Crimes da ditadura: 53 anos da Chacina de
Quintino
Uma das muitas atrocidades cometidas pela
ditadura militar brasileira completará 53 anos amanhã — e nenhum dos
responsáveis foi punido até hoje.
Em 29 de março de 1972, agentes do DOI-CODI
invadiram uma residência no bairro de Quintino, no Rio de Janeiro, e
assassinaram Lígia Maria Salgado Nóbrega, Antônio Marcos Pinto de Oliveira e
Maria Regina Lobo Leite Figueiredo.
Os três jovens assassinados pertenciam à
VAR-Palmares, organização de resistência ao regime militar. À época, os
policiais afirmaram que as mortes teriam sido decorrentes de um tiroteio. A
Comissão da Verdade, entretanto, desmentiu a versão dos militares e comprovou
que as vítimas foram sumariamente executadas.
A Chacina de Quintino é uma das várias
matanças de jovens perpetradas pela ditadura durante os “Anos de Chumbo”. Um
levantamento publicado por Cynara Menezes em 2016 mostrou que 56% das vítimas
do regime tinham menos de 30 anos.
• A
VAR-Palmares
Lígia Maria, Antônio Marcos e Maria Regina
eram integrantes da Vanguarda Armada Revolucionária Palmares (VAR-Palmares),
uma organização da esquerda revolucionária que participou da luta armada contra
a ditadura militar.
A VAR-Palmares foi criada em 1969, a partir
da fusão de outros dois grupos — a Vanguarda Popular Revolucionária (VPR),
organização liderada por Carlos Lamarca, e o Comando de Libertação Nacional
(COLINA).
O grupo conduziu uma série de ações de
combate ao regime militar, que incluíam desde ações de base voltadas à
conscientização política e à articulação da sociedade civil até o enfrentamento
aberto e táticas de guerrilha.
Uma das ações mais conhecidas da VAR-Palmares
foi o chamado “roubo do cofre do Adhemar”. Em julho de 1969, militantes do
grupo invadiram a mansão de Anna Benchimol, amante do ex-governador de São
Paulo, Adhemar de Barros, e levaram um cofre com US$ 2,5 milhões.
O dinheiro foi utilizado para financiar as
ações da resistência. À época, Carlos Lamarca deu uma declaração à agência
France Press assumindo a autoria: “Localizamos a famosa ‘caixinha’ do
ex-governador de São Paulo, Adhemar de Barros, enriquecido por anos e anos de
corrupção. (…) Esse dinheiro foi roubado do povo e a ele será devolvido”,
afirmou o comandante da guerrilha.
• O
aumento da repressão
Em dezembro de 1968, a ditadura militar
promulgou o Ato Institucional nº. 5 (AI-5). O decreto suspendia os direitos
civis e as garantias constitucionais, institucionalizando o recrudescimento do
autoritarismo e iniciando os chamados “anos de chumbo” — o período mais
repressivo da ditadura militar, marcado pelo uso recorrente de prisões
arbitrárias, tortura, desaparecimentos e assassinatos de opositores.
Apesar da intimidação, as organizações da
esquerda seguiram efetuando ações ousadas de enfrentamento à ditadura. Em 1970,
James Allen da Luz e outros militantes da VAR-Palmares conduziram o sequestro
do voo 114, forçando um avião comercial da Cruzeiro do Sul a desviar sua rota
até Cuba.
O sequestro da aeronave forçou o regime a
reconhecer que havia capturado dois militantes do grupo, — Fausto Machado
Freire e Marco Antonio Meyer — impedindo que eles engrossassem a lista de
desaparecidos políticos.
A ditadura também responsabilizou os
guerrilheiros pela morte do marinheiro inglês David Cuthberg, integrante de uma
força-tarefa da marinha britânica no Rio de Janeiro. Cuthberg foi executado a
tiros dentro de um táxi em fevereiro de 1972. Segundo os registros produzidos
pelo regime, Lígia Maria e outros membros da VAR-Palmares teriam participado do
justiçamento, ao lado de militantes da Ação Libertadora Nacional (ALN) e do
Partido Comunista Brasileiro Revolucionário (PCBR).
As ações da VAR-Palmares serviram de
justificativa para uma série de operações repressivas. O grupo se tornou alvo
prioritário do regime, que incumbiu seus órgãos de inteligência da tarefa de
localizar e eliminar os membros da organização.
