer a cooperação entre os dois países, em
relação à segurança do Canal.
Hegseth
afirmou que o acordo "restabelece a presença rotativa" de militares
americanos em três bases panamenhas – Sherman, Rodman e Howard – e autoriza os
navios militares americanos a navegar pelo Canal do Panamá "primeiro e
gratuitamente" (ou "primeiro e livremente", dependendo da
tradução do inglês).
Com
isso, os Estados Unidos declararam que procuram "neutralizar a influência
maligna" supostamente exercida pela China no Canal.
O
memorando tem cinco páginas e provocou uma onda de críticas ao governo
panamenho e questões sobre o seu alcance.
Políticos
opositores ao presidente panamenho, José Raúl Mulino, e especialistas
independentes afirmam que a decisão enfraquece o princípio de neutralidade do
Canal, consagrado no tratado de 1977. E também abre as
portas para que os Estados Unidos retomem o controle das bases militares, que o
Panamá recuperou com muita dificuldade.
Já o
governo panamenho defende o novo acordo assinado, com o argumento de que o país
não está cedendo partes do seu território e que o entendimento não prejudica a
soberania do Panamá.
E, em
relação à suposta ingerência chinesa, Mulino declarou que "os chineses não
são problema no Panamá. Disse isso claramente ao senhor secretário [Hegseth].
Não temos problemas com os chineses, nem eles conosco."
Em
fevereiro, o presidente Mulino anunciou que não renovaria o acordo com a China
que incluía o Panamá na Nova Rota da Seda. A decisão foi
tomada após pressões dos Estados Unidos para reduzir a influência de Pequim
sobre o Canal do Panamá.
A
discussão sobre as possíveis consequências do recente memorando traz de volta a
longa e histórica luta do Panamá pela soberania do Canal, construído pelos Estados Unidos no início do
século 20.
As
relações entre o presidente panamenho e o governo Trump geraram protestos e
descontentamento entre parte da população.
A BBC
News Mundo – o serviço em espanhol da BBC – solicitou diversas vezes, nas
últimas semanas, uma entrevista com o presidente Mulino, mas não recebeu
resposta positiva até a publicação desta reportagem.
Em
entrevista à BBC, o politólogo Ricardo Herrera Hazera, professor da
Universidade do Panamá, analisa com perspectiva histórica o momento atual do
Panamá e do Canal durante o governo Trump. Ele fala do retorno da chamada
'quinta fronteira' do país.
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Confira abaixo a entrevista.
·
O sr. comparou os recentes acordos assinados entre o
governo do Panamá e os Estados Unidos com a época da "quinta
fronteira".
Como
foi aquele período para o Panamá e quais são, na sua visão, as semelhanças com
o momento atual?
Ricardo
Herrera Hazera: Nós
tínhamos um país dentro de outro país. Nós, panamenhos, éramos cidadãos de
terceira classe no nosso próprio território.
No
coração do Panamá, os americanos estabeleceram [entre 1903 e 1979] a Zona do
Canal, onde nós, panamenhos, não podíamos entrar e não era permitido hastear a
bandeira do Panamá.
Dali,
eles controlavam em boa parte a política do país e intervieram em muitas
ocasiões. Eles se apossaram dos portos e criaram bases militares, que foram
crescendo depois da Segunda Guerra Mundial (1939-1945).
Esta
era a "quinta fronteira": o colonialismo na sua essência mais pura —
o mesmo colonialismo que os Estados Unidos tanto criticaram, em relação às
potências europeias.
Ela foi
chamada de quinta fronteira porque o Panamá se limita ao norte com o Oceano
Atlântico, ao sul com o Pacífico, a leste com a Costa Rica e, a oeste, com a
Colômbia. E, dentro do próprio Panamá, havia uma quinta fronteira.
Foi um
período de muita humilhação para o nosso país. Não éramos um país soberano. Não
tínhamos o monopólio do uso da força.
Éramos
uma caricatura de país e observávamos, impotentes, como eles se apoderaram do
nosso principal recurso natural, que é a nossa posição geográfica.
Nós,
panamenhos, também éramos constantemente agredidos. Em 9 de janeiro de 1964,
por exemplo, o exército americano assassinou 20 estudantes secundaristas que
hastearam a bandeira do Panamá na Zona do Canal.
Mas os
marcos da quinta fronteira já foram retirados. E o Panamá não poderia ser o que
é hoje em dia se eles ainda estivessem ali.
Desde
1977, com a assinatura dos tratados Torrijos-Carter [que entregaram o controle
do Canal ao Panamá], a Zona do Canal, pouco a pouco, foi desaparecendo.
·
O sr. acredita que a "quinta fronteira" está
retornando. Em que sentido este passado é similar ao cenário que estamos
observando agora, já que os recentes acordos não contemplam a cessão de
território panamenho aos Estados Unidos?
Herrera
Hazera: Por
mais que eles neguem, os acordos assinados pelo governo panamenho cerceiam a
soberania nacional.
A
história nos mostrou que os Estados Unidos não procuraram manter bases
militares no Panamá apenas com espírito de cooperação. Existem antecedentes
suficientes que demonstram os riscos e prejuízos para a nossa soberania e
autodeterminação.
Alguém
poderá dizer: "Bem, em outros países, existem bases militares dos Estados
Unidos." Mas quantas dessas bases militares foram utilizadas em quase 100
anos para subjugar aqueles países?
Os
Estados Unidos tiveram a última palavra em todas as decisões tomadas pelo
Panamá, ao longo de um século.
Muitas
gerações de panamenhos entenderam que é fundamental não ter bases militares
americanas no Panamá.
Quando
os tratados Torrijos-Carter nos libertaram da presença militar americana, nós
passamos a ser, pela primeira vez, um país com capacidade de utilizar seu
principal recurso natural, não para benefício dos interesses geopolíticos de
uma potência, mas sim dos próprios panamenhos.
Por
isso, nós crescemos. Por isso, nós renovamos e expandimos o Canal do Panamá.
Agora,
o governo panamenho está assinando acordos com os Estados Unidos que concedem
aos militares daquele país a capacidade de se mobilizar no Panamá, como se
estivessem passeando pelo Arizona. Estamos retrocedendo muitos anos.
E não
há transparência. Existe total silêncio em relação ao alcance real desses
acordos.
O
governo panamenho afirma que são acordos administrativos, mas os Estados Unidos
interpretam os entendimentos como novos tratados sobre o Canal. E é assim que
estão vendendo à sua população.
Precisamos
de mais de 70 anos para retirar os americanos na primeira vez. O que nos
garante que, agora, será diferente?
·
Qual a diferença entre os Estados Unidos atuais e o país
que negociou com o Panamá tantas outras vezes?
Herrera
Hazera: A
política externa americana, da mesma forma que a política interna, foi
historicamente baseada nos valores da democracia. Foi nela que se baseou sua
liderança no Ocidente.
Mas,
hoje, um desses valores fundamentais foi desfeito, que é o da verdade. O
governo Trump vem defendendo uma série de falácias sobre o Canal do Panamá como
fundamentos para suas ações de política externa.
Esta é
uma grande diferença em relação aos Estados Unidos que conhecíamos até agora.
·
Quais são essas falácias, ou mentiras, a que o sr. se
refere?
Herrera
Hazera: Em
primeiro lugar, ele [Trump] disse que o Canal do Panamá está sendo destruído,
que está acabando.
O Canal
vive o seu melhor momento. O Panamá investiu mais de US$ 6 bilhões [cerca de R$
34,1 bilhões] para renová-lo.
O país
aumentou seu PIB em mais de 80% desde o ano 2000. E isso não se deve ao Canal
antigo.
O Canal
antigo já expirou. Os lucros são do Canal que o Panamá conseguiu ampliar, sob a
liderança dos governos panamenhos.
Eles
tentaram dizer que os panamenhos não souberam administrar o Canal, mas é
exatamente o contrário.
O mundo
todo reconhece que o Panamá fez um bom trabalho. Existe até uma carta de
[Barack] Obama felicitando os panamenhos por isso.
A
segunda falácia que ouvimos é que os Estados Unidos construíram o Canal e o
entregaram gratuitamente ao Panamá.
O
Panamá enfrentou 70 anos de lutas e muitas mortes, até que os Estados Unidos
compreendessem que era preciso assinar um novo tratado.
Os
tratados Torrijos-Carter foram o resultado de uma negociação, de uma luta de
gerações, do apoio internacional recebido pelo Panamá e do lobby que ocorreu
para que os Estados Unidos os assinassem.
Nada
saiu de graça, nem foi fácil.
·
O argumento repetido por Trump e seu gabinete para
justificar seu renovado interesse pelo Canal do Panamá é que eles querem
protegê-lo, segundo suas palavras, da maligna ingerência comunista chinesa. O
que há de verdade nisso?
Herrera
Hazera: Os
portos que estão no Pacífico e no Atlântico perto do Canal do Panamá, que são
os portos de Cristóbal e Balboa, são operados por uma empresa de Hong Kong.
(Obs.:
o poderoso fundo de investimentos americano BlackRock anunciou em março que
havia chegado a um acordo para a compra dos portos.)
Fora
disso, não existe no Panamá nenhum tipo de influência chinesa.
Os
americanos confundem o fato de que a China mantém sua presença na América
Latina há mais de 150 anos com uma suposta influência chinesa sobre o Canal do
Panamá. Isso é absurdo.
Muito
bem. Nós, panamenhos, precisamos reconhecer que a forma em que o governo
anterior prorrogou os contratos sobre os dois portos para a empresa de Hong
Kong [por 25 anos, a partir de 2021] não foi transparente e não foi a forma
correta para garantir a neutralidade.
Mas
isso é muito diferente de garantir que a China detém o controle sobre o Canal
do Panamá.
É outra
grande falácia sendo construída pelo governo americano, para que a opinião
pública seja favorável a esta nova intimidação empreendida contra o Panamá.
·
De qualquer forma, o poder de negociação do Panamá, por
ser um país pequeno, em relação aos Estados Unidos, é limitado. E alguém
poderia pensar que é mais conveniente para o país, em termos econômicos, manter
boas relações com os americanos.
Herrera
Hazera: Existem
muitas opções que não representam entrar em contradição direta com Trump. Mas a
presença militar americana no Panamá não nos garante nenhum tipo de benefício
econômico.
Quando
os americanos foram embora das bases militares em 1999, muitos questionaram:
"E agora, o que vamos fazer com a economia?"
E o
resultado foi que a economia panamenha cresceu desde então em mais de 80%. E,
atualmente, o Panamá é o país com PIB per capita mais alto da América Latina –
exatamente porque, agora, o Canal atende aos interesses dos panamenhos.
Por
isso, o que ocorre é o contrário: a presença americana no Panamá nos impede o
desenvolvimento, não é um motor de desenvolvimento. Isso se vê claramente,
quando se analisa a história.
Agora,
com estes acordos, estamos abrindo as portas para que os Estados Unidos usem o
Canal do Panamá na sua guerra comercial contra a China. E isso coloca a nós,
panamenhos, em uma posição muito desfavorável.
Enquanto
acordos anteriores, como o de Salas-Becker [2002], se baseavam na cooperação
para combater delitos como o narcotráfico, estes estão inscritos no contexto de
um inimigo comum, que é supostamente a China.
E isso
nos transforma em um alvo, em um objetivo no caso de guerra. A remilitarização
que estamos observando no Panamá traz riscos muito sérios.
Se o
Canal não for para os panamenhos, não convém para nós, panamenhos, termos um
Canal.
O que
nós, panamenhos, precisamos é garantir a neutralidade. E, atualmente, eles a
estão arrebatando de nós. O Panamá militarizado se vê na obrigação de acatar
todas as decisões que os Estados Unidos quiser que o país tome.
Quando
você tem bases militares no seu país e os F-16 passam pelo seu território, você
perde a capacidade de negociação.
Fonte: BBC News

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