terça-feira, 29 de abril de 2025

O Modelo Semashko: como a União Soviética criou o primeiro sistema universal de saúde

Instituído pela Constituição Federal de 1988, após décadas de luta pela democratização do acesso à saúde, o SUS é uma das maiores conquistas civilizacionais do povo brasileiro. É também um modelo assistencial raro. Há poucos países que possuem sistemas universais de saúde pública. No caso das nações com mais 100 milhões de habitantes, o Brasil é o único a garantir acesso à assistência médica integral, universal e gratuita.

Na maior parte dos países, os interesses privados seguem até hoje dominando o desenho das redes assistenciais. A indústria privada de assistência médica está entre as mais lucrativas, movimentando centenas de bilhões de dólares todos os anos, e a constituição de modelos assistenciais gratuitos representam uma limitação incômoda a esse nicho de mercado. Não por acaso, o primeiro sistema universal de saúde, precursor do SUS e de todos os modelos congêneres, só surgiu em decorrência de uma revolução socialista — o Modelo Semashko, criado na Rússia Soviética após a Revolução de Outubro.

A atuação dos Estados no fornecimento de assistência médica aos seus cidadãos é um fenômeno histórico relativamente recente. Até meados do século XIX, a assistência médica não era considerada uma obrigação dos governos. A maioria dos hospitais eram instituições confessionais, ligadas às igrejas. Socorrer os doentes era considerada uma prática de caridade.

Esse cenário começou a se alterar a partir dos desafios gerados pela explosão demográfica nos grandes centros urbanos e do avanço acelerado da industrialização. O surgimento de bolsões de pobreza nas grandes cidades contribuiu para a proliferação de doenças, culminando em epidemias que eventualmente ameaçavam as classes dominantes. Ao mesmo tempo, o constante adoecimento do proletariado prejudicava a produtividade das fábricas.

A combinação entre as péssimas condições de vida, a exploração inclemente nas linhas de produção e a negligência dos governos também despertou em muitos trabalhadores a simpatia pelos movimentos operários radicais. O crescimento dos partidos políticos de esquerda europeus na segunda metade do século XIX está em grande parte ligado às reivindicações na área da saúde. As agremiações de esquerda tiveram um importante papel na criação das sociedades de auxílio mútuo, que consistiram em uma das primeiras tentativas de se criar um serviço médico acessível aos trabalhadores.

Foi tentando contornar os riscos derivados desse contexto que os governos europeus formularam as primeiras redes assistenciais. Em 1883, a Alemanha instituiu um sistema de seguro-saúde intitulado “Modelo Bismarck”. O sistema era financiado por contribuições dos empregadores e operários. O atendimento, entretanto, não era gratuito e excluía justamente as parcelas mais vulneráveis da sociedade — como as famílias desempregadas e os incapacitados de trabalhar.

Em 1911, o Reino Unido aprovou a Lei do Seguro Nacional, que estabelecia o fornecimento de assistência médica para a população empregada. Assim como o sistema alemão, o modelo britânico era bastante limitado, cobrindo menos de um terço da população e ofertando somente cuidados primários.

No restante da Europa, a situação era ainda mais precária. É o caso da Rússia, que, até a segunda década do século XX, ainda não possuía nenhum serviço público de assistência médica. As clínicas e hospitais do país eram privados e apenas as classes mais abastadas contavam com serviços médicos pagos. A imensa maioria dos trabalhadores não tinha qualquer tipo de provisão médica, excetuando-se algumas organizações beneficentes religiosas nas grandes cidades.

Como resultado, a Rússia tinha alguns dos piores indicadores sanitários da Europa, com altas taxas de mortalidade. Aproximadamente 10% de todos os jovens russos recrutados para as forças armadas na primeira década do século XX sofriam de tuberculose. As epidemias de cólera, febre tifoide e varíola castigavam permanentemente o país.