• A
chacina
Em 29 de março de 1972, agentes da repressão
invadiram um aparelho da VAR-Palmares localizado em uma casa na Avenida
Suburbana, em Quintino, na Zona Norte do Rio de Janeiro. A operação foi
planejada por integrantes do DOI-CODI (órgão de inteligência e repressão do
Exército Brasileiro), em conjunto com Departamento de Ordem Política e Social
(DOPS) e com a Polícia Militar do Rio de Janeiro.
Quatro militantes da VAR-Palmares estavam
dentro da residência na ocasião: Lígia Maria, Antônio Marcos, Maria Regina e
James Allen. Conforme a versão dos militares, os agentes teriam sido recebidos
à bala quando invadiram o imóvel. Eles teriam então revidado, dando origem a um
tiroteio que matou três integrantes do grupo. Apenas James Allen, o alvo
principal dos militares, conseguiu escapar.
A versão oficial dos militares foi desmentida
pelo relatório produzido pela Comissão Estadual da Verdade do Rio de Janeiro,
que examinou documentos e coletou depoimentos de vizinhos e do perito que
examinou os corpos no Instituto Médico Legal (IML).
Os laudos cadavéricos não apontavam
resquícios de pólvora nas mãos dos militantes, contradizendo a versão da
polícia de que os jovens teriam atirado contra os agentes.
Valdecir Tagliari, médico legista que assinou
o atestado de óbito das vítimas, relatou que os ferimentos eram compatíveis com
tortura seguida de execução. Vizinhos que testemunharam a ação afirmaram que os
jovens foram executados sumariamente com tiros na cabeça após terem se rendido
aos agentes.
Também foram identificadas adulterações das
informações nos registros da ditadura. Lígia Maria, por exemplo, foi “morta”
mais duas vezes pelos militares. Seu nome é registrado em outros dois autos de
morte em confronto datados de 8 e 9 de junho de 1972, sob a alegação de “reagir
à voz de prisão”.
A análise do livro de diligências do DOPS
também comprovou a responsabilidade dos militares pela morte de Wilton
Ferreira, que se encontrava em um outro aparelho da VAR-Palmares no bairro de
Cavalcanti, invadido pela mesma equipe que realizou a chacina de Quintino.
Wilton não era militante da VAR-Palmares, nem
participava de nenhum movimento de resistência à ditadura. Ele apenas fazia um
bico como vigia e tinha sido pago por James Allen para olhar a garagem do
aparelho. Wilton foi sepultado como indigente. Seus restos mortais foram
posteriormente transferidos para uma vala clandestina, com mais de 8.000
ossadas.
• As
vítimas da chacina
>>>> Lígia Maria Salgado Nóbrega
Lígia Maria nasceu em Natal, Rio Grande do
Norte, em 30 de julho de 1947. Ela se mudou ainda criança para São Paulo e
estudou no Colégio Fernão Dias, no bairro de Pinheiros. Em 1967, Lígia
ingressou no curso de pedagogia da USP.
Durante a graduação, Lígia começou a atuar no
movimento estudantil, participando de protestos e atos de panfletagem. Em 1970,
ela ingressou na VAR-Palmares, aderindo à luta armada. Mudou-se em seguida para
o Rio de Janeiro, onde passou a viver clandestinamente.
Lígia foi identificada pelos órgãos
repressivos como uma das participantes da ação que matou o militar inglês David
Cuthberg, membro de uma força tarefa da marinha britânica no Rio de Janeiro.
Conforme o relato de testemunhas, Lígia foi a
primeira vítima da Chacina de Quintino. Ela foi executada com um tiro na
cabeça, mesmo estando rendida e com as mãos na nuca. Seu corpo foi sepultado no
Cemitério São Paulo.
Lígia era namorada de James Allen e estava
grávida de dois meses quando foi assassinada pelos agentes da repressão. Ela
tinha 24 anos de idade.
Como parte do projeto Diplomação da
Resistência, a USP irá conceder o diploma honorífico a Lígia Maria. A cerimônia
de diplomação ocorrerá no próximo dia 3 de abril.
>>>> Antônio Marcos Pinto de
Oliveira
Antônio Marcos nasceu no Rio de Janeiro em 16
de fevereiro de 1950. Ele ingressou no movimento estudantil como secundarista.
Aos 16 anos, já participava das manifestações e atos contra o regime militar.
O jovem almejava a carreira eclesiástica. Ele
foi membro da Juventude Escolar Católica (JEC) e chegou a estudar em um
seminário por um breve período. Em 1968, após a promulgação do AI-5 e o aumento
da repressão, Antônio e seu irmão, Januário, tornaram-se militantes da Ala
Vermelha, uma dissidência do Partido Comunista do Brasil (PCdoB).
Por volta de 1970, Antônio se desligou da Ala
Vermelha e ingressou na VAR-Palmares, passando a usar o codinome “Evandro”.
Antônio desenvolvia um importante trabalho comunitário no bairro Oswaldo Cruz,
em conjunto com a Paróquia Nossa Senhora Medianeira, dirigida pelo padre João
Daniel de Castro. Ele também foi um dos fundadores do Grupo de Jovens de
Oswaldo Cruz (GRUJOC).
Em 1971, após a prisão de uma série de
militantes do GRUJOC, Antônio passou à clandestinidade. Ele foi assassinado no
ano seguinte. Antônio tinha 22 anos. Seu corpo foi enterrado no Cemitério São
Francisco Xavier.
>>>> Maria Regina Lobo Leite
Figueiredo
Maria Regina nasceu no Rio de Janeiro em 5 de
junho de 1938. Ela era filha da assistente social Cecília Lisbôa Lobo e do
médico Álvaro Lobo Leite, pesquisador do Instituto Oswaldo Cruz.
Egressa do tradicional Colégio Sacré-Coeur de
Jésus, Maria Regina cursou o ensino superior na Faculdade Nacional de Filosofia
da Universidade do Brasil (atual UFRJ). Graduada em pedagogia em 1960, ela
passou a se dedicar a uma série de projetos sociais.
Maria Regina foi integrante da Juventude
Universitária Católica (JUC), organização religiosa que se destacava por suas
bandeiras progressistas e pela firme oposição à ditadura militar. Ela
participou do Movimento de Educação de Base (MEB) — projeto educacional que
utilizava o método Paulo Freire em campanhas de alfabetização em massa,
realizadas junto às comunidades carentes.
A pedagoga trabalhou no interior do Maranhão
e ajudou a expandir as escolas radiofônicas no estado. Em 1966, ela se casou
com Raimundo Gonçalves de Figueiredo. Ao lado do marido, Maria Regina se tornou
militante da Ação Popular (AP) — organização ligada à esquerda cristã, que
participou da luta contra o regime.
A educadora também desenvolveu um importante
projeto educacional no Paraná, atuando junto às comunidades indígenas. Em abril
de 1971, o marido de Maria Regina foi assassinado pela ditadura. Ela retornou
então ao Rio de Janeiro, onde ingressou na VAR-Palmares.
Maria Regina tinha 33 anos quando foi morta
na Chacina de Quintino. Ela deixou duas filhas pequenas — Isabel e Iara,
respectivamente com 3 e 4 anos.
>>>>> James Allen da Luz
James Allen da Luz foi o único sobrevivente
da Chacina de Quintino. Não obstante, ele morreria já no ano seguinte, em
circunstâncias ainda não esclarecidas.
James nasceu em Buriti Alegre, Goiás, em 21
de dezembro de 1938. Ele ingressou no movimento estudantil ainda na
adolescência, como estudante da Escola Técnica de Comércio de Goiânia. James
chegou a iniciar a faculdade de direito, mas teve de interromper os estudos
após se tornar alvo do regime.
Militante do Partido Comunista do Brasil
(PCdoB) e ligado à resistência brizolista, James foi preso em 1966 e enviado
para a Fortaleza de São João, no Rio de Janeiro. Ele conseguiu escapar da
prisão, fugindo em seguida para o Uruguai, onde viveu por um período.
Após retornar clandestinamente ao Brasil,
James retomou a militância na Ala Vermelha. Ingressou depois na VAR-Palmares,
onde assumiu a liderança de uma série de ações importantes.
Em janeiro de 1970, James comandou o
sequestro do voo 114, da companhia Cruzeiro do Sul. O avião foi forçado a
desviar sua trajetória até Cuba, como parte de uma ação que visava garantir a
libertação de 44 presos políticos.
James desapareceu cerca de um ano após a
chacina de Quintino. Um documento do Serviço Nacional de Informações (SNI)
registrou que sua morte teria decorrido de um acidente automobilístico,
ocorrido em 24 de março de 1973.
Testemunhas ouvidas pela Comissão Especial
sobre Mortos e Desaparecidos Políticos relataram que James sobreviveu ao
acidente e foi levado sob custódia pelos agentes da ditadura. Seu corpo nunca
foi encontrado.
Fonte: Por Estevam Silva, em Opera Mundi

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