O Sonhar em tempos de capitalismo 24/7
Certa noite, no século IV A.C., o antigo
filósofo chinês Zhuangzi adormeceu. Enquanto dormia, sonhou que era uma
borboleta. Passou o dia esvoaçando, fazendo o que bem entendia, longe das
preocupações e desejos de seu eu humano e ainda mais distante de qualquer
conhecimento de que era Zhuangzi. Como todos os sonhos agradáveis, porém, este
também chegou ao fim. Ao acordar, viu que era novamente o grande erudito. Mas
um pensamento o perturbou: teria Zhuangzi sonhado que era uma borboleta, ou era
uma borboleta que sonhava ser Zhuangzi?
A mudança estava no ar, na noite em que
Zhuangzi sonhou. Os anos finais da Dinastia Zhou haviam aberto um vácuo de
poder. Os embates entre os governantes que disputavam o poder abalaram os
alicerces que antes organizavam o mundo. A convulsão política foi acompanhada
por uma turbulência intelectual paralela. Como escreveu o estudioso de
literatura chinesa Achim Mittag, enquanto as pessoas buscavam navegar por “um
mundo em turbulência e uma crise fundamental que despedaçou as normas e valores
associados à realeza Zhou”, uma miríade de movimentos intelectuais brotou, cada
um tentando dar sentido a um mundo em fluxo. O fenômeno foi tão significativo
que ganhou o apelido de baijia — as Cem Escolas.
Adormecido em um mundo que se debatia contra
mudanças sem precedentes, onde o futuro era assustadoramente incerto e o
caminho para ele indeterminado, Zhuangzi sonhou com a própria natureza da
transformação. Em vez de descartá-lo como uma fantasia frívola, usou o sonho
para compreender seu meio, para entender a identidade que existe na diferença e
as diferenças que se fundem na identidade. Cultivou o sonho até torná-lo uma
percepção metafísica que veio a ocupar o cerne do Taoismo filosófico, guiando
outros em sua busca por harmonia em meio a mudanças abruptas.
De muitas maneiras, nós, no Ocidente moderno,
nos encontramos em um momento similar de incerteza — embora muitas vezes seja a
êxtase, mais que a transformação, o que nos perturba. Acordamos para um mundo
povoado por estruturas aparentemente intratáveis que operam em escalas que mal
compreendemos: mudanças climáticas, fluxos internacionais de informação e
capital, a consolidação da influência corporativa, oceanos de lixo e atmosferas
de nanoplásticos, e a crescente pobreza da vida natural.
Um dos fãs mais eloquentes de Zhuangzi, David
Holz, é o fundador da Midjourney, empresa de imagens IA que supostamente valerá
quase US$ 200 bilhões até 2032. Holz atribuiu ao sonho da borboleta a
inspiração para a “consciência coletiva” da humanidade e afirma ter nomeado a
empresa com outra citação de Zhuangzi, pois a frase “mid-journey” [“meio da
jornada”] capturaria a ideia de que viemos de um “passado rico e belo” e
avançamos rumo a um “futuro selvagem e inimaginável”.
A ironia de os insights metafísicos de
Zhuangzi virarem material de branding para um sistema de IA
limitado por seu conjunto de dados treinados ilustra como a cultura moderna e
as tecnologias emergentes estão remodelando nossa relação com o sonhar.
Projetado como preditivo, não criativo, o sistema de Holz está sempre à espreita
para roubar sonhos humanos. A empresa está envolvida, aliás, em uma ação
judicial por alimentar seu gerador de imagens com obras de artistas sem
permissão.
Hoje, os sonhos são cada vez mais reduzidos a
commodities a ser consumidas — menos um veículo de qualquer verdade superior e
mais algo a ser fabricado, otimizado, empacotado e vendido. Num momento
dominado por um sentimento de impotência, quando nada além dos limites
existentes de nosso mundo parece factível, parece-me particularmente crucial
resistir a essas manobras. Afinal, só depois de nos reencantarmos com as
possibilidades de nossos próprios sonhos é que podemos começar a sonhar com uma
sociedade melhor.