Foi somente após o triunfo da Revolução de Outubro de 1917 e a subsequente instalação do governo socialista soviético que surgiram as primeiras iniciativas governamentais pautadas pelo entendimento de que a saúde era um direito universal — e não apenas um investimento nas linhas de produção ou um instrumento para impedir que as epidemias se alastrassem para os bairros nobres. Sob o governo da vanguarda revolucionária, a gestão da saúde pública deixou de ser moldada pela vontade do mercado ou dirigida pelos interesses pragmáticos da burguesia, passando a integrar a política de emancipação da classe operária, o esforço revolucionário na construção do “novo homem”.

Ainda em 1917, imediatamente após a revolução, o governo bolchevique emitiu decreto obrigando os empregadores a cobrirem os custos com assistência médica e licença maternidade dos funcionários. Alguns meses depois, os comunistas aprovaram a criação de uma abrangente legislação sanitária que previa a obrigatoriedade do abastecimento de água potável, expansão das redes de esgoto e a criação de padrões adequados de salubridade para comércio, indústria, equipamentos públicos e residências.

A partir de 1920, o governo russo iniciou a criação de uma vasta rede de “sanatórios”, tipo pioneiro de resort de saúde, que combinava atividades recreativas de balneário com terapias médicas para a classe trabalhadora — o mais faustoso deles instalado no palácio de veraneio do czar Nicolau II. A maioria das farmácias e indústrias farmacêuticas foram nacionalizadas nos dois primeiros anos após a revolução. Para reduzir a dependência de medicamentos importados, o governo soviético financiou a criação de vários institutos de pesquisa biomédica. Em 1928, a União Soviética já produzia 88% de todos os medicamentos que consumia.

Em 1918, o governo socialista criou seu Comissariado de Saúde Pública — um dos primeiros “Ministérios da Saúde” do mundo. A gestão do órgão foi entregue ao médico Nikolai Semashko, eminente membro da Academia de Ciências Médicas. Nikolai ficaria à frente do comissariado até 1930, sendo o principal responsável por organizar o primeiro sistema de saúde de abrangência universal do mundo — o chamado “Modelo Semashko”, que garantia atendimento gratuito a todos os cidadãos, empregados ou não, e cobria todas as terapias e tratamentos médicos necessários, independentemente do custo.

Nas décadas seguintes, o Modelo Semashko se consolidaria como a maior rede de assistência médica gratuita e passaria a oferecer um dos serviços médicos mais eficientes do mundo. Com investimentos massivos, o sistema conseguiu universalizar e unificar a oferta de serviços médicos, cobrindo todas as regiões do vasto território soviético, de Leningrado às aldeias mais remotas da Sibéria. Nos anos 30, o sistema já havia se tornado uma referência mundial e serviria de inspiração para a criação de redes assistenciais em outros países — incluindo um dos centros nervosos do capitalismo e do pensamento liberal: o Reino Unido.

Em 1933, Arthur Newsholme, um dos principais formulados do sistema de saúde pública britânico, escreveu um livro repleto de elogios à medicina socializada na União Soviética (“Red Medicine: Socialized Health in Soviet Russia”, escrito em coautoria com John Adams Kingsbury), no qual admitia que o país era “a única nação do mundo que se comprometeu a configurar e operar uma organização completa para fornecer assistência médica preventiva e curativa para cada homem, mulher e criança dentro de suas fronteiras”. Henry Sigerist, outro destacado proponente dos sistemas universais de saúde, também escreveu um livro enaltecendo o Modelo Semashko (“Medicine and Health in Soviet Union”), no qual afirma estar “impressionado pelo esforço honesto de uma nação inteira para garantir atenção médica a todo o seu povo”.

O Modelo Semashko, portanto, teve forte influência na criação do Serviço Nacional de Saúde do Reino Unido — que, por sua vez, serviu de modelo para a criação do SUS. Na verdade, o sistema soviético influenciaria parte substancial das políticas de saúde pública e dos modelos assistenciais implementados na Europa a partir dos anos 40, em meio ao fortalecimento das políticas do “Estado de bem-estar social” — criadas como parte de uma estratégia para desestimular a radicalização da classe trabalhadora, adaptando as reformas socialistas à estrutura institucional dos Estados burgueses.

