Ouro Preto e seu patrimônio na mira das
mineradoras
Ambientalistas e especialistas em patrimônio
temem que Ouro Preto — primeira cidade brasileira nomeada Patrimônio Mundial da
Humanidade pela Unesco — esteja com seu título com os dias contados por causa
de projetos de mineração.
No epicentro da questão está a comunidade de
Botafogo, na entrada da cidade, primeiro local a sentir os impactos da
atividade minerária, que já começa a se concretizar no entorno. “A mineração
quer destruir o berço de Ouro Preto”, diz a arqueóloga Alenice Baeta, que
trabalhou no levantamento de patrimônio histórico da região no ano passado.
Criado em fins do século 17, Botafogo é um
dos primeiros povoamentos de Ouro Preto. O local abriga a Capela de Santo
Amaro, considerada a segunda mais antiga de Minas Gerais, cujo registro de
tombamento vem sendo analisado desde 2012 pelo Conselho Municipal de
Preservação do Patrimônio Cultural e Natural de Ouro Preto (Compatri).
Além da capela, há em Botafogo caminhos
antigos e muros de pedra históricos bordejando igrejas, cemitérios, pontes,
cavernas e cachoeiras — além do patrimônio imaterial, como festas religiosas.
Como se trata de um levantamento preliminar, o conjunto ainda não tem
reconhecimento oficial. “Mas não é porque não está mapeado pelo Iphan que o
patrimônio não existe”, diz Ana Paula de Assis, professora adjunta do
departamento de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal de Ouro Preto
(UFOP).
• Impacto
desconhecido
Ao redor de Botafogo existem pelo menos sete
empreendimentos minerários cujos processos de licenciamento e pesquisa de ferro
e manganês seguem a todo vapor. São projetos pertencentes às empresas HG
Mineração, RS Mineração, CBRT Participações, Mineração Patrimônio, Mineração
Três Cruzes, Companhia Siderúrgica Nacional (CSN) e BHP Billiton — esta última,
sozinha, tem autorização para pesquisar ferro em uma área de mais de 900
hectares.
Destas companhias, a RS Mineração e
Patrimônio já estão em atividade, enquanto outras três — HG Mineração, CSN e
Três Cruzes — estão na fase de concessão de lavra, título federal conferido
pela Agência Nacional de Mineração (ANM) que autoriza a extração,
beneficiamento e comercialização de minério encontrado na fase de pesquisa.
O impacto já se faz sentir em Botafogo, Ouro
Preto e arredores. As águas do Córrego do Funil, que abastece a região, já
estão turvas em decorrência da atividade minerária. Em março, a LC
Participações, responsável pela mina Patrimônio, soterrou uma gruta – que, de
acordo com ambientalistas, havia sido omitida no Relatório Espeleológico
apresentado pela empresa à Fundação Estadual do Meio Ambiente (Feam).
O imbróglio exemplifica o desconhecimento da
magnitude real do impacto ambiental que a atividade das mineradoras terá na
região — especialmente porque, observa Assis, “não existe relatório ou
documento dimensionando os danos cumulativos da atividade destas mineradoras”.
Questionada, a Feam disse em nota que, no
termo de referência em seu site, “consta item específico que visa avaliar e
considerar a existência de outros empreendimentos previstos e/ou existentes na
área de influência, suas relações sinérgicas, efeitos cumulativos e conflitos
potenciais com o empreendimento em questão”.
A Feam, no entanto, não respondeu diretamente
sobre se pediu ou não um relatório de impacto cumulativo às mineradoras que
querem operar no entorno de Ouro Preto.
O documento mais próximo deste relatório é o
levantamento que Assis e a colega Karine Carneiro fizeram com seus alunos em
uma disciplina de Planejamento Urbano e Regional no ano passado. Eles
analisaram o Estudo de Impacto Ambiental (EIA), o Relatório de Impacto
Ambiental (Rima) e outros documentos públicos das mineradoras HG, Patrimônio e
RS.
O que viram, segundo Assis, é preocupante.
“Fizemos este documento porque a análise das mineradoras no quesito impacto é
muito superficial”, conta ela, que dá um exemplo prático. “A RS Mineração, que
já atua em Botafogo, declara a extração de minério suficiente para o trânsito
de três caminhões de minério por hora. Mas o que estamos vendo na realidade são
140 — que passam por dentro da zona de amortecimento de uma Estação Ecológica”,
observa.
O local que Assis menciona é a Estação
Ecológica Estadual (Esec) Tripuí, uma unidade de conservação estadual de
proteção integral que abriga oito nascentes e nove pontos de captação de água —
além de mais de 240 espécies de flora e quase 200 espécies de animais,
inclusive ameaçadas de extinção, como o lobo-guará e o macaco sauá.
Tripuí é ainda habitat do Peripatus acacioi,
invertebrado descoberto lá e descrito cientificamente nos anos 1950. Elo
evolutivo entre os anelídeos (minhocas) e os artrópodes (aranhas e escorpiões),
é considerado um fóssil vivo. Endêmica da região, a espécie é vulnerável à
extinção.
• Tesouro
natural
Além da Esec Tripuí, há, em toda a região, um
patrimônio natural único. Segundo Lívia Andrade, professora do departamento de
Biodiversidade, Evolução e Meio Ambiente da UFOP, os topos de serras como a do
Amolar, Siqueira e do Veloso são cobertas por campos rupestres — uma formação
rica com evolução localizada associada a rochas duras como ferro e quartzito.
Nos campos rupestres ferruginosos de Ouro
Preto existem plantas que ainda não foram descritas — mas as que se conhece têm
alto potencial econômico, de alimentação e de uso em medicamentos, além de
contribuírem para serviços ecossistêmicos, como a recarga hídrica na região.
“Esse tipo de formação ocupa menos de 1% do território brasileiro, mas abriga
entre 15 e 25% da flora do Brasil”, conta Andrade. “A maior parte desses campos
já foi perdida. Se aquela região também for devastada, como saberemos o que tem
ali?”
Mas os campos rupestres são apenas a parte
visível de uma fotografia prestes a desaparecer. Debaixo das rochas, existe um
rico ambiente aquático, dominado pelo Aquífero Cauê. “A região de Botafogo é um
berço de nascentes e águas subterrâneas que vertem para o Rio São Francisco a
partir do Ribeirão do Funil, que deságua no Rio das Velhas e abastece a região
metropolitana de Belo Horizonte”, explica Adivane Costa, professora do
departamento de Geologia da UFOP que contribuiu para um levantamento dos recursos
hídricos ao redor de Botafogo no ano passado.
Ali, conta Costa, existem cerca de 15 mil
pessoas que dependem diretamente do Ribeirão do Funil, onde não existe
tratamento de água. “A qualidade da água ali é excelente, não tem metais
pesados e é quase potável. Tem algumas bactérias porque não tem saneamento
básico, mas um tratamento simples já resolve”, diz. As nascentes em Botafogo,
adiciona a professora, são importantes para purificar a água que circula ali.
“Quanto mais água, mais diluída vai ser a contaminação.”
A retirada do minério de ferro ali tira o
sono de Costa e muitos colegas. “Esses minérios têm uma porosidade altíssima
[que ajuda na captação de chuvas e recarga do aquífero]. A retirada deles vai
causar a diminuição de algumas nascentes e até a morte de outras”, adverte ela.
Isso sem falar no assoreamento causado pela atividade minerária, que pode
trazer grande prejuízo à fauna aquática da região. “O minério que temos ali é
nossa caixa d’água.”
Moradores e pesquisadores também estão
preocupados com a Área de Proteção Ambiental Estadual Cachoeira das Andorinhas
— que abriga o Parque Natural Municipal das Andorinhas (PNMA) e está na
transição entre Mata Atlântica e Cerrado — e a Serra de Ouro Preto, cujo cume
abriga estradas construídas em 1712 e 1782, usadas por tropeiros para o
comércio com o Rio de Janeiro.
As estradas, para o historiador Alex Bohrer,
professor do Instituto Federal de Minas Gerais (IFMG), são um capítulo especial
no patrimônio de Ouro Preto. “Juntos, estes dois caminhos são a maior obra
viária de Minas Gerais do século 18, talvez a maior do Brasil”, diz. Ele
observa que, para se preservar as estradas, é preciso conservar a serra. Mas
não apenas por seu valor histórico. “A Serra de Ouro Preto está na entrada da
cidade. Imagine turistas dando de cara com uma serra carcomida, cheia de poeira
e com caminhões de mineração entupindo a via?”
• “Para
inglês ver”
O processo para o andamento e liberação
destes empreendimentos, segundo ambientalistas que acompanham a questão, é
repleto de falhas.
O primeiro deles, apontam, é uma estratégia
para facilitar o licenciamento ambiental fazendo pedidos de forma fracionada
para áreas de mineração conhecidas como “mini-minas” — ou lavras de ferro a céu
aberto cuja produção bruta é menor que 300 mil toneladas por ano. De acordo com
uma deliberação estadual do Conselho Estadual de Política Ambiental de 2017,
projetos que têm esse volume de produção são considerados de pequeno porte e
por isso podem pedir o Licenciamento Ambiental Simplificado (LAS), feito em uma
única fase, que só depende da apresentação de um relatório ambiental
simplificado por parte da mineradora interessada — que são “documentos para
inglês ver”, diz Assis.
Não são apenas os pedidos de licenciamento
que são feitos de forma fracionada. Assis aponta que a análise de impactos
ambientais e de tráfego também ocorrem dessa maneira, não cumulativa, pelo
órgão licenciador. “A Feam não tem noção de todo o impacto que esses sete
empreendimentos representam”, diz ela.
Questionada sobre o motivo pelo qual as
análises de processos minerários em áreas próximas são feitos de forma
fracionada, a Feam declara que “a competência de decidir mérito de concessão de
licença ambiental é do Conselho Estadual de Política Ambiental (Copam), das
Unidades Regionais de Regularização Ambiental (URAs) ou Diretoria de Gestão
Regional (DGR), dependendo do porte e potencial poluidor do empreendimento. Com
relação à competência para análise, esta é comum entre as URAs e DGR”.
Enquanto isso, a comunidade de Botafogo
apresenta denúncias ao Ministério Público de Minas Gerais e faz campanhas de
conscientização sobre os riscos impostos pela mineração. Mas não tem sido
tarefa fácil. “Ouro Preto é o centro do fim do mundo há mais de 300 anos”,
desabafa Assis.
Para Bohrer, o que está acontecendo é
impensável. “Em qualquer país sério do mundo, projetos desses nem seriam
discutidos. Ninguém jamais pensaria em abrir projetos de mineração às portas de
Florença. Pois bem, Ouro Preto é a Florença brasileira.”
Fonte: Mongabay

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