Historicamente, a interpretação de sonhos era
um processo colaborativo que se baseava tanto nos relatos do sonhador quanto no
conhecimento coletivo. Nas culturas aborígenes australianas, os sonhos eram e
são um meio para os indivíduos adquirirem conhecimento. O mais importante é que
isso raramente ocorre em solidão. Como a estudiosa de religiões Elizabeth den
Boer observou, os “guias na trilha para a compreensão são os anciãos e
especialistas religiosos da comunidade”, e sem esses guias — como quando “não iniciados
sonham com Ancestrais ou conceitos conectados” — os sonhos podem facilmente
virar pesadelos.
Em grande parte, essa sensibilidade
colaborativa vinha da crença de que os sonhos eram coletivos desde o início.
Embora o sujeito adormecido os recebesse, acreditava-se que os próprios sonhos
viviam e vinham de outro lugar. Na Summa Theologiae, Tomás de
Aquino distinguiu entre sonhos que emergem de dentro — muitas vezes moldados
por preocupações individuais ou disposições corporais — e os que vêm de fora,
resultantes do “ar circundante”, “uma impressão de um corpo celeste” ou de Deus
e seus anjos. A mente aqui é uma membrana porosa, moldada e formada pelo
universo ao seu redor, sempre em diálogo com o mundo.
Como os sonhos iluminavam essa conexão com o
mundo, eram reverenciados por sua capacidade de ajudar as pessoas a navegar uma
relação muitas vezes difícil. Em sua discussão sobre epistemologia
nativo-americana, o filósofo Joel Alvarez observou que os sonhos eram vistos
como orientados para a ação: “[V]isões ou sonhos são, para muitos povos
originários americanos, ‘uma fonte primária de conhecimento revelado’ onde o
indivíduo obtém conhecimento do que deve fazer no mundo real.” Às vezes, esses
sonhos eram a realidade, apenas uma versão dela que havia sido esquecida ou
rompida. Certas tradições indígenas, por exemplo, consideram os sonhos um
espaço onde os humanos podem experimentar a relação íntima com o mundo animal
que existia antes que a humanidade míope cortasse essa conexão primordial.
Mas não era apenas sabedoria que as pessoas
buscavam nos sonhos. Como observou Sidarta Ribeiro em seu livro O
Oráculo da Noite, operadores astutos frequentemente se engajavam na
“manipulação política descarada de narrativas oníricas” para estabelecer
autoridade. Sonhos oportunamente anunciados podem ter o efeito de legitimar
regimes e transformar mortais em mitos. Ribeiro sugeriu que o relato de
Plutarco sobre o sonho fortuito de Júlio César antes de cruzar o Rubicão foi um
desses produtos de manipulação narrativa. No suposto sonho, César pratica
incesto materno, sinal posteriormente interpretado por seus defensores como
significando que estava predestinado a conquistar Roma, sua terra-mãe.
Mas mesmo nesse ato de manipulação, há um
reconhecimento implícito de que, embora os sonhos sejam experienciados pelo
sonhador, eles invocam o coletivo, pois contêm o poder de moldar uma
comunidade. Eles transcendem o indivíduo e inspiram ação mais ampla, guiando o
sonhador ao revelar algo verdadeiro sobre sua relação com o mundo desperto.
Um dos sonhos mais influentes do Iluminismo
não foi uma revelação, mas uma ilusão a ser superada. Nas Meditações,
René Descartes escreveu que estava sentado junto à lareira, envolto em um
roupão de inverno. Podia sentir o calor do fogo, a textura do papel sob seus
dedos. Mas, após refletir, de repente ele faz uma pergunta: “Não sou um ser
humano, e portanto no hábito de dormir à noite, quando em meus sonhos tenho
todas as mesmas experiências que esses loucos têm quando estão acordados?”