A base do Modelo Semashko consistia em uma gigantesca rede de centros médicos de bairro, responsáveis pela atenção básica e pelo acompanhamento das comunidades. Existiam também as policlínicas de bairro e as estações de primeiros socorros, além dos hospitais distritais e municipais. Casos mais graves eram encaminhados para instituições médicas especializadas. Havia ainda uma rede hospitalar departamental com cuidados médicos específicos para cada grupo de trabalhadores — policiais, ferroviários, aduaneiros, mineiros, etc.

O sistema tinha grande foco na prevenção e na medicina diagnóstica, com o acompanhamento constante dos pacientes. A vacinação era obrigatória para todos — crianças e adultos. Pessoas que não se vacinavam sofriam medidas restritivas, como, por exemplo, a proibição de atuar no serviço público. Os soviéticos também tinham a obrigação de realizar check-ups anuais. Existia ainda uma rede de dispensários (estabelecimentos beneficentes) que atuavam de forma complementar ao Modelo Semashko, oferecendo acompanhamento para problemas como o alcoolismo.

A assistência médica gratuita foi referendada como um direito básico do povo soviético pela Constituição de 1936, junto com o direito à educação, o direito à moradia e o direito ao trabalho, entre outros. A demanda gerada pela ampliação da rede médica foi respondida com a multiplicação dos cursos de medicina. O número de estudantes de medicina saltou de 19 mil em 1913 para 76 mil em 1932. Entre 1928 e 1932, foram inaugurados mais de 2.000 novos hospitais, além de dezenas de institutos bacteriológicos e centros de produção de soros e vacinas.

Até meados do século XX, os investimentos em saúde na União Soviética triplicavam a cada década. Como resultado, o país passou a ostentar alguns dos melhores indicadores sociais do mundo. Nos anos 60, a expectativa de vida — que era de apenas 35 anos no Censo de 1913 — já havia dobrado e atingido o mesmo patamar dos Estados Unidos e das nações da Europa Ocidental. A oferta de médicos e leitos hospitalares da União Soviética era a maior do mundo — quatro vezes superior aos índices existentes nos Estados Unidos. As taxas de mortalidade infantil foram reduzidas bruscamente e as epidemias foram totalmente controladas. Em meados dos anos 50, a União Soviética tornou-se o primeiro país do mundo a debelar a epidemia de poliomielite, após financiar a produção em larga escala do imunizante desenvolvido por Albert Sabin.

O envelhecimento da população e as mudanças nos padrões demográficos, com aumento substancial da população urbana, causaram gargalos na rede assistencial do Modelo Semashko a partir da década de 70, mas, malgrado problemas pontuais, o sistema seguiu funcionando bem até meados dos anos 80. As reformas de Mikhail Gorbachev, entretanto, retiraram o caráter universal do sistema, que passou a cobrar por alguns procedimentos específicos.

Após a dissolução da União Soviética, o Modelo Semashko foi desmontado. Boa parte da rede assistencial foi abolida e diversos equipamentos e centros médicos foram privatizados ou abandonados. A Rússia adotou um modelo misto de assistência médica, que une organizações privadas e subvenções públicas. A maior parte dos serviços ainda é gratuita, mas com uma abrangência bem mais restrita. Os investimentos na manutenção do sistema caíram de forma acentuada, gerando aumento das filas e a redução da qualidade do atendimento, forçando parte da população a pagar por planos de saúde e serviços médicos privados.

Um relatório publicado pela Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) em 2016 apontou que a saúde da população russa piorou em todos os indicadores em comparação com a era soviética. A expectativa de vida dos russos também decaiu acentuadamente nos anos 90 — algo que não ocorria desde a Segunda Guerra Mundial.

Para os brasileiros atendidos por um sistema inspirado pelo pioneirismo soviético, as consequências derivadas do desmonte do sistema de saúde russo servem como um lembrete de que nenhuma conquista civilizacional ou direito está garantido. Defender o SUS é uma tarefa permanente e prioritária.

 

Fonte: Por Estevam Silva, em Opera Mundi

 

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