Seria possível que tudo o que ele imaginava com tão vívidos detalhes fosse um
sonho?
Se Zhuangzi via seu sonho da borboleta como
um caminho para compreender a abertura do eu, Descartes teve a reação oposta.
Confrontado com a possibilidade desestabilizadora de que poderia estar sonhando
mesmo quando se sentia acordado, ele buscou terreno firme. A saída para a
espiral de dúvida veio na forma de um eu fortificado que prometia segurança e
autossuficiência. Você pode estar sonhando, argumentou, mas sempre pode ter
certeza de que é você — e não outro — quem está sonhando; seus pensamentos são
seus independentemente de serem fantasia ou não. Isso o levou ao infame axioma
que fundamentaria nossa ideia da mente humana pelos séculos seguintes: “Cogito
ergo sum” — “Penso, logo existo”.
Essa segurança, porém, teve um preço. O eu
outrora poroso foi isolado do mundo ao redor, certo de quase nada além de sua
própria existência. Em sua biografia de Descartes, Desmond Clarke o chamou de
“solitário recluso, rabugento e hipersensível”. Descartes concebeu a mente em
termos similares: isolada, solitária e apartada. Apesar dessas tendências
antissociais — ou precisamente por causa delas —, esse cogito solitário
revelou-se o companheiro perfeito para uma cultura mais ampla obcecada pelo que
o filósofo e antropólogo Bruno Latour chamou de “purificação”: classificar e
organizar o mundo em caixas discretas e legíveis que o libertassem de todo seu
hibridismo ambíguo.
O tema dos sonhos foi relegado às margens
enquanto os acólitos do Iluminismo privilegiavam a capacidade racional sobre as
características “menos desenvolvidas” da mente. Quando Sigmund Freud ajudou a
reintroduzir os sonhos no discurso, na primeira metade do século XX, continuou
a ver a própria mente como um reino fechado: as visões não eram expressões de
verdades externas, mas produtos do eu mais primitivo do indivíduo, um
“fragmento da vida mental infantil que foi superado” e banido para os
recônditos do pensamento. Menos uma janela para o mundo e mais um reflexo do eu
num espelho distorcido — que podia, no espírito da modernidade, ser usado para
classificação e diagnóstico por um profissional treinado.
E assim nossa marcha confiante rumo à
modernidade foi gradualmente despojando os sonhos de seu status privilegiado.
Onde antes carregavam revelações profundas, agora não passavam de desejos
distorcidos e ocultos, emergindo de mentes solitárias e inquietas. Nesse
admirável mundo novo, os sonhos eram no máximo instrumentos diagnósticos, e na
maioria das vezes baboseiras sem sentido — muito longe dos condutos de verdade
que já foram considerados.
Por todos os aspectos, vivemos hoje num mundo
relativamente sem sonhos. A quantidade de sono noturno em muitos países caiu 1
a 2 horas em comparação com um século atrás. O norte-americano médio dorme
apenas cerca de 6,5 horas por noite. Para as forças do capitalismo
contemporâneo, isso ainda é muito — horas demais passadas sem desejar, sem
capacidade de trabalhar, gastar ou consumir.
O crítico de arte e teórico social Jonathan
Crary chamou esse tempo insômico de era do “capitalismo 24/7”. Ele argumenta
que as maciças desregulamentações do final do século XX criaram um sistema onde
“deixou de haver qualquer necessidade interna de descanso e recuperação como
componentes do crescimento econômico e lucratividade”. Ao contrário da lógica
binária rígida do tempo fabril, nossa economia cada vez mais digitalizada e em
rede gerou uma forma de capitalismo sempre-ativo “definido por um princípio de
funcionamento contínuo” — onde o dinheiro está sempre circulando, o trabalho
sempre em curso e o lucro sempre possível. É o mesmo mundo onde empresas de
software vendem ferramentas para monitorar funcionários remotos e banqueiros
morrem por trabalhar 100 horas semanais.
Numa economia mantida à tona pela circulação
constante, escreve Crary, “a enorme porção de nossas vidas que passamos
dormindo, livres de um pântano de necessidades simuladas, subsiste como uma das
grandes afrontas humanas à voracidade do capitalismo contemporâneo”. Diferente
de outras “necessidades irredutíveis da vida humana”, o sono tem se mostrado
notoriamente difícil de monetizar. Para adentrar o santuário interior do
dormir, os tecnocapitalistas começaram a cobiçar nossos sonhos como via de
lucratividade.
Em 2021, a cervejaria Coors lançou um anúncio
que apresentava um estudo onde participantes assistiam a um vídeo projetado
para incubar sonhos sobre a cerveja antes de dormir. Ao entrarem em sono REM,
os pesquisadores os acordavam para ver o que estavam sonhando: cachoeiras,
neve, montanhas e, claro, “algo relacionado à Coors”. Onde antes os sonhos
vinham de deuses e ancestrais, o anúncio essencialmente proclamava que agora
podiam vir de conglomerados como a Molson Coors Brewing Company — empresas que
aspiravam à mesma onipotência. O vídeo foi disponibilizado para quem quisesse
sonhar com a bebida, embora o site hospedeiro tenha sido retirado do ar,
provavelmente devido às críticas após o lançamento.
Isso não impediu muitas empresas de tentar
lucrar com nossos sonhos de formas mais sutis. A startup Prophetic, por
exemplo, desenvolve atualmente um “halo” que as pessoas podem usar na cama para
induzir sonhos lúcidos. Como escreveu Claire L. Evans, a iniciativa envolve
“treinar modelos de aprendizado de máquina com dados de eletroencefalograma e
ressonância magnética de sonhos lúcidos” e transmitir “suas descobertas via
ultrassom transcraniano focalizado diretamente para cérebros dispostos”. O
objetivo dessa tecnologia de lucidez, segundo artigo da Fortune, é “dar às
pessoas controle sobre seus sonhos, para que possam usar esse tempo
produtivamente. Um CEO poderia praticar para uma reunião de diretoria, um
atleta ensaiar jogadas, um web designer criar novos i”. Nem mesmo o sono poderá
nos arrancar do mandato de produção constante.
Crary observa que essa mercantilização exige
a “suposição pervasiva de que os sonhos são objetificáveis, que são entidades
discretas que, com o desenvolvimento de tecnologia aplicável, poderiam ser
gravados”. Para transformar sonhos em veículos de lucro, em outras palavras,
precisamos antes concebê-los como tipos específicos de objetos passíveis de
mercantilização.
Subjacente a esse modo de pensar está um
matrimônio estranho de atitudes antigas e novas. Por um lado, a ideia da mente
como sistema fechado — e dos sonhos como emanações neutras dessa mente —
permite que essas tecnologias sejam enquadradas como produtos de autossuperação
e autocontrole. Essas empresas estariam apenas ajudando você a conectar-se e
manipular o que já é seu, uma linha de raciocínio que deixaria Descartes
orgulhoso. Como disse enfaticamente o CEO da Prophetic: “Controle é o que
queremos”.
Na prática, porém, essas tecnologias dependem
menos do autocontrole introspectivo que da abertura da mente ao mundo exterior.
Pois toda a premissa por trás dessas tecnologias mediadoras é sua capacidade de
interferir efetivamente na formação e conteúdo dos sonhos a partir de fora.
Assim, enquanto as empresas proclamam que sonhos são fenômenos privados em seu
marketing, seus produtos dependem da natureza porosa do sonhar.
Nas últimas décadas, muitas pessoas
terceirizaram voluntariamente seu gosto para algoritmos sofisticados, suas
memórias e savoir-faire a dispositivos externos, e até se perguntaram se os
algoritmos nos conhecem melhor que nós mesmos. As tecnologias oníricas seguem o
mesmo manual: sob o pretexto de autogestão, convencem-nos a abdicar de mais uma
parte de nós mesmos em favor de aparatos externos, para que sejamos
direcionados à produtividade e ao entretenimento corporativos. Desafiar essa
transformação exige não apenas rejeitar certas tecnologias em desenvolvimento,
mas também reconsiderar o que os sonhos realmente são.
Há um conceito nas culturas aborígenes
australianas frequentemente traduzido para a expressão inglesa “Dreamtime” ou
“The Dreaming” [“Tempo do Sonho” ou “O Sonhar”]. É um termo complexo de definir
por sua multivalência — ao mesmo tempo plano atemporal da criação, conjunto de
práticas culturais e guia para a conduta na vida. Como disse Mussolini Harvey,
do povo Yanyuwa: “Os Sonhos fizeram nossa Lei ou narnu-Yuwa. Esta Lei é nosso
modo de viver, nossas regras. Esta Lei são nossas cerimônias, nossas canções, nossas
histórias”.
Nesse sentido pleno, o Sonhar não se refere
simplesmente a um “além” que alcançamos ao dormir ou morrer. É imanente ao
mundo — ou mais precisamente, desafia a própria distinção entre aquém e além
que organiza a metafísica ocidental desde Platão. Além disso, remete a algo
maior que os sonhos literais de qualquer indivíduo. Eis por que há debate sobre
a precisão dessa tradução, feita originalmente no século XIX por antropólogos
brancos. Teme-se que reduza a riqueza do conceito, ao confundi-lo com nossa noção
relativamente empobrecida de sonho.
Talvez isso possa incentivar uma reavaliação
dos limites de nossa própria linguagem — mostrando como os sonhos podem ser
tecidos em uma cosmovisão que transcende o individualismo que não apenas define
nossa cultura moderna, mas permitiu a mercantilização privatizada desses
sonhos. Sem repetir a apropriação ocidental preguiçosa de uma “autenticidade”
perdida, esses quadros metafisicamente ricos ainda podem servir como
catalisadores que iluminam um caminho para além das incógnitas de visões de
mundo limitadas, rumo a novos territórios.
Não é como se o mundo moderno já não operasse
com crenças amplamente compartilhadas que são verdadeiras apenas porque as
consideramos assim. “O mundo dos fantasmas e espíritos é tão real quanto o dos
mercados”, escreveu o antropólogo Ganath Obeysekere. Na cultura ocidental,
abstrações como o sistema financeiro internacional e fantasmas como o
consumidor racional são tão reais quanto a carne. O que torna esses espectros
reais não é sua autoevidência material, mas uma fé coletiva que lhes dá o poder
de guiar comportamentos e mediar relações. Os sonhos podem cumprir uma função
organizadora igualmente poderosa.
Entre 1980 e 81, o cineasta Mohammad Malas
entrevistou mais de 400 pessoas em campos de refugiados palestinos no Líbano
sobre suas visões noturnas. O vasto arquivo de filmagens foi editado em um
documentário de 45 minutos com seus depoimentos, O Sonho. Numa cena, uma
criança fala de um sonho onde levou um tiro no peito ao correr por um bosque de
oliveiras. Noutra, uma mulher sonha em articular um golpe de Estado. Outros
sonham com edifícios desabando e prisão, com martírio e vitória da paz. Todos
sonham, de um modo ou outro, com deslocamento, lar e retorno.
À maneira que só os sonhos permitem, suas
histórias revelam a posição absurda e paradoxal — entre esperança e desespero,
entre algum lugar e lugar nenhum, vida e morte — à qual foram submetidos como
refugiados. À medida que o filme avança, torna-se impossível descartar qualquer
desses sonhos como ilusões de uma mente isolada. Eles passam a coalescer num
relato sobre uma topografia compartilhada de sentimentos, tão inegavelmente
real quanto um leito de rio ou cordilheira. É uma manobra profunda, dado que
esses refugiados foram frequentemente alvo de campanhas de desumanização,
espoliados de qualquer direito sobre suas vidas interiores. Contra esse
esvaziamento, Malas usou os sonhos para confrontar o espectador com a
profundidade total e complexa de sujeitos que temem, esperam e lamentam —
revelando assim sua humanidade, exatamente o que lhes era negado pelas
epistemologias dominantes e representações midiáticas que recorrem a
caricaturas fáceis.
Ao trazer à luz os sonhos, traumas e o mundo
dos refugiados, Malas articulou uma exigência ética. A poeta basalt i.h. os
chamou de “sonhos que exigem algo de nós”. A materialização de traumas
coletivos e territórios ocultos da experiência nos impele a considerar para
onde ir a partir daqui; os sonhos se tornam um meio por onde começam a fluir o
reconhecimento e a obrigação.
Essa consciência da capacidade
inter-relacional dos sonhos inspira pesquisadores que investigam as
possibilidades terapêuticas de práticas oníricas intersubjetivas. Enquanto uma
abordagem diagnóstica vê os sonhos como veículos para classificar e categorizar
— por exemplo, identificar distúrbios cerebrais —, um grupo pequeno mas
crescente de psicólogos e terapeutas busca desvendar como os sonhos podem abrir
vias para conexão em vez de controle.
No cerne desse trabalho está a noção renovada
de que os sonhos existem primordialmente como parte de um processo
compartilhado. Ao escrever sobre sonhos, o psicólogo clínico Robi Friedman não
se refere apenas ao ato de sonhar, mas a um “ciclo onírico” holístico no qual
uma “preocupação coletiva” se manifesta em sonhos pessoais, é interpelada por
uma narrativa interna e depois tornada pública novamente numa “elaboração
relacional compartilhada”. Esse ciclo reconhece tanto a origem dos sonhos na
esfera coletiva quanto seu potencial de retornar a ela e reformulá-la.
Esse ciclo ganha vida em práticas como o
compartilhamento de sonhos, que permitem a grupos usá-los para reestruturar e
fortalecer seus relacionamentos. Um estudo experimental, por exemplo, descobriu
que compartilhar sonhos em casais aumentava mais a intimidade que descrever
eventos cotidianos. Paralelamente, formações sociais como grupos de sonhos têm
sido exploradas como recursos para tudo — desde cura até colaboração criativa.
Mark Blagrove, professor de psicologia na Swansea University, escreveu que, embora
a ciência historicamente visse os benefícios dos sonhos como fruto de
“processos neurais durante o sono, independentemente de serem relembrados”,
agora começa-se a desenvolver a ideia de que “a função dos sonhos reside em seu
uso no estado desperto”. É no processo de tornarem-se comunitários que os
sonhos realizam seu pleno potencial.
Assim como Malas, esses pesquisadores
revisitam a ideia de que os sonhos vêm e pertencem a um coletivo — que são atos
sociais que atravessam as fronteiras do eu. Ao fazê-lo, abrem a possibilidade
de estarmos sempre entrelaçados com as pessoas, lugares e ideias que compõem
nosso mundo. Os sonhos se tornam veias através das quais podemos engajar o
mundo de modos ainda não descobertos — e até conduzi-lo a algo melhor. Se os
sonhos, ao fim, tiram seu poder da capacidade de nos guiar na vida desperta,
como alguns praticantes ancestrais já sabiam, eles podem inspirar ou invocar.
Mas cabe a nossos eus despertos transformar um sonho, mesmo coletivo, numa
realidade compartilhada.
Fonte:
Por Leo Kim, em Noema |
Tradução: Antonio Martins, em Outras Palavras